terça-feira, 15 de novembro de 2016

As luzes e os porões dos tumbeiros

            


          
        Publico, rompendo brevemente um longo "período de hibernação" deste blog, o texto que apresentei no último dia 13 na Universidade Estadual de Londrina.


AS LUZES E OS PORÕES DOS TUMBEIROS: MAÇONARIA, NEGOCIANTES E TRÁFICO ATLÂNTICO NO BRASIL JOANINO E DO PRIMEIRO REINADO

Autor: Gustavo Alves Cardoso Moreira (Historiador-Museu Nacional/UFRJ)

Palavras-chave: maçonaria- tráfico atlântico- escravidão

            O processo de estruturação da Maçonaria moderna remonta, segundo a historiografia especializada, ao ano de 1717, quando quatro lojas inglesas, cujos nomes correspondiam aos das tabernas onde seus integrantes se reuniam (O Pato e a Grelha, A Coroa, A Macieira e O Copo e as Uvas), formaram a Grande Loja de Londres.  Elas passaram a eleger um grão-mestre com autoridade sobre todos os membros.  Congregando “homens de diferentes raças, religiões e línguas”, a ordem rompeu com uma tradição medieval, ao deixar de ser um conjunto de “velhas confrarias de pedreiros” para incorporar outros indivíduos, não vinculados às corporações de ofício ou ao setor da construção, que ficaram conhecidos como “maçons aceitos[i]”. 
            Por outro lado, os maçons londrinos preservaram em grande parte a herança ritualística da Idade Média, transmitida, segundo Colussi, pela “tradição oral” e por “escritos esparsos”.  Este processo se desdobrou na elaboração dos Landmarks, código de conduta composto por normas escritas e não escritas, e na Constituição de Anderson, datada de 1723, que firmou “os fundamentos jurídicos mais completos e importantes” da instituição.  Conforme a mesma autora, a Constituição possibilitou “o início da exteriorização da Maçonaria”, apresentada ao mundo como um espaço em que, contrastando com uma “conjuntura histórica de intolerâncias e perseguições”, poderiam conviver homens com variadas opiniões sobre política e religião[ii]
            A Maçonaria logo estendeu sua atuação ao continente, com o surgimento, em 1725, de uma loja em Paris. Seu crescimento na França foi notável: no momento anterior à Revolução de 1789 havia cerca de 50 mil maçons no país, predominando “burgueses, nobres, religiosos ou militares”; nos termos de Barata, não existia “uma cidade que não possuísse sua loja[iii]”.  Em Portugal, a ordem se instalou em 1728, quando apareceu em Lisboa uma loja de protestantes ingleses, apelidada “Loja dos Hereges Mercantes”.  Cinco anos depois, católicos da Irlanda criaram a Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia, que abria às quartas-feiras nos fundos de uma taverna.  Ali, debatiam sobre temas científicos, promoviam banquetes e ouviam música[iv].
            Existe certa controvérsia a respeito do início das atividades maçônicas no Brasil. Antônio do Carmo Ferreira, que ocupou o cargo de grão-mestre do Grande Oriente Independente de Pernambuco, diz que nos meses de março e abril de 1996 foram comemorados os duzentos anos do Areópago de Itambé, sociedade que funcionou entre 1796 e 1801 na vila de Itambé, localizada a 92 km de Recife.  O Areópago foi criado por Manuel de Arruda da Câmara, paraibano de Pombal que, ordenado frade carmelita em 1783, rumou seis anos depois para Portugal para estudar Filosofia[v]. Deixando a Universidade de Coimbra, Câmara se mudou para Montpellier, na França, onde cursou Medicina e se especializou em Botânica.  Ali, segundo Ferreira, teria sido iniciado em uma das várias lojas maçônicas, para depois, no regresso à colônia, “doutrinar sua gente para o grande salto da liberdade e da cidadania”.  A ele se reuniram, na fundação do Areópago, um irmão de sangue, também médico, chamado Francisco, fazendeiros da família Cavalcanti de Albuquerque, dona do engenho Suassuna, e vários padres[vi].  Por ser proibido falar sobre “ideias de independência e democracia”, bem como pertencer à própria Maçonaria, o Areópago nunca possuiu registro formal.  Tal como outras sociedades do mesmo gênero, seu eixo principal de ação não era a filantropia, mas sim a “determinação de dar uma pátria aos brasileiros”.  Após o fechamento do Areópago seus integrantes se agruparam nas Academias do Suassuna e do Paraíso, reconhecidas como lojas maçônicas em 1817, fato que para Ferreira reforça a tese de que a sociedade fundada por Arruda da Câmara pode ser incluída na mesma categoria[vii].
            Opinião diversa foi manifestada, meio século antes, por Carlos Rizzini, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que em trabalho de 1946 assegurou que o Areópago de Itambé “não seria porém uma loja, por lhe faltarem os ritos próprios, de resto evitados por portugueses e brasileiros temerosos da implacável perseguição do [intendente Pina] Manique[viii]”.  Para Barata, “até o final do século XVIII não existia no Brasil a Maçonaria, entendendo-se como tal uma organização institucionalizada e com funcionamento regular nos mesmos moldes das outras organizações maçônicas internacionais”.  Conforme o autor, que se baseia no Manifesto de José Bonifácio, de 1831, a primeira loja brasileira, Reunião, surgiu em Niterói no ano de 1801[ix]
            A loja Reunião era filiada a uma Obediência francesa.  Sobre isto, vale destacar que os estudantes brasileiros deixaram registros, no Grande Oriente da França, de ter criado duas lojas naquele país, uma em Montpellier, cuja Faculdade de Medicina era “um dos focos maçônicos franceses”, e outra na cidade próxima de Perpignan.  Quando o Grande Oriente Lusitano soube da existência da loja Reunião, em 1804, tentou sem êxito submetê-la à sua jurisdição, mas promoveu a fundação, no Rio de Janeiro, das lojas Constância e Filantropia.  Todas tiveram suas atividades suspensas quando o vice-rei conde do Arcos empreendeu uma forte perseguição contra a Maçonaria, em 1806[x].
            Pouco mais tarde, se formaram na província da Bahia três oficinas maçônicas, Virtude e Razão, Humanidade e União, que chegaram a constituir a primeira Obediência brasileira, denominada Grande Oriente Brasileiro, cujo grão-mestre foi Antônio Carlos Ribeiro de Andrada.  O primeiro GOB também entraria em recesso a partir de 1817, na esteira da repressão à Insurreição Pernambucana daquele ano, que fora apoiada por Antônio Carlos.  Desta maneira, somente depois de abril de 1821, com o retorno de D. João VI a Portugal, foi possível a reorganização da Maçonaria[xi].

