terça-feira, 31 de julho de 2012

Sobre os meus escassos minutos de fama: mais atos falhos de Olavo de Carvalho

               Comentei, em três postagens, os quase dez minutos do acesso de fúria com que Olavo de Carvalho me brindou no True Outspeak (The Real Talkshit) de 25 de julho, como resposta à minha matéria Imposturas de Olavo de Carvalho, editada dezenove dias antes.  Sem muito espanto, vejo agora que mereci também um revide por escrito, via Mídia sem Máscara, o exótico site de direita em que se reúnem adeptos de variadas teorias da conspiração.  Ali aprendemos, por exemplo, que Karl Marx, após mergulhar no satanismo, escureceu, engordou e criou pelos em todas as partes do corpo:

http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/13281-criando-uma-celebridade.html

               Logo no primeiro parágrafo, me deparo com um dos recursos prediletos do astrólogo que se tornou dublê de cientista político: o uso de dados inflados para mobilizar emocionalmente sua plateia.  Olavo alega que escrevi 120 laudas contra ele!  Faço um breve inventário:  em Imposturas, são 14 parágrafos e a transcrição da fala criticada, que é curta; nas três tréplicas juntas, mais 40 parágrafos, excluindo as réplicas do dito cujo; nas duas postagens intituladas Balelas de Olavo de Carvalho, outros 26 parágrafos, fora a colagem de trechos escaneados de livros que emprego para ilustrar os desastres do pretenso guru no campo da História, mas que evidentemente não podem ser contabilizados como produtos da minha mente.  Nada mais, ainda que não possa negar a razão de quem vier a me repreender por tamanho desperdício de tempo com personagem tão raramente levado a sério.  Pensando bem, como Olavo já decretou que Isaac Newton era uma besta, talvez tenha estudado metodologias de cálculo inacessíveis aos pobres mortais, conseguindo de fato gastar as pobres 70 páginas de A4.  Mudemos de assunto, portanto.  
             Olavo me concede o título de historiador numa perspectiva "generosa e elástica".  Devo admitir, sem polêmica, que não sou um Ciro Flamarion Cardoso.  Porém, bem ou mal, tive dois projetos de pesquisa vistos positivamente pela academia, que me levaram ao mestrado e ao doutorado (este ainda em curso) na Universidade Federal Fluminense.  Na pior das hipóteses, posso informar que qualquer diplomado em História é historiador, pouco importando sua projeção midiática.  Porém, utilizando um critério comparativo, não teria do que me envergonhar diante de um filósofo sem diploma de Filosofia, cuja "excelência" é atestada, de preferência, nos comentários das orelhas dos livros que escreve ou em tópicos da comunidade virtual que seus amigos construíram para enaltecê-lo.  Que  contribuição traz Olavo ao campo filosófico, além do expediente de encerrar monólogos com frases de impacto no estilo "vá chupar uma piroca"?
            Não obstante o fato de jamais ter ultrapassado o nível de colunista de segunda linha de alguns jornais, servindo também eventualmente como foco de curiosidade sociológica em matérias de  semanários sobre intelectuais de extrema direita, Olavo de Carvalho, ao aludir à minha falta de notoriedade, atribui a si mesmo os meus poucos minutos de fama.  O acesso de megalomania, nada incomum para quem se considera o autêntico líder da direita brasileira, sem ter concorrido a uma mera vereança no interior paulista em que nasceu, impede o auto-exilado de perceber sua total irrelevância fora da Internet, na qual, sejamos justos, logrou fundar uma espécie de seita, formada por seguidores que o defendem furiosamente, em regra com os mesmos impropérios do líder. 
            Ainda mais pretensiosamente, Olavo reivindica o duvidoso privilégio de monopolizar o rancor de cinco mil pessoas, alistadas na comunidade orkutiana Olavo de Carvalho nos Odeia, entre as quais me incluo.  Joga com o provável desconhecimento da maioria, ao dizer que ali se vomitam toneladas diárias de "queixas e ranzinzices" contra ele.  A citada comunidade, atualmente bastante esvaziada pela decadência do Orkut, sempre foi basicamente humorística: as postagens, em regra, se referem a aspectos caricatos da figura e da pregação de Olavo ou de muitos outros direitistas.  Sobre os enredos que o filósofo cria, vendo em mim uma espécie de estudante que descobriu a pólvora e difunde a fórmula aos quatro ventos, ao invés de retrucar talvez eu precise lhe agradecer por avaliar muito por baixo a minha idade.  Porém, quanto às tendências suicidas, não preciso lembrar quem tosse on line milhares de vezes por ano.  Produzir este blog é muito mais um prazer do que uma alternativa à morte pelo 38 que nem tenho na gaveta.    
           Deixando as vaidades de lado, observemos algo de maior importância.  Olavo protesta contra a prática, adotada por diversos "detratores", de coletar informações isoladas de seus textos para desconstruir a validade das mesmas.  Com chocante sinceridade, ele expõe que, nestes casos, "apenas espalho ideias entre o público geral sem o menor intuito de prová-las, quanto mais de validá-las até seus últimos detalhes no confronto com argumentos opostos".
          Imaginemos uma situação simétrica: um determinado articulista antiamericano, desejando insuflar seus leitores contra o "Grande Satã", começa a descrever bombardeios de áreas civis por aviões dos EUA ocorridos durante a Guerra do Vietnã; numa certa altura, resolve contar que "os americanos mataram dez milhões de vietnamitas, trinta vezes mais do que os russos mataram no Afeganistão"!  Não acredito, em absoluto, que Olavo de Carvalho classifique a sentença como uma inocente peça de propaganda.  Faria em alto e bom som uma proclamação contra a desonestidade, muito embora não aceite a recíproca.  
         Quando Olavo grava um vídeo no qual "revela" que 90% dos escravos do Islã eram castrados, ou que os muçulmanos escravizaram três (ou cinco) vezes mais gente do que os ocidentais, sabe que não guarda o menor compromisso com a verdade.  Mas sabe ainda melhor que tais afirmativas  serão repetidas sem filtro por centenas de conservadores fanáticos, que nele creem como se fosse o mais infalível dos profetas.  Contudo, para que se preocupar com a precisão, se cumpre à risca o objetivo, firmado com seus patrões, que certamente não são os incautos que depositam caraminguás numa conta do Bradesco, de apresentar islâmicos, militantes negros, gays, feministas, ecologistas e comunistas como inimigos coligados da humanidade?
        Como já declarei antes, Olavo possui o direito humano inquestionável de ficar com raivinhas ao se ver apanhado em chutes e contradições, mas não deveria recusar a um historiador o direito de apontar balelas "históricas", quando algumas das falácias publicadas no Mídia sem Máscara e em sua página pessoal irritariam até autores de telenovelas de época.      
        Causa riso, sem dúvida, observar Olavo em seus delírios de aprendiz de psicólogo.  Divirto-me, em particular, ao ler que "O que define a falsificação histérica da realidade é que o sujeito não sente como real aquilo que vive, mas aquilo que imagina".  Que diremos, então, de O. de C., que há cinco dias, em programa de rádio, rotulou o jornalista cristão libanês Amin Maalouf de "mero propagandista da revolução islâmica" e saudou o historiador Manolo Florentino por suas "pesquisas sobre a escravidão na Bahia", quando a obra de Florentino se refere basicamente ao Rio de Janeiro?  Merece ser absolvido, visto que "imagina" somente o que favorece a consolidação das ideias que quer espalhar?    
        Para concluir, registro o quanto também é engraçado ver expressões como "chavão dos anos 60" virem do teclado de alguém que se dedica, essencialmente, a requentar a pizza macarthista dos anos 50, apenas acrescentando novos espantalhos.  Mais cômico ainda é vê-lo prometer uma série a meu respeito apesar da minha insignificância.            
                                       

