O
que desejo salientar, a princípio, é que “nossa” última ditadura não foi, como
definem alguns, o assalto de uma corrente de militares conservadores ao poder
central, que julgavam mais seguro em suas mãos do que nas de civis corruptos ou
“populistas” (quando não tachados de
“comunistas” e “criptocomunistas”). O
regime político estabelecido em 1964 expressava o sucesso de uma vasta
articulação de interesses de classe, solidamente construída no interior de
múltiplas instituições, que tinham em comum os objetivos de preservar o poder
oligárquico e os valores elitizantes.
Uma
destas instâncias era, sem dúvida, a União Democrática Nacional (UDN), o
partido mais nitidamente de direita que existia no país. Costumamos pensar, e provavelmente com
acerto, no eleitor udenista típico como integrante de uma classe média
conservadora e urbana, com mediana ou elevada escolaridade, temeroso de que a
ascensão econômica dos trabalhadores sindicalizados comprometesse o seu
status. A UDN, que surgiu na década de
40 como um mosaico de grupos políticos contrários ao varguismo, acabou por se
consolidar como força aglutinadora daquele eleitorado, liberal no terreno da
economia e conservador nas questões referentes à organização da sociedade.
Entretanto,
se a viabilidade da representação parlamentar da UDN dependia dos votos daquele
segmento da classe média, vários de seus dirigentes de maior expressão eram
empresários muito ricos. Um deles,
Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de São Paulo (publicação chamada jocosamente de “alter-ego
da UDN paulista”), em 1962 já elaborava um “Roteiro da Revolução” para ser seguido
pelos militares anti-Goulart. Mesquita defendia em seus editoriais, além do
alinhamento mais automático do Brasil com os Estados Unidos e com a Europa
Ocidental, a adoção de um sistema econômico que privilegiasse a iniciativa
privada e reduzisse, consequentemente, a intervenção estatal[1]. Outro, o banqueiro Herbert Victor Levy
(1911-2002), também dono de jornais, participou ativamente das reuniões entre
empresários, políticos e militares organizadas pelo IPES (Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais) e pelo IBAD (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática), que também contribuíram expressivamente para o desfecho do golpe[2]. Ernani Sátiro (1911-1986), fazendeiro
paraibano continuamente eleito pela UDN desde a Constituinte de 1945,
confessou, em entrevista concedida a Maria Victoria Benevides no ano de 1977,
ter recebido verbas do IBAD para suas campanhas políticas; na ocasião, alegou
uma suposta justiça na estratégia de empregar o poder econômico contra o
comunismo[3].
A
exposição de todos os exemplos possíveis consumiria muitas laudas. O que
pretendo afirmar objetivamente é que, inspirado e incentivado por empresários,
o regime ditatorial não poderia deixar de exprimir, em sua política econômica,
as demandas da burguesia. Sabe-se que
os liberais mais ortodoxos foram frustrados, no decorrer das presidências
militares, em suas expectativas de desestatização. Porém, nada tiveram a reclamar no que se refere à implantação de
um modelo radicalmente concentrador de renda, com enorme prejuízo para os
assalariados.
Quando
assumiram o comando da equipe econômica do governo Castelo Branco, Roberto
Campos (1917-2001) e Octavio Gouveia de Bulhões (1906-1990) apontaram, ao
redigir o PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), que as causas da altíssima
inflação que assolava o Brasil eram o déficit público, o excesso de crédito
para o setor privado e os aumentos salariais[4]. Este diagnóstico resultou, naquela gestão,
na diretriz de promover uma forte contenção dos salários. De início, Castelo Branco utilizou suas prerrogativas
presidenciais para demitir de seus cargos os principais líderes sindicais, que
perderam os direitos políticos e, em alguns casos, foram processados por
subversão. Desta maneira, ficavam
bastante diminuídas as possibilidades de resistência. Com as mãos livres, Campos e Bulhões impuseram ao setor público
uma regra pela qual os salários teriam somente um reajuste anual, sistema
mantido até 1979. Como os aumentos do
setor privado permaneciam acima do que fora estipulado como meta no PAEG, o
governo obteve do Congresso, em 1965, a ampliação de sua faculdade de fixar
salários. Apenas em 1968, quando a
conjuntura econômica foi considerada estável, restabeleceu-se a negociação
coletiva[5].