Antônio Carlos Ribeiro de Andrada


            Os maçons do Rio de Janeiro correram perigo durante o governo joanino.  Entre 1818 e 1820, coube ao intendente-geral Paulo Fernandes Viana a tarefa de reprimir os elementos que representassem “ameaça à estabilidade do poder real”.  Nesta categoria figuravam os membros das lojas maçônicas, ao lado dos autores de “escritos ofensivos à moral” e dos residentes europeus cuja conduta política fosse considerada “suspeita”.  A situação se abrandou quando, por influência da Revolução do Porto, Fernandes Viana foi substituído por um novo intendente. Cecília Oliveira enxerga, nos bastidores deste evento, a atuação de setores mercantis liberais insatisfeitos com “a atuação arbitrária da polícia contra homens de bem[xii]”.

Paulo Fernandes Viana

            Segundo o escritor maçônico Arcy Tenório D’Albuquerque, os maçons do período imediatamente anterior à Independência, filiados ao Grande Oriente do Brasil, assumiram um papel “vanguardeiro do movimento emancipador do Brasil”.  Os candidatos a ingressar na confraria deveriam fazer um juramento, no qual se comprometiam a “promover por todos os modos a Independência do Brasil, a lutar por ela, a defender a sua integridade perpétua e a sua dinastia[xiii]”.  Baseada na historiografia maçônica, Eliane Colussi vê igualmente nas lojas “o espaço principal das articulações, negociações e decisões” que resultaram na Independência.  A Maçonaria teria desempenhado o papel dos partidos políticos, então inexistentes.  Porém, uma vez consumada a separação entre o Brasil e Portugal, numerosos maçons que haviam adotado “posicionamentos mais radicais” se sentiram “derrotados ou ludibriados[xiv]”.
            Conforme o documento intitulado Le Régulateur du Maçon, publicado pelo Grande Oriente da França em 1801, os pré-requisitos básicos para fazer parte da Maçonaria eram “ter a idade de vinte e um anos, ser de condição livre e ser senhor de sua pessoa”.  Comprovadas estas condições, o “profano” candidato à iniciação se submetia a uma fase de “investigação ou sindicância”, que não deveria exceder a três meses, ao fim dos quais uma assembleia dos membros da loja em questão decidia em definitivo sobre a conveniência da admissão proposta.  Procedimentos semelhantes foram adotados no Brasil, onde o Grande Oriente instituiu, em sessão de 8 de julho de 1822, os critérios a serem empregados na adoção de novos membros:

“Estado- se é casado, que tratamento dá a sua esposa e família, que educação a seus filhos; se é solteiro, que decência de costumes.  Emprego- que crédito tem no desempenho de seus deveres civis e morais.  Política- quais são os sentimentos pela causa do Brasil e da sua Independência.  Costumes em geral- que amor à beneficência e adesão à amizade[xv]”.  

            O recrutamento maçônico no Brasil do século XIX apresentou nítidas características elitistas.  Colussi declara, a respeito da Maçonaria gaúcha, que os dirigentes da ordem eram majoritariamente “integrantes da elite regional, situando-se entre os profissionais que vinham de famílias abastadas ou sendo, no mínimo, próximos a essas[xvi]”.  Barata ressalta que as lojas, em consonância com “a sociedade colonial e escravista” em que estavam inseridas, tendiam a excluir os indivíduos de baixo poder aquisitivo, incapazes de contribuir financeiramente para as atividades beneficentes, de socorrer os irmãos que passassem por dificuldades ou mesmo de pagar a joia pela filiação, fixada pelo Grande Oriente do Brasil, em 1822, em seis mil réis[xvii].
            Entre os segmentos proprietários aptos a participar da Maçonaria no Brasil sempre estiveram os comerciantes e negociantes. Colussi credita a implantação das lojas maçônicas no fim do período colonial à iniciativa de “comerciantes europeus que aportaram nos portos brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro[xviii]”.  Barata afirma, sobre a sociedade carioca do início do século XIX, que as lojas faziam parte das formas de sociabilidade dos negociantes, junto com as irmandades religiosas e as misericórdias.  Construindo uma tabela sobre as ocupações dos 152 primeiros filiados e iniciados do Grande Oriente do Brasil, o autor apurou que o grupo dos negociantes/comerciantes detinha uma presença relevante no âmbito da ordem.  Ligavam-se aos negócios 24 daqueles pioneiros, superados em número apenas pelos 29 funcionários públicos.  É preciso registrar que Barata não pôde identificar as ocupações de todos os maçons listados: 61 deles, cerca de 40% do total, constam na coluna “outros/sem informação”, o que nos permite supor que talvez houvesse mais negociantes[xix].
            A desvalorização social dos profissionais do comércio no conjunto do império português, em parte pela ascendência cristã-nova de muitos deles, é um tema recorrente na historiografia.  Jorge Pedreira, que estudou a “elite mercantil lisboeta na segunda metade do século XVIII”, constatou que os negociantes, além de terem, em geral, uma origem modesta, costumavam se casar com as filhas de outros integrantes da categoria.  Quando isto não ocorria, se uniam a mulheres de condição considerada ainda mais baixa, como as “filhas de oficiais mecânicos, lavradores e capitães de navio[xx]”.
            Esta tendência não se reproduziu necessariamente nos mesmos termos no Brasil. No Rio de Janeiro, a “nobreza da terra”, que deteve hegemonia no exercício dos cargos públicos durante os primeiros séculos após a fundação da cidade, já se sentia ameaçada, em torno de 1730, “pelo avanço dos negociantes de grosso trato, baseados na acumulação de capital nos tratos do Atlântico Sul e nos alargamentos do trato do mercado interno”[xxi] (relacionados às imbricações entre a economia carioca e a mineira). Segundo Mattos, mudanças verificadas entre o final do século XVIII e o começo do XIX, como o rápido crescimento populacional, o translado da sede da monarquia e a criação do Banco do Brasil (permitindo o lançamento das “bases de um embrionário sistema monetário”) tornaram o comércio “febril” na cidade[xxii]
            Antes da vinda da família real, os negociantes da praça do Rio já tinham acumulado capitais que lhes permitiram, segundo Alvisi, “controlar as atividades urbanas e interferir diretamente na economia”. Eles se fizeram, em seguida, financiadores da Coroa e administradores, em troca de honras e privilégios que lhes traziam mais vantagens nos negócios. Para assegurar posições, se aliaram aos proprietários de terras e escravos[xxiii].  Nisto parece concordar Parron, para quem a corte, desde a vinda para o Brasil, “aprofundou laços econômicos e políticos com os homens de grossa aventura que, operando no Rio de Janeiro, já vinham concedendo empréstimos ao Estado português”.  A associação entre a “elite ilustrada portuguesa” e a comunidade mercantil, para o autor, se baseava no tripé “livre comércio, expansão do sistema escravista e proteção do trato negreiro”.  O projeto, porém, esbarrava nas objeções da Inglaterra, que aboliu o tráfico em seu império no biênio 1807-1808[xxiv].           