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Quem são os verdadeiros idiotas latino-americanos?


"Os Estados Unidos parecem destinados pela providência a encher a América de miséria em nome da liberdade".
Simón Bolívar (1783-1830), em carta de 5 de agosto de 1829 endereçada a Patrício Campbell.


        Desde outubro de 1820, quando David Jewitt, capitão do corsário Heroína, tomou posse das Malvinas em nome do governo de Buenos Aires, os portenhos exerciam a soberania sobre as ilhas, onde se instalou uma pequena colônia dedicada à criação de ovinos.  Em meados de 1829, foi estabelecida uma guarnição militar, cujo comando coube ao comerciante franco-alemão Louis Vernet.  Ainda naquele ano, Juan José Viamonte, governador da província de Buenos Aires, proibiu a pesca da baleia na região.  Confrontado com a impossibilidade de fazer valer a lei, Juan Manuel Rosas, sucessor de Viamonte, criou em 1831 um imposto a ser pago pelos navios pesqueiros.  Estes últimos, entretanto, continuavam a passar por Puerto Soledad sem recolher um único centavo.  Nesse ínterim, Vernet tomou a iniciativa de apresar três barcos norte-americanos que carregavam peles de foca sem permissão. 
       O incidente resultou em vingança, a 28 de dezembro de 1831.  A fragata Lexington, da marinha dos Estados Unidos, desembarcou em Puerto Soledad, destruiu a artilharia existente no local, queimou a pólvora da guarnição e capturou seis oficiais argentinos.  Rosas instruiu seu ministro Maza a apresentar um protesto formal.  O cônsul norte-americano Slacum e o encarregado de negócios Bayles foram expulsos de Buenos Aires.  Antes de sair, porém, a dupla informou à representação britânica que as ilhas estavam desguarnecidas e poderiam ser tomadas com facilidade.  Um pouco mais tarde, em 2 de janeiro de 1833, a corveta inglesa Clio, comandada por John James Onslow, chegou às Malvinas.  Onslow comunicou ao governador provisório das ilhas, Pinedo, que tinha ordens de ali içar o pavilhão britânico e  expulsar as tropas argentinas.  Sem meios para resistir, Pinedo obedeceu.  O ministro Maza voltou a protestar, sem receber qualquer resposta da parte de Londres.

                                                                       (...)

         Em 1851, quando o Paraguai era presidido por Carlos Antonio López, foi designado cônsul dos Estados Unidos em Assunção Edward A. Hopkins, sócio da empresa United States and Paraguay Navigation, sediada em Rhode Island.  Após tentativas dos norte-americanos de influir nos litígios territoriais entre os países da região e de controlar a navegação no rio Paraná, o governo paraguaio decidiu, em 1854, não ratificar um tratado de comércio e navegação ambicionado pelos Estados Unidos.  A United States and Paraguay Navigation, após ser punida por transgredir a legislação paraguaia, acabou impedida de operar no país.  Hopkins, que brigou com soldados guaranis, foi expulso e passou a atuar sucessivamente junto aos presidentes Pierce e Buchanan como um verdadeiro inimigo do Paraguai. 
         Logo em seguida, o navio Water Witch, da marinha norte-americana, violou uma autorização de trânsito que lhe havia sido concedida e ultrapassou os limites do Paraguai, atingindo o porto matogrossense de Corumbá.  O governo López, então, emitiu um decreto que proibia o ingresso de navios de guerra estrangeiros em águas paraguaias.  Todavia, em fevereiro de 1855, o Water Witch, ignorando a proibição, tentou ultrapassar uma barreira no rio Paraná, em frente ao Forte Itapiru.  Recusando-se os norte-americanos a retroceder, mesmo com os disparos de advertência feitos a partir do forte, os paraguaios alvejaram a embarcação, quebrando-lhe o leme e matando o timoneiro.  Somente nestas condições ocorreu a retirada.  
         Respondendo a uma forte campanha na imprensa, o Congresso dos Estados Unidos, em maio de 1857, aprovou o envio ao Paraguai de uma armada de vinte vasos de guerra, com a finalidade de obrigar o governo López a pedir desculpas.  Esta força chegou ao seu destino no começo de 1859.  Incapaz de confrontá-la, López se viu obrigado à rendição, emitiu as desculpas pretendidas e assinou, sob pressão, o tratado de interesse dos Estados Unidos.       

                                                                       (...)