Criando
o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), em setembro de 1966, o governo
liquidou também a estabilidade no emprego, prevista pela legislação anterior ao
golpe. Os empregadores adquiriram o
direito de demitir livremente seus empregados, sem justa causa. Os que ingressavam em novos empregos, por
sua vez, se viam obrigados na prática a assinar um documento que, ironicamente,
ficou conhecido como termo de opção.
Enquanto se mantinha a repressão contra os sindicatos, crescia a
rotatividade da mão de obra, de acordo com a intenção da equipe econômica[6].
Rebaixada
a massa salarial, os trabalhadores precisaram recorrer a duas estratégias para
reforçar sua renda: a busca por horas extras e o crescimento do número médio de
pessoas que trabalhavam em cada família.
Isto gerou, além da expansão do trabalho infantil, a depreciação do
próprio valor da mão de obra, em decorrência do excesso de oferta. Enquanto isso, na medida em que a legislação
estimulava as empresas a dispensarem empregados nos períodos próximos aos dissídios,
contratando outros com custo menor, aumentou também a disparidade entre os
salários maiores e os mais baixos[7]. Os funcionários, públicos ou privados, que
detinham funções ligadas ao controle da produção ou nos altos escalões
burocráticos, recebiam em média reajustes muito superiores aos do
operariado. Assim, a renda dos 20% mais
ricos passou de 54% em 1960 para 62% em 1970 e 67% em 1976; a dos 50% mais
pobres, inversamente, decresceu de 17,7% em 1960 para 14,9% em 1970 e 11,8% em
1976[8].
Apesar
da conjuntura extremamente desfavorável às mobilizações populares, o operariado
não permaneceu passivo. Entrando em
greve em meados de 1968, os metalúrgicos de Contagem (MG) pararam a Siderúrgica
Belgo-Mineira. O movimento se alastrou
e obteve a adesão de 15 mil trabalhadores, que ao final de dez dias arrancaram
um acordo do patronato. Na mesma época,
em Osasco (SP), metalúrgicos e estudantes atuaram em conjunto para ocupar a
Cobrasma, empresa fabricante de material ferroviário. Desta vez, o governo enviou tropas para efetuar a desocupação,
realizada com violência. O Ministério
do Trabalho interveio no Sindicato dos Metalúrgicos local, cujo presidente,
José Ibraim, se refugiou na clandestinidade[9].
Como
se não bastassem a repressão e a política de arrocho, a ditadura era desonesta
até na aplicação de suas próprias regras.
Em agosto de 1977, o governo admitiu em caráter oficial que os índices
de inflação de 1973 e 1974 tinham sido manipulados no sentido de desvalorizar
ainda mais os salários. A defasagem
apurada dos salários reais atingia 31,4%, o que levou os Sindicatos de
Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (SP) a exigir correção. O processo desembocou nas greves de 1978 e
1979, nas quais milhões de trabalhadores cruzaram os braços[10].
Poderíamos
alinhar indefinidamente outros indícios de que os governos ditatoriais atuaram
sistematicamente contra a maioria da população brasileira e favoreceram as
oligarquias financeiras, industriais, comerciais e agrárias. Hoje, dia 31 de março de 2012, constato que só
há um fato a ser comemorado: a completa desmoralização da ditadura, cuja
memória é renegada até por muitos dos que dela extraíram grandes
vantagens.
[1]
Cf. Maria Victoria de Mesquita Benevides.
A UDN e o udenismo. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 128/129.
[2] Idem, p.
127.
[3] Ibidem, p.
122.
[4]
Ver Thomas Skidmore. Brasil: de
Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2004 (8ª ed.), p. 69.
[5]
Idem, pp. 80/81.
[6]
Cf. Lincoln de Abreu Penna. República
brasileira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p. 268.
[7]
Cf. Sônia Regina de Mendonça e Virgínia Maria Fontes. História do Brasil recente, 1964-1992. São Paulo, Ática, 1996, pp. 26/27.
[8] Idem, pp.
31/32.
[9] Cf. Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1998, p. 478.
[10] Idem, p.
499.