            Segundo Pedro Campos, os negociantes da praça do Rio “se organizaram e se aproximaram do aparelho de Estado mais ainda do que os mineiros”.  Quando decidiram estruturar um Corpo de Comércio e construir sua sede, foram beneficiados com a doação de um terreno pelo próprio rei, que compareceu à inauguração do prédio, em 1820.  Por outro lado, em 1816, os sete principais membros do mencionado Corpo ofertaram à Coroa capitais que deveriam ser investidos na área educacional.  Isto resultou na criação do Instituto Acadêmico e do Instituto de Belas Artes[xxv].
            Desde o século XVIII, o tráfico negreiro constituía um dos principais ramos de negócios no Rio de Janeiro.  Quando, instruído pela Coroa, o vice-rei conde de Resende compôs uma listagem dos 36 homens mais ricos da praça carioca, com o fim de angariar capitais para o desenvolvimento agrícola, relacionou entre aqueles sete indivíduos que Manolo Florentino reconheceria, quase duzentos anos depois, como senhores de “fortunas direta ou indiretamente envolvidas com o comércio de almas depois de 1811”.  Este dado, para Florentino, é indício da “confluência entre a elite mercantil e o topo da hierarquia traficante[xxvi]”.  Deve-se destacar que nesse período a imagem pública dos traficantes ainda não sofrera o desgaste registrado a partir da primeira proibição da atividade.  Segundo Jaime Rodrigues, eles gozavam de bom conceito, pois para a sociedade era o tráfico que permitia a “multiplicação da riqueza[xxvii]”.
            A partir deste conjunto de informações, concebi a hipótese de que não existiriam entraves significativos para a entrada nas lojas maçônicas de homens com os mais variados graus de envolvimento no tráfico.  Confrontei, então, uma “lista dos membros da Maçonaria Fluminense (1821-1822)[xxviii]” com a “listagem dos traficantes de escravos entre a África e o porto do Rio de Janeiro, atuantes entre 1811 e 1830”, organizada por Manolo Florentino[xxix].  Houve cinco coincidências, expressas nos nomes de Amaro Velho da Silva, Antônio Gomes Barroso, João Militão Henriques, João Rodrigues Ribas e Joaquim José de Siqueira.  Velho, Barroso e Ribas integravam a loja Comércio e Artes, Henriques pertencia à União e Tranquilidade e Siqueira à Esperança de Niterói.
            Amaro Velho da Silva não deve ser confundido com o tio homônimo, também traficante.  Ambos, de acordo com a Gazeta do Rio de Janeiro de 18 de outubro de 1809, figuraram como doadores de elevadas quantias em uma Relação das pessoas que têm concorrido efetivamente para socorro dos vassalos de Sua Alteza Real residentes em Portugal, desde o 1º até 5 de outubro de 1808.  Velho da Silva Sobrinho teria ofertado um conto de réis, e seu tio oitocentos mil réis. Cerca de dois anos mais tarde, em 16 de outubro de 1811, o mesmo periódico anunciou a venda em hasta pública de metade do bergantim Nossa Senhora da Penha, embarcação pertencente ao “finado Amaro Velho da Silva”.  Ainda conforme a Gazeta, na edição de 8 de fevereiro de 1812, Manuel e Amaro Velho da Silva, “administradores da casa do finado Amaro Velho da Silva”, se preparavam para vender outro bem do espólio, o navio Lusitânia.
            Segundo Florentino, a família Velho esteve incluída no grupo das dezessete maiores empresas traficantes da praça do Rio entre 1811 e 1830, sendo responsável por dezoito expedições ao continente negro, a última delas em 1822.  Treze se dirigiram a Cabinda, na África Centro-Ocidental[xxx].  A Gazeta do Rio de Janeiro de 23 de maio de 1812 indica que a galera Flor do Rio, capitaneada pelo mestre Francisco Correa Garcia, desembarcara 467 escravos endereçados a Amaro Velho da Silva, dos quais dois tinham morrido na viagem.  Encontrei em outras três notas da Gazeta novas remessas de cativos ao mesmo destinatário, embora nenhuma delas cite as quantidades: em 28 de setembro de 1816, consta a chegada da galera Maria Tomásia, que retornava de Cabinda; em 15 de dezembro de 1819, foi publicado que a galera Lusitânia trouxera negros de Angola (aqui, uma provável alusão ao porto de Luanda); em 26 de fevereiro de 1822, correu que, também de Angola, viera o mencionado navio Maria Tomásia