          Os governos do Chile e da Bolívia, em 1872, assinaram um tratado secreto para solucionar suas disputas fronteiriças.  Estava em jogo a exploração, por capitalistas ingleses e chilenos, das ricas jazidas de salitre existentes no litoral boliviano e no sul do vizinho Peru.  Dois anos mais tarde, um acordo suplementar pelo qual a Bolívia se comprometeria a não aumentar os impostos sobre o salitre durante 25 anos foi rejeitado pelo Congresso deste país.  Tropas chilenas, logo em seguida, ocuparam os territórios em que se localizavam as jazidas. 
         Ainda em 1874, a Bolívia assinara com o Peru um tratado de defesa, com o objetivo de impedir que o Chile estabelecesse o domínio sobre a costa pacífica da América do Sul.  O crescimento das hostilidades resultou na Guerra do Pacífico (1879-1883), conflito no qual as disciplinadas forças armadas chilenas estavam destinadas a triunfar facilmente sobre seus adversários.  No Peru, o Partido Civil vitorioso nas eleições de 1872 tinha dissolvido o Exército, constituindo uma Guarda Nacional com vinte batalhões sediados em Lima.  Iniciada a guerra, o presidente Mariano Ignacio Prado deixou o país, sob o pretexto de comprar armas, fato que foi interpretado como uma fuga às custas do Estado.  Assumindo a defesa da capital, Nicolás de Piérola estabeleceu-se como ditador.
        Quando tomaram Lima, os chilenos não sabiam com quem firmar negociações de paz, tamanha a desordem interna peruana.  Um general, Andrés Cáceres, organizou uma força guerrilheira que tanto combatia os chilenos quanto recrutava camponeses para o ataque aos latifundiários.  Estes, por sua vez, pediam ajuda ao exército ocupante para controlar a rebelião e restabelecer o status quo
         Sem desprezar os objetivos da burguesia chilena, Halperin Donghi revela que a Guerra do Pacífico levou os capitalistas europeus (e secundariamente os norte-americanos) a tomarem o partido do Chile. Após a retirada dos chilenos, o governo britânico e seus banqueiros em atividade na região promoveram um verdadeiro saque à economia peruana.  Passaram a cobrar o pagamento de empréstimos no total de 51 milhões de libras esterlinas.  Perdidos os territórios produtores de salitre, decadentes suas reservas de guano e com a agricultura de exportação em má fase, o Peru simplesmente não tinha como pagar.  Foi assinado, então, o Contrato Grace, através do qual o governo peruano cedia aos credores a exploração da malha ferroviária durante 66 anos, aceitava a importação sem ônus das máquinas e materiais necessárias à sua reconstrução e permitia o livre trânsito no lago Titicaca; obrigava-se a entregar três milhões de toneladas de guano, dois milhões de hectares de selva na região do Perené e ainda a pagar 33 prestações de 80 mil libras.    

                                                                    (...)

            A exposição destes episódios já distantes no tempo e pouco conhecidos dos brasileiros não funcionará como introdução a um libelo antiamericano ou antibritânico.  Antes servirá para que lancemos nossas vistas sobre um tipo humano que, sem ser muito original, multiplicou notavelmente sua presença na América Latina a partir da ascensão de Margaret Thatcher e Ronald Reagan aos governos do Reino Unido e dos Estados Unidos.
            Pretendendo-se porta-vozes da modernidade e adeptos do único modelo viável de sociedade, os ditos neoliberais, por vezes chamados de entreguistas pela militância sindical, ou de yuppies quando especialmente fascinados pelo consumo de ponta, pareceram de todo vencedores no início dos anos 90, quando simultaneamente estavam no poder Fernando Collor no Brasil, Carlos Salinas no México e Carlos Menem na Argentina.
            O ideário neoliberal, a grosso modo, consistia em vender as empresas estatais, de preferência para gestores competitivos vindos dos países do Primeiro Mundo, instituir a "livre negociação" de preços e salários, eliminar custos trabalhistas e direitos sociais, reduzir ou mesmo quebrar a influência dos sindicatos e das organizações populares, liberar importações com ou sem contrapartida dos exportadores.  No plano cultural, em promover um alinhamento com o mundo anglo-saxônico, caracterizado pelo individualismo e criador por excelência do regime de livre iniciativa.  Escritores talentosos como o peruano Mario Vargas e o venezuelano Carlos Rangel (este falecido prematuramente em 1988) apresentavam seus conterrâneos de tendência política nacionalista ou esquerdista, ou mesmo as pessoas ligadas a manifestações culturais de inspiração não ocidental, como elementos atrasados, caipiras, possivelmente fadados a desaparecer com a evolução das sociedades da região.
           A rápida mudança para o Paraíso do desenvolvimento, como se sabe, não se concretizou, apesar do entusiasmo de seus profetas.  Um a um, os governantes neoliberais naufragaram entre planos econômicos fracassados, escândalos pessoais e denúncias de saque ao patrimônio público.  Esgotado o modelo, são raros os políticos latino-americanos que se atrevem, em campanha, a declarar-se liberais ou conservadores.  Sem alguns apelos ao distributivismo e à justiça social, ainda que falsos, é impossível, ou quase, o êxito eleitoral.  Isto não significa, obviamente, que a esquerda esteja no melhor dos mundos.  A configuração político-econômica do século XXI, bastante marcada pelos ganhos anteriores da burguesia, materiais e ideológicos, limita o campo de ação dos socialistas de todos os matizes que virtualmente cheguem à chefia de Estados que perderam, em larga margem, poder de decisão.
            Entretanto, mesmo com a crise que se abate sobre os países outrora denominados "centrais", os neoliberais, neocons e yuppies tardios prescrevem a velha receita: alinhamento incondicional, submissão às diretrizes econômicas "metropolitanas", imitação fiel nos terrenos da estética e da cultura.  Quando desprezados, com razão, por vezes cultivam abertamente o saudosismo das defuntas ditaduras.  Têm como referência o Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, obra de Narlochs e Tios Reis hispânicos. 
            Convido-os, passando pelas estações que iniciam esta postagem com conexões para muitas outras que podem ser sugeridas, a fazer o inventário da renúncia à autodeterminação de seus respectivos países.  Creio que deste processo emergirão os verdadeiros "verdadeiros idiotas". 
                                                           

Referências:

COTLER, Julio.  Peru: classes, Estado e nação.  Brasília: Funag, 2006, pp. 91 a 106.
DONGHI, Tulio Halperin.  História da América Latina.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, pp. 158/159. 
PEÑA, Paco.  As intervenções norte-americanas na América Latina.  In: O livro negro do capitalismo/org. Gilles Perrault.  Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 302 a 303.
PIGNA, Felipe.  Los mitos de la historia argentina, vol. 2.  Buenos Aires: Planeta, 2005, pp. 197 a 199.    

sábado, 28 de julho de 2012

Tréplica ao True Outspeak de 25 de julho III

     

        Tratei nas duas postagens anteriores de atos falhos e empulhações de Olavo de Carvalho.  Hoje concluo desconstruindo sua pregação etnocêntrica primária, que infelizmente vai de encontro ao que querem ouvir algumas centenas de indivíduos fanatizados, órfãos tardios da UDN, do Integralismo e similares.  Em 12:40, Olavo faz alusão a uma suposta superioridade moral dos sistemas escravistas da América sobre o cativeiro em terras muçulmanas:   
    
Enquanto para a América e para o Brasil, muito mais no Brasil do que na América do Norte, a maior parte dos escravos eram homens, que era para trabalhar na lavoura, no Islã eram mulheres para ser exploradas sexualmente pelos seus patrões.  Você vê o alto nível moral que era a escravidão islâmica.


        Diversos especialistas se referem à esterilidade das discussões sobre "escravidão melhor" e "escravidão pior".  Todo senhor de escravos, querendo dar vazão a tais impulsos, poderia agredir fisicamente, humilhar com palavras ou sodomizar a sua "propriedade", em qualquer época ou lugar, o que não impede os apologistas das diferentes civilizações de exaltarem exemplos particulares para ostentar a benignidade da escravidão entre os seus.  Mas façamos algumas considerações.  Sem negar que a introdução de mulheres africanas nas sociedades muçulmanas do Oriente Médio constituiu uma grande violência, mesmo nos casos em que se viram transformadas em esposas, exponho, através de um parágrafo de Jacques Jomier, algumas das regras deste cativeiro:

Do ponto de vista do estatuto jurídico das escravas mulheres, note-se que aquelas que tiverem dado um filho ao patrão são colocadas em uma categoria à parte.  São denominadas Omm walad (mãe de uma criança) e não podem mais ser vendidas.  Têm que ser alforriadas ao morrer seu patrão.  Compare-se com Deuteronômio 21, 10-14), onde a prisioneira de guerra é feita esposa; se não agradar mais e for repudiada, é tratada como uma mulher livre e não pode ser vendida (Islamismo, história e doutrina, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 157) 

         Não tenho a ingenuidade de crer que senhores muçulmanos jamais escravizaram seus próprios filhos.  Mas é certo que não havia nenhum dispositivo de teor semelhante nas legislações ocidentais.  Imagino o que um historiador egípcio ou turco diria sobre o "padrão moral superior" do Ocidente, sugerido por Olavo, ao ler este trecho de Ronaldo Vainfas:

Degradadas e desejadas ao mesmo tempo, as negras da terra seriam o mesmo que as soldadeiras de Lisboa no imaginário de nossos colonos: mulheres aptas à fornicação em troca de alguma paga.  E na falta de mulheres brancas, fossem para casar, fossem para fornicar- pois sempre escassearam as Nóbregas e as Baldayas do Reino- caberia mesmo às mulheres de cor o papel de meretrizes de ofício ou amantes solteiras em toda a história da colonização.  Nos séculos vindouros, à degradação das índias e à sua reificação como objeto sexual dos portugueses somar-se-iam as das mulatas, das africanas, das ladinas e das caboclas- todas elas inferiorizadas por sua condição feminina, racial e servil no imaginário colonial.  (Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 73)


        O mesmo autor demonstra objetivamente que na América Portuguesa, principal área escravista do continente, tanto a autoridade civil quanto a eclesiástica deixavam os senhores de mãos livres no que se refere à prole de suas escravas:

E assim como Alexandre VI tolerara a criada-concubina que fosse indispensável ao serviço do seu amo, também as Constituições [Sinodais da Bahia] de 1707 curvar-se-iam aos hábitos coloniais, reconhecendo tacitamente o direito dos senhores de se amancebarem com suas escravas.  Reconheceram-no ao fixarem como prova de concubinato o fato de um homem manter em casa alguma mulher que ali engravidasse, não sendo com ela casado, fosse criada ou qualquer outra, desde que livre.  Ao isentar os senhores, a decisão eclesiástica admitia, também veladamente, que outros homens poderiam engravidar as escravas, mulheres reduzidas a objeto sexual na Colônia, vulneráveis a quaisquer "tratos ilícitos".  Mas a Igreja era perfeitamente sabedora de que os senhores eram igualmente suspeitos de tal paternidade, e ainda assim os não incriminou na lei, ciente de como seria inócua tal decisão.  (Trópico dos pecados, p. 85)


          Embora saiba disto, sem dúvida, Olavo se reporta (13:56) às passagens do Corão que naturalizam ou regulam aspectos da escravidão, como mais uma prova da desvantagem moral, ou ideológica, dos muçulmanos perante o Ocidente:

E lá nunca teve nada [movimento abolicionista].  Lá nunca ninguém pregou a abolição e por quê?  Porque no Islão o Corão assegura o direito de ter escravos, então ninguém vai abrir a boca contra o Corão.