            Através de outros anúncios pude perceber que Amaro Velho, acompanhando o modus operandi típico dos negociantes do Rio, atuava como importador de uma gama muito diversificada de produtos: madeira, açúcar, aguardente, sal, fazendas da Índia, cera, marfim e azeite.  Ele detinha, entre os integrantes da categoria, prestígio acima da média, pois já em 1816 foi escolhido pelo Corpo do Comércio para fazer parte da comissão de “notáveis” que, em nome do setor, rendeu graças a D. João pela elevação do Brasil a Reino Unido[xxxi].  Bem antes da Independência, se mostrava politicamente ativo, concorrendo com seus capitais para a construção da sede do Senado da Câmara da Corte e para a organização de um “corpo de pretos” denominado Libertos D’El Rei[xxxii]. Consta da edição número 9 do Boletim do Grande Oriente do Brasil[xxxiii], impressa em setembro de 1875, a informação de que quando o “irmão Guatimozim” (D. Pedro I) retornou de São Paulo para o Rio, após a proclamação da Independência, recebeu felicitações de uma deputação maçônica, na qual esteve Amaro Velho da Silva.  Este foi acompanhado por João Martins Lourenço Viana, mencionado como “irmão”, que também aparece na lista de Florentino. 
            Antônio Gomes Barroso (1740-1825) também foi um notório traficante, que ao longo da carreira acumulou diversas honrarias: comendador da Ordem de Cristo, fidalgo cavaleiro da Casa Imperial, coronel das Milícias da Corte e alcaide mor da Vila de Itaguaí[xxxiv].  A família Gomes Barroso, no período compreendido entre 1811 e 1830, patrocinou 45 expedições à África, das quais 34 rumo ao porto de Cabinda.  Nelas adquiriu, conforme Florentino, 6.761 escravos somente nas 16 viagens com registros de mortalidade[xxxv].  Não localizei dados sobre a atuação maçônica de Antônio Gomes Barroso, o que talvez se explique pelo ingresso na instituição em idade muito avançada.
            João Militão Henriques, ao contrário dos anteriores, foi figura de menor projeção nos negócios, e no tráfico em particular. Apurei, por diversos números da Gazeta, que costumava trabalhar como mestre de navios.  Segundo o registro de entradas no porto do Rio publicado em 29 de novembro de 1821, ele retornava de uma viagem de sessenta dias a Quelimane, no Índico, trazendo cativos consignados a Joaquim Pires Farinha.  À primeira vista, não alcançou posição eminente na Maçonaria, mas é possível confirmar, pela consulta ao Boletim do Grande Oriente do Brasil de março de 1875, que pertenceu aos quadros da loja União e Tranquilidade. 
            João Rodrigues Ribas, que residia na Rua da Quitanda, centro do Rio de Janeiro[xxxvi], era um indivíduo envolvido no comércio de cabotagem entre as províncias brasileiras; especialmente, ao que tudo indica, no transporte de mercadorias do Rio Grande do Sul para a Corte.  Podemos vê-lo, por exemplo, recebendo trigo, couros e sebo procedentes do porto de Rio Grande, como consta da seção comercial da Gazeta do Rio de Janeiro de 26 de junho de 1819.  O mesmo periódico, na edição publicada em 24 de junho de 1818, ratifica sua associação com o tráfico: naquela semana, o navio Príncipe Real, vindo de Cabinda sob o comando do mestre Inácio Alves Marta, desembarcara uma carga de escravos endereçada a João Rodrigues Ribas.
            Pela leitura do Boletim do Grande Oriente do Brasil de agosto de 1875 se nota que João Rodrigues Ribas e um provável irmão, Domingos Rodrigues Ribas, seguiam dentro da Maçonaria a orientação de um tio, Francisco Xavier Teixeira.  Este, quando os maçons decidiram dar “impulso à opinião pública” para promover a aclamação de D. Pedro como defensor perpétuo do Brasil, ofereceu 100 mil réis como contribuição para as despesas necessárias.  Declarando-se velho para tal missão, Xavier Teixeira indicou como emissários que poderiam ser encaminhados a Santa Catarina os dois Ribas.
            Constatei, por fim, que no período joanino Joaquim José de Siqueira era um súdito ativo no comércio de cabotagem.  Exemplares da Gazeta do Rio de Janeiro mostram que recebia vários tipos de carga, na maioria das vezes “casca de mangue”, mas também aguardente, açúcar, café, farinha, tabaco e milho, de portos como Santos, Caravelas, Mangaratiba e Guaratiba.  Segundo a edição de 13 de maio de 1812, recebeu um escravo vindo de Caravelas.  A julgar pelos dados disponíveis, não teve grande vulto como traficante.  Dispôs, porém, de projeção entre seus pares, e foi sem dúvida homem de amplos recursos.  Conforme a Gazeta de 17 de maio de 1817, contribuiu com dois contos de réis para subscrições administradas por Fernando Carneiro Leão e Amaro Velho da Silva.  Segundo as edições de 13 de agosto e 15 de outubro daquele ano, ofereceu ainda duzentos mil réis para a construção da nova casa do Senado da Corte, e a mesma quantia para o corpo dos Libertos D’El Rei.  Não há no site dos periódicos da BN mais indícios de seus laços com a Maçonaria, mas um texto do escritor maçônico José Castellani confirma Siqueira como membro da Loja Esperança de Niterói[xxxvii].      
            Os nexos entre a Maçonaria e o tráfico ultrapassaram a esfera dos negócios. Durante a década de 1820, e mesmo antes, maçons defenderam na tribuna e em obras doutrinárias a legitimidade da escravidão e da importação de cativos.  O bispo Azeredo Coutinho, falecido dois dias após sua posse nas Cortes de Lisboa[xxxviii], foi mencionado no Boletim do Grande Oriente do Brasil de junho de 1873 como um dos “nomes ilustres para abrilhantar a Maçonaria do Brasil”.  Ele via, como outros homens da época, a situação dos escravos como melhor do que a dos livres sem posses, e advogou, em escritos do início do século XIX, pela continuidade das relações escravistas.  Julgava que apenas quando contasse com uma “população correspondente a seu território”, além de condições econômicas mais favoráveis, o Brasil poderia abolir o tráfico negreiro[xxxix].
            Outro eclesiástico, monsenhor Muniz Tavares, figurou, conforme o Boletim do Grande Oriente do Brasil de setembro de 1895, entre os diretores das oficinas maçônicas de Pernambuco.  Consta da edição relativa aos meses de novembro e dezembro de 1897 a seguinte máxima, a ele atribuída: “A Maçonaria foi em todos os tempos a maior propugnadora dos direitos do homem. Por isso mesmo caminhou sempre de acordo com a igreja de Jesus Cristo”.  Membro da Constituinte de 1823, Muniz Tavares se alinhou aos parlamentares contrários às discussões sobre escravidão, cidadania dos libertos ou quaisquer mudanças no sistema.  Para ele, debates deste gênero ocorridos na assembleia francesa haviam provocado a revolução haitiana.  O monsenhor reprovava o excesso de compaixão de alguns de seus colegas diante de uma “pobre raça de homens, que tão infelizes são só porque a natureza os criou tostados[xl]”.
            José Clemente Pereira (1787-1854), que chegou a ocupar os postos de conselheiro de Estado e presidente do Tribunal do Comércio, atuou como deputado na legislatura de 1826 a 1829 pela província do Rio[xli].  Maçom, ingressou em 1822 na loja União e Tranquilidade[xlii], e segundo o Boletim do Grande Oriente do Brasil de julho de 1874, no qual foi louvado por conceber a construção de um hospício para alienados, alcançou na ordem o cargo de Grão-Mestre Adjunto. Como membro da Assembleia, Clemente Pereira lutou para que as pressões britânicas pelo fim do tráfico não resultassem na liquidação imediata daquela atividade.  Ele apresentou um projeto, em 19 de maio de 1826, pelo qual somente em 1841 seria proibida a introdução de africanos no país. Mesmo assim, de acordo com seu texto o tráfico não era equiparado à pirataria, e os cativos apreendidos constariam como libertos (não simplesmente livres), o que para Tâmis Parron sugere o reconhecimento ideológico “das práticas de escravização no continente africano[xliii]”. Ainda em 1826, se uniu a outros deputados, como Vergueiro e Paula Sousa, representantes de São Paulo, que combateram o tratado antitráfico negociado com a Inglaterra sob o pretexto de que, naquele tema, o Executivo passara por cima do Legislativo.  Clemente Pereira chegou a dizer que o tratado feria os “interesses da nação, a sua honra e dignidade, soberania e independência[xliv]”.