          Vejamos o que afirma Jacques Jomier, que casualmente era um padre dominicano, residente durante muitos anos no Egito:


O Islã admitiu a escravidão como um fato social contra o qual ninguém sentia a necessidade de reagir imediatamente.  Também o Cristianismo, desde a sua aparição, não reagiu contra a escravidão.  Em determinado momento o Corão toma como exemplo de realidades evidentes a desigualdade que existe entre o escravo e o homem livre (Corão 16, 73/71).  Mas a questão foi envenenada por uma apologética antimuçulmana que quis descarregar sobre o Islã toda a vergonha dessa prática hoje em dia abolida.  (Islamismo: história e doutrina, p. 155)


          Nota-se, décadas após a elaboração da obra de Jomier, que a mesma propaganda facciosa continua a pleno vapor, e Olavo de Carvalho é um de seus modestos agentes.
          Encontramos em Charles R. Boxer provas mais contundentes de que a religião, no mundo ocidental, também serviu para legitimar não só a escravidão, como também o tráfico:

A posição da Igreja em face da escravidão foi, para usar uma linguagem amena, altamente permissiva durante quase quatro séculos.  A série de bulas papais editadas a pedido da Coroa portuguesa, entre 1452 e 1456, autorizando e incentivando a expansão ultramarina de Portugal, deu ao país ampla liberdade para subjugar e escravizar os povos pagãos que encontravam pelo caminho, caso fossem "hostis ao nome de Cristo".
(...)
As bulas pontifícias do período entre 1452 e 1456, que autorizaram expressamente a escravidão de negros da África Ocidental, foram citadas como canonicamente válidas pelo "esclarecido" bispo de Pernambuco, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, no documento que ele redigiu em defesa do tráfico de escravos na América portuguesa. (A Igreja militante e a expansão ibérica: 1440-1770.  São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 45/46)


           Boxer nos informa, também, que o clero regular chegou a se associar ostensivamente aos traficantes nas áreas sob influência portuguesa:

A irrupção das hordas canibais jagas da África Central no reino do Congo em 1568-1573 devastou, durante anos sem fim, várias regiões, antes de estes selvagens serem expulsos por uma força expedicionária portuguesa.  Mas a razão fundamental do falhanço definitivo do começo prometedor da civilização ocidental no Congo foi, sem sombra de dúvida, a estreita ligação que rapidamente se desenvolveu entre os missionários e os traficantes de escravos.  Esta ligação estava firmemente estabelecida antes da invasão jaga.  (O império marítimo português, 1415-1825.  Lisboa: Edições 70, 2001, p. 108)

         Para ratificar a vocação escravagista do Islã, Olavo assinala (14:52) que além dos africanos numerosos europeus sofreram o cativeiro mouro ou turco:


Escravos africanos foram dezessete milhões.  Tem mais um milhão de brancos.

             Irrefutável pela perspectiva factual, o argumento abre um telhado de vidro, pois temos  aqui um caso típico de "chumbo trocado".   Já constatamos em outra postagem, através de Perry Anderson, o expressivo volume do trabalho escravo de muçulmanos na Península Ibérica.  Com Alberto da Costa e Silva, podemos verificar que as incursões dos piratas mouros em busca de escravos brancos na Europa Mediterrânea tiveram contrapartida em ações do Estado português, ainda durante a Idade Média.  Percebe-se que a escravização de muçulmanos não era uma eventual e rara represália contra inimigos derrotados em combate, e sim um comportamento habitual, que atendia a necessidades econômicas regionais:

Como era abundante a oferta nos Bálcãs e no Cáucaso, só se julgava conveniente abastecer-se nos portos do Magrebe, quando isso não significava a renúncia  a recebimentos em ouro.  Não havia, contudo, objeção a se conseguirem escravos pelas armas.  Tanto assim que, em 1317, D. Diniz, o rei poeta de Portugal, não só autorizou um navegante genovês, Manuel Pesagno, a exercer, com esse objetivo, o corso, como se reservou o direito de adquirir os cativos que ele trouxesse, a cem libras por cabeça. (A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 142)

Enquanto isso, na outra ponta do Mediterrâneo, na península Ibérica, os êxitos da reconquista foram reduzindo o número de cativos que se obtinham nos cercos, razias e batalhas.  Já agora era necessário ir filhá-los nas Canárias e em ataques de pirataria a barcos que atravessavam o estreito de Gibraltar ou navegavam em suas proximidades, ou então em acometidas contra as praias mouras.  Essas investidas contra os mouros tinham-se tornado uma constante durante o século XV e se ampliaram ainda mais depois da conquista de Ceuta em 1415.  Daquela praça marroquina, da qual se afastaram as caravanas do Sudão, os portugueses saíam em guerra contra a vizinhança, a saquear as vilas e a prear escravos.  Destes e também dos capturados nas operações de corso, alguns seriam negros.  Gomes Eanes da Zurara conta-nos, no capítulo XVI do livro II da Crônica do Conde D. Pedro, que, de um barco que saía de Larache, se tomaram por presa 56 mouros negros, dos quais três mulheres.  (A manilha e o libambo, pp. 143/144)

            Para concluir uma série que já se alongou em demasia, retorno a Perry Anderson, que ironicamente é o único autor decididamente de esquerda que emprego para desmontar os disparates de Olavo.  O marxista inglês narra que populações eslavas, para se libertar da opressão escravagista dos mercadores italianos, tomaram a providência extrema de se atirar na direção do domínio turco.  A passagem mostra que não havia impedimento, jurídico ou moral, à escravização de cristãos por outros cristãos, o que aliás se repetiu em vastíssima escala nas Américas:  

Na Bósnia, onde o campesinato bogomil fora especialmente perseguido pela Igreja Católica como "patarene" heréticos e entregue às incursões de mercadores venezianos e ragusianos que vinham aí em busca de escravos, as massas rurais e setores da nobreza local deram as boas-vindas ao governo turco e foram amplamente convertidos ao Islã.  Braudel escreveu categoricamente: "A conquista turca dos Bálcãs só foi possível por se haver beneficiado de uma espantosa revolução social.  Uma sociedade senhorial que oprimia  duramente o campesinato foi tomada de surpresa e caiu por si mesma. (Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.  São Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 280/281)  


          Só me resta lamentar que pregações tão inconsistentes quanto as de Olavo de Carvalho encontrem ressonância.  Tudo poderia se resumir a humor involuntário, mas é fato que, após ouvirem o programa que já foi jocosamente apelidado de talkshit, centenas de pessoas irão repetir como papagaios de pirata que "90% dos escravos dos árabes eram capados", que "o Islã escravizou três (ou cinco!) vezes mais do que o Ocidente" ou baboseiras ainda piores.   