                                                                 José Clemente Pereira

            Segundo Vieira, o pernambucano Domingos Alves Branco Muniz Barreto foi um dos “homens de importância na corte” que reinstalaram a loja Comércio e Artes em 1821[xlv].  Quatro anos antes, na Bahia, ele compôs uma “Memória”, publicada em 1837 pelos defensores do tráfico.  Conforme Muniz Barreto, a atividade era “lícita” por não depender de pirataria, e sim de entendimentos com os “potentados africanos”.  Tais acordos evitavam a “imensa mortandade” de prisioneiros de guerra e traziam o benefício de incluir “gentios no centro do cristianismo e da verdadeira religião[xlvi]”.
            O cônego Januário da Cunha Barbosa também foi maçom.  A este respeito, o Boletim do Grande Oriente do Brasil de setembro de 1874 revela que “sua morte foi uma perda assaz sensível para a Maçonaria, cujo lugar entre as colunas deixou eternamente vago”. Secretário-geral do IHGB, participou na década de 1830 de discussões sobre a relação entre a escravidão negra e o presumido atraso na “civilização dos índios”.  Estudioso da presença jesuítica no Brasil e dos escritos de Manuel da Nóbrega, que se queixava da introdução de africanos na colônia, Barbosa acompanhava o dirigente jesuíta na percepção de que a escravidão era um “cancro”.  Não vislumbrava, todavia, sua extinção; pelo contrário: assinalou que ela “não poderia ser extirpada de maneira tão simples como a autonomia jesuítica e nem por meio de uma lei[xlvii]”.

Januário da Cunha Barbosa


Considerações finais:

            Os dados empíricos levantados ratificaram minha hipótese inicial.  O ingresso na Maçonaria era plenamente viável tanto para os principais protagonistas do tráfico quanto para os participantes menos notórios daquele comércio, desde que razoavelmente prósperos, pelo menos.  Também no terreno das ideias não se verificava contradição significativa entre o pertencimento aos quadros maçônicos e a defesa do tráfico.  Não obstante o reconhecimento de problemas humanitários relacionados às condições de vida dos cativos, para diversos intelectuais maçons este tipo de discussão poderia ser inconveniente na esfera pública, e, se inevitável, deveria sempre estar subordinado aos interesses políticos e econômicos das classes dominantes.         