          


           


                

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Tréplica ao True Outspeak de 25 de julho (II)


          Conforme o prometido, sigo com a exposição das novas imposturas de Olavo de Carvalho, iniciada ontem.  Apenas mudo ligeiramente a programação: como o filósofo do Mídia sem Máscara, à maneira de Paulo Francis, ainda que com muito menos graça, fabrica em série dados estapafúrdios para mobilizar emocionalmente seus seguidores, percebo que será necessária uma terceira rodada.  Agradeço antecipadamente pela paciência que me for dispensada. Ouvimos em 12:22 a seguinte pérola:


"[O Islã] Chegou a escravizar 17 milhões de africanos, três vezes mais do que veio para o Ocidente."

       Olavo, décimos de segundo antes, quase disse "o quíntuplo", o que tornaria a situação ainda mais grotesca.  Voltemos rapidamente à minha bibliografia "mumificada".   Quando recitava sua lista do Dr. Google, o auto-exilado me recomendou a leitura de Le génocide voilé, de Tidiene N'Diaye.  Como um quadril operado por ora me impede a busca, recorro a um "genérico", Pap Ndiaye, que se debruça sobre temas semelhantes (Os escravos no sul dos Estados Unidos, in: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004).  As estimativas que o autor apresenta na página 122 atribuem ao tráfico de iniciativa europeia, entre os séculos XVI e XIX, 12,1 milhões de vítimas, enquanto o comércio de almas muçulmano, no mesmo período, teria atingido 4,1 milhões.  Ndiaye denuncia, efetivamente, o silêncio acerca do tráfico islâmico e seus horrores, inclusive a produção em série de eunucos.  Isto não impede que, na página 120, haja registro do seguinte juízo de valor:

"No século XIX, na era das reformas e sob a influência ocidental, os otomanos tentaram extinguir o tráfico, mas tais práticas se perpetuavam no Hedjaz e em torno de Trípoli.  Negócio 'interno', a escravidão continuava a grassar, mas era bem menos cruel do que a praticada pelos europeus, quando estes comboiavam além-Atlântico os negros provenientes de Angola, do Congo e da África Ocidental". 

      Retorno agora a Paul Lovejoy (A escravidão na África: uma história de suas transformações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002).  A tabela da página 76, baseada em Elbl (1977), Curtin (1969) Palmer (1976) e Vila Vilar (1977), nos informa que, entre 1450 e 1600, cerca de 205.800 escravos africanos foram introduzidos na Europa e nas ilhas atlânticas, 50.000 no Brasil e 108.000 na América Hispânica, o que perfaz um total de 363.800.  Em duas tabelas da página 92, fundamentadas na base de dados Du Bois, menciona-se mais 1.348.000 cativos no tráfico transatlântico entre 1601 e 1700 e 6.091.000 de 1701 a 1800.  Somados aos 3.313.600 estimados para 1801-67 (página 222), chega-se a uma cifra global ligeiramente superior a 11,1 milhões.  Admitamos este número menor e a estatística inflada de Olavo de Carvalho sobre o Islã.  Que malabarismo aritmético fará 17 ser o triplo de 11?                 
         Adiante: nas tabelas sobre o tráfico islâmico localizadas nas páginas 61, 108 e 235 temos: 4.820.000 escravos levados através do Saara entre 650 e 1600, 2.400.000 através do Índico e do mar Vermelho de 800 a 1600, mais 2.200.000 pelas três rotas entre 1600 e 1800 e, na fase final da atividade, 347.000, incluindo os cativos exportados para a Índia, de 1801 a 1896, totalizando, desta forma, 9.767.000.  Como falta à obra uma estimativa sobre o Saara no século XIX, o quadro comparativo pode ser definido enquanto um tenebroso empate técnico.  Não há como negar que tanto o Ocidente quanto o Islã desagregaram numerosas sociedades africanas por meio do comércio de escravos.  Registremos, entretanto, que em nenhum momento o volume do tráfico muçulmano se aproximou da torrente de escravização que os europeus promoveram nos séculos XVIII e XIX.  É lícito ao menos suspeitar que o impacto negativo da presença ocidental tenha sido mais violento e não o contrário, como pretendem os revisionistas de direita. 
          Em 12:34, Olavo vai ao delírio, ao declarar que, entre os escravos do Islã, havia "90% de homens castrados, coisa que não aconteceu no Brasil".  Leiamos então Alberto da Costa e Silva, que o filósofo tem em tão boa conta:

"Cada eunuco representava o investimento de vários cativos, pois eram poucos os que sobreviviam à operação.  Gustav Nachtigal, que viajou pelo interior da África entre 1869 e 1874, soube que, de 100 rapazotes castrados, só 30 continuaram vivos, mas há estimativas ainda mais drásticas, que dão uma sobrevivência de apenas 20% ou até menor: de 2 a 3%, taxa que, por tão diminuta, se pode ter como improvável". (A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Edusp, 1992, p. 626) 

            Uma capacidade mínima de cálculo econômico evidencia que a castração de 90% dos cativos resultaria na falência do circuito do tráfico, a não ser que se acredite que escravos nascem por geração espontânea.  Afronta igualmente a inteligência de qualquer um a ideia de que comandantes militares e proprietários rurais do mundo muçulmano fizessem questão absoluta de receber soldados e agricultores negros castrados.  Sobre o tema, vale também a lembrança de que, durante séculos, existiram na Itália os  tenori castrati, cuja atividade se estendeu até o início do século XX.  Prestarei muita atenção caso Olavo decida me convencer que há diferença moral entre as situações de arrancar os testículos de um garoto destinado a ser guarda de harém e fazê-lo para ter prazer com uma bela voz feminina.
       Fica claro que as balelas aqui exibidas não passam de grosseiras peças de propaganda, cuja finalidade é insuflar a animosidade dos brasileiros contra muçulmanos em geral, levando-os a encarar como justa toda e qualquer intervenção militar da OTAN no Oriente Médio e no norte da África.  O sonho de Olavo, a submissão completa dos povos islâmicos diante da aliança ocidental, pode facilmente se transformar no pior dos mundos para a América Latina.  Com as mãos liberadas pela falta de adversários árabes, norte-africanos e iranianos, os Estados da OTAN certamente investirão no disciplinamento de brasileiros, argentinos, venezuelanos e congêneres.  Não é impossível, se recordarmos as ironias do chamado "fogo amigo" e a voracidade das multinacionais de armamentos, que bombas inteligentes  ainda venham a ser testadas sobre as cabeças de algumas das próprias olavetes.
              Amanhã, sem falta, finalizo.

Obs: Os transitórios desconfortos físicos me levam a transcrever os trechos dos livros, evitando acrobacias em torno do scanner para produzir as "cópias fotostáticas" que Olavo tanto apreciou.             
   


quinta-feira, 26 de julho de 2012

Tréplica ao True Outspeak de 25 de julho de 2012

         
          Hoje pela manhã constatei com alguma surpresa que uma de minhas postagens passadas tivera, em menos de dois dias, mais de 1300 visualizações, acompanhadas por um número superior ao habitual de comentários.  Lendo os primeiros trechos, logo compreendi que o "sucesso" se devia a uma réplica em vídeo de Olavo de Carvalho à matéria Imposturas de Olavo de Carvalho, que publiquei em 6 de julho último.  Transcrevo o link, sendo que Olavo trata do assunto por quase dez minutos a partir de 5:39:         

http://www.blogtalkradio.com/olavo/2012/07/25/true-outspeak

          Não tive qualquer surpresa, por outro lado, ao notar que o contra-ataque do filósofo que se pretende campeão do individualismo se fez acompanhar pela entrada em cena de uma verdadeira tropa de choque, as célebres olavetes.  Dei-me ao trabalho de responder a quase todos, apenas excluindo os xingamentos, não por pudor, mas por achar que os leitores assíduos não precisam ingerir lixo mental.  
            Considero desnecessário desmentir que sou "burrinho" diante de um homem que nunca conseguiu se firmar profissionalmente em seu próprio país, posando ainda de perseguido político, ou negar o epíteto de "vagabundo" conferido por alguém que frequentemente corre o pires pela Internet, tentando convencer incautos de que trabalha para salvar a humanidade.  Vamos, portanto, às questões de conteúdo, que dividirei em dois blocos, para desenvolvê-las da forma adequada sem ser cansativo.
            Olavo protesta, logo no início (6:01), contra o fato de eu ter criticado uma breve gravação e não um livro ou tese.  Ficar com raivinha é direito garantido, mas isto não desobriga um doutrinador assumido do compromisso com a precisão do que afirma, sob pena de amargar numerosas peças semelhantes a Imposturas.  Também não cabe reclamar contra uma acusação que não fiz, a de que ele seria "um racista filho da puta" (7:40).
            O argumento supostamente irrefutável de Olavo contra mim é o de que comparei o tráfico ocidental ao muçulmano sem me referir a nenhum livro sobre este.  No original, temos que "Ele não cita nenhum livro sobre o tráfico islâmico".  Olavo se equivoca, pois fiz uso do livro de Paul Lovejoy, A escravidão na África: uma história de suas transformações (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002), que contém subcapítulos intitulados O fator islâmico, A instituição da escravidão na África muçulmana, Origens do comércio do atlântico: a conexão muçulmana, O volume do comércio através do Saara, do mar Vermelho e do Oceano Índico, A justificativa imperialista da escravidão islâmica, entre outros. O capítulo 9, A escravidão na savana durante a era das jihads, tem cerca de cinquenta páginas exclusivas sobre o cativeiro nas regiões islâmicas do continente, inclusive em zonas "mouras".  
           Olavo se engana de maneira mais ampla ao afirmar que a obra de Alberto da Costa e Silva, A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700 (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002), "só trata do tráfico ocidental" (8:15).  Apesar de toda a convicção demonstrada, fica difícil explicar o que faz no conjunto o capítulo Nas terras do Islame, que revela o fornecimento de escravos núbios ao Egito já governado por árabes, no século VII, bem como a transplantação de uma massa de dezenas de milhares de negros para a Baixa Mesopotâmia, pouco mais tarde.  O capítulo 8, Mali e Songai, informa sobre a presença turca na África e as negociações para obter escravos de reinos como o Bornu.        
           Não contestarei o rótulo de "erudito monoglota" (9:52).  Realmente, passei na seleção de mestrado arranhando espanhol e na de doutorado arranhando francês.  Entretanto, penso que é bem mais grave ser um falso erudito ao estilo de Olavo, que fabrica sabe-se lá como estes disparates enquanto se apresenta como uma versão atualizada dos sábios multidisciplinares do século XIX.  O velho panfletário da Virgínia recorre também ao desgastado expediente de desqualificar autores não por suas incoerências reais ou presumidas, mas sim pelo posicionamento ideológico.  Assim, ouvimos (9:00) que "Ele pega doutrinários marxistas como Perry Anderson ou um simples apologista da Revolução Islâmica como Amin Maalouf".  Entenderam?  Segundo Olavo de Carvalho, sendo Anderson um comunista e por extensão um traidor da civilização ocidental, e Maalouf um provável incentivador da formação de homens-bomba, tudo o que disserem sobre escravidão ou tráfico estará automaticamente refutado!  
          Sobre Manolo Florentino, a quem eu deveria ter desconsiderado "por só estudar o tráfico brasileiro" (9:20), mesmo que o tráfico brasileiro tenha sido por larga margem o mais expressivo das Américas, Olavo descamba para o humor involuntário, quando pergunta como posso compreender o tráfico islâmico a partir de uma obra que "compara o tráfico na Bahia e em São Paulo".  Passou, assim, ao largo de dois detalhes: 1)A tabela que copiei na postagem se refere ao porto carioca.  2)O próprio nome do livro é Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (São Paulo: Companhia das Letras, 1997).
          Em seguida (10:10), nos deparamos com outro magnífico subproduto do chutômetro de Olavo: "Tudo o que se sabe sobre o tráfico islâmico foi descoberto nos últimos vinte anos, pelo menos trinta".  Novamente, o auto-exilado exibe muita ênfase e nenhuma veracidade. Conforme as tabelas que Paul Lovejoy expõe na página 61, cerca de 4,82 milhões de africanos foram vendidos como escravos através do Saara entre 650 e 1600, destino que coube a mais 2,4 milhões de pessoas que atravessaram o mar Vermelho e o Índico entre 800 e 1600.  A fonte mencionada, Austen, é de 1979.  Na página 108 estão dados sobre o período de 1600 a 1800, no qual mais 2,2 milhões de africanos passaram ao mundo muçulmano pelas três rotas.  As fontes são Austen 1977, Fillor 1974, Martin e Ryan 1977 e Alpers 1970.  Embora Lovejoy, um dos maiores especialistas da Terra no que diz respeito à escravidão, mencione estudos que se aproximam ou até ultrapassam os quarenta anos de conclusão, Olavo transformou o tráfico islâmico em um campo pioneiro.  Para piorar, presumidamente inacessível, pela ação perversa das elites mundiais, aos pobres brasileiros monoglotas.
            Assim é O. de C.  Há quem goste, e até quem leve a sério!