[i] Ver Alexandre Mansur Barata.  Luzes e sombras: a ação da Maçonaria Brasileira (1870-1910).  Campinas: Editora da Unicamp, Centro de Memória-Unicamp, 1999, p. 29.
[ii] Ver Eliane Lucia Colussi.  A Maçonaria gaúcha no século XIX.  Passo Fundo: Ediupf, 1998, p. 34-35.
[iii] Cf. Alexandre Mansur Barata.  Luzes e sombras: a ação da Maçonaria Brasileira (1870-1910).  Op. cit, p. 31-32.
[iv] Idem, p. 56.
[v] Ver Antônio do Carmo Ferreira.  O Areópago de Itambé: A Maçonaria Revolucionária no Brasil.  Londrina: A Trolha, 2001, p. 11, 24, 29 e 39. 
[vi] Idem, p. 29-30.
[vii] Ibidem, p. 24.
[viii] Apud Eliane Lucia Colussi.  A Maçonaria gaúcha no século XIX. Op. cit., p. 85.
[ix] Ver Alexandre Mansur Barata. Luzes e sombras: a ação da Maçonaria Brasileira (1870-1910).  Op. cit., p. 59.
[x] Idem, p. 59/60.
[xi] Ibidem, p. 60-61.
[xii] Ver Cecília Helena de Salles Oliveira.  Sociedade e projetos políticos na província do Rio de Janeiro.  In: Independência: História e Historiografia/org. István Jancsó.  São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 509-510. 
[xiii] Ver Arcy Tenório D’Albuquerque.  A Maçonaria e a Independência do Brasil.  Rio de Janeiro: Editora Espiritualista, s/d., p. 137.
[xiv] Cf. Eliane Lucia Colussi.  A Maçonaria gaúcha no século XIX. Op. cit. p. 89.
[xv] Ver Alexandre Mansur Barata.  Sociabilidade maçônica e Independência do Brasil.  In: Independência: História e Historiografia/org. István Jancsó.  São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 680-681.
[xvi] Ver Eliane Lucia Colussi.  A Maçonaria gaúcha no século XIX. Op. cit. p. 303.
[xvii] Ver Alexandre Mansur Barata.  Sociabilidade maçônica e Independência do Brasil. Op. cit., p. 687.
[xviii] Ver Eliane Lucia Colussi.  A Maçonaria gaúcha no século XIX. Op. cit. p. 91.
[xix] Ver Alexandre Mansur Barata.  Sociabilidade maçônica e Independência do Brasil. Op. cit., p. 686-687.
[xx] Apud Antonio Carlos Jucá de Sampaio.  Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do setecentos.  In: Conquistadores e negociantes; Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos, América lusa, Séculos XVI a XVIII.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 250.
[xxi] Ver João Fragoso.  Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, séculos XVII a meados do século XVIII.  In: O Brasil Colonial, volume 3 (ca. 1720- ca. 1821).  Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2014, p. 173.  
[xxii] Ver Ilmar Rohloff de Mattos.  O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial.  São Paulo: Hucitec, 1990, p. 50-51.
[xxiii] Cf. Marcos Alvisi.  Magistrados e Negociantes na corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio.   Rio de Janeiro: Jurídica do Rio de Janeiro: FAPERJ, 2008, p. 47.
[xxiv] Ver Tâmis Parron.  A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 47-48.
[xxv] Cf. Pedro Henrique Pedreira Campos.  Nos caminhos da acumulação: Negócios e poder no abastecimento de carnes verdes para a cidade do Rio de Janeiro (1808-1835).  São Paulo: Alameda, 2010, 101-102.
[xxvi] Ver Manolo Florentino.  Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro; séculos XVIII e XIX.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 183-184.
[xxvii] Ver Jaime Rodrigues.  O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1808-1850).  Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2000, p. 127.
[xxviii] Encontrada em Maria Elisabete Vieira.  O envolvimento da Maçonaria Fluminense no processo de emancipação do Reino do Brasil (1820-1822) (Dissertação de Mestrado).  Porto Alegre: UFRGS, 2001,  Anexo 3. Disponível em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/21840/000339269.pdf?...0.
[xxix] Ver Manolo Florentino.  Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro; séculos XVIII e XIX.  Op. cit., p. 254 a 256.
[xxx] Idem, p. 243 e 266-267.
[xxxi]  Ver Gazeta do Rio de Janeiro, 3 de abril de 1816.
[xxxii]  Idem, edições de 13 de agosto de 1817 e 15 de outubro de 1817.
[xxxiv] Ver João Fragoso.  Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830).  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 353.
[xxxv]  Cf. Manolo Florentino.  Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro; séculos XVIII e XIX.  Op. cit., p. 242-244.
[xxxvi]  Ver Diário do Rio de Janeiro, 21 de junho de 1824, p. 4.
[xxxvii]  Ver https://bibliot3ca.wordpress.com/historia-do-gob/, consultado em 19 de outubro de 2016.
[xxxviii] Ver Octaciano Nogueira e João Sereno Firmo.  Parlamentares do Império.  Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1973, p. 151-152.
[xxxix] Cf. Jaime Rodrigues.  O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1808-1850).  Op. cit., p. 71-72.
[xl] Idem, p. 52-53.
[xli] Cf. Octaciano Nogueira e João Sereno Firmo.  Parlamentares do Império. Op. cit., p. 332-333.
[xlii] Maria Elisabete Vieira.  O envolvimento da maçonaria fluminense no processo de emancipação do reino do Brasil (1820-1822) (dissertação de mestrado).  Op. cit., p. 104.
[xliii] Cf. Ver Tâmis Parron.  A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865.  Op. cit., p. 63.
[xliv] Idem, p. 74 a 76.
[xlv] Maria Elisabete Vieira.  O envolvimento da maçonaria fluminense no processo de emancipação do reino do Brasil (1820-1822) (dissertação de mestrado).  Op. cit., p. 48-49. 
[xlvi] Cf. Jaime Rodrigues.  O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1808-1850).  Op. cit., p. 74-75.
[xlvii] Apud Jaime Rodrigues. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1808-1850).  Op. cit., p. 45-46.