(Amanhã prosseguirei com o mais relevante: a desmistificação do etnocentrismo do guru)       

sábado, 21 de julho de 2012

Heróis da direita: Lacerda, o corvo golpista


            É comum encontrarmos nas ruas do Rio de Janeiro, em especial nos bairros que cultivam uma auto-imagem aristocrática, conservadores e liberais que enaltecem a memória de Carlos Lacerda (1914-1977).  Antigo militante comunista, ainda jovem Lacerda se bandeou para as forças que compuseram a União Democrática Nacional (UDN), partido do qual seu pai, Maurício de Lacerda (1888-1959), foi um dos fundadores.  Tornou-se em pouco tempo o líder incontestável da direita na capital do país.     
           Mais do que as obras de engenharia realizadas por Carlos Lacerda durante seu governo no estado da Guanabara (1960-1965), como a construção da estação de tratamento de águas do Guandu, dos túneis Santa Bárbara e Rebouças, e a urbanização do Aterro do Flamengo, os lacerdistas reverenciam a disposição implacável para o combate retórico e prático aos trabalhistas e comunistas, bem como a todos os dirigentes contrários às suas cruzadas supostamente moralizantes. 
          Relega-se ao esquecimento o caráter ardiloso e truculento de Lacerda, que lhe valeu o apelido de Corvo do Lavradio, logradouro carioca em que funcionava A Tribuna da Imprensa, jornal de sua propriedade.  Carlos Lacerda foi uma das figuras mais antidemocráticas da política brasileira do terceiro quartel do século XX.  Na ânsia de chegar à Presidência da República, fez o que esteve ao seu alcance para desestabilizar as gestões de Getúlio Vargas, Jânio Quadros e João Goulart, além de conspirar contra a posse de Juscelino Kubitschek.  Para isto, recorreu aos numerosos contatos que estabelecidos com elementos golpistas das Forças Armadas.          
           A exposição de todas as patifarias de Lacerda, mesmo que sucinta, poderia formar um robusto livro.  Fica a sugestão, para quem dispuser de tempo para a tarefa.  Por ora, apresento um breve roteiro, o bastante para delinear o perfil de um político que aliava a índole reacionária à incoerência e a um feroz oportunismo.  

Agosto de 1953- Carlos Lacerda publica n'A Tribuna da Imprensa um documento falso para denegrir João Goulart, então ministro do Trabalho:

A Tribuna da Imprensa acusava-o ora de corrupção ora de aliar-se aos comunistas, o que muitos candidatos da UDN também fizeram sem que ninguém por isto os criticasse.  E Lacerda chegou ao ponto de divulgar uma carta falsa, atribuída ao deputado argentino Antonio Brandi, procurando comprometer Goulart com um suposto plano de "coordenação sindical entre o Brasil e a Argentina", criação de "brigadas operárias de choque" e contrabando de material bélico pela fronteira de Uruguaiana.  O inquérito realizado pelo general Emílio Maurell Filho concluiu que a carta era "incontestavelmente falsa", forjada por dois falsários argentino, conhecidos como Mestre Cordero e Malfussi, conforme depois se comprovaria.  E não seria demais supor que a CIA também estivesse envolvida no caso.  Joaquim Miguel Vieira Ferreira, secretário-geral da Cruzada Brasileira Anticomunista e agente do Serviço de Informações da Marinha, vangloriou-se certa vez de ter inspirado a famosa Carta Brandi.  Esse homem, conhecido pelo pseudônimo de Victor, recebia Cr$ 300.000,00 do serviço secreto norte-americano e, em 1958, falsificaria outros documentos, como um acordo do PTB com os comunistas e um memorial de militares, reclamando a renúncia de Kubitschek e Goulart, bem como a paralisação das obras de Brasília. (BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz.  O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964.  Rio de Janeiro: Revan; Brasília: UnB, 2001, p. 58)  




24 de agosto de 1954- Carlos Lacerda festeja uma suposta renúncia de Getúlio Vargas para depois simular consternação com o suicídio do presidente: 

Ainda no dia 24 de agosto, O Dia, em edição extra, precipitadamente anunciava que Getúlio Vargas havia renunciado.  Na primeira página, sob o título "Calma na Cidade", dizia:

"O desfecho da crise não surpreendeu o carioca, que, desde as últimas horas de ontem aguardava, com impaciência, a renúncia do chefe da Nação.  Absoluta calma em todos os setores da cidade, que despertou sem ter notado a mais leve alteração em sua habitual fisionomia.  Apenas mais policiamento nos edifícios públicos e um movimento um tanto fora do comum na órbita do Catete."

Carlos Lacerda, logo ao saber da renúncia do presidente às 4 horas da madrugada, dirigiu-se à residência do sr. Café Filho e, muito sorridente e caloroso, cumprimentou-o efusivamente.

                                                          (...)

Os jornais também recuaram diante dos acontecimentos.  A Tribuna da Imprensa, ainda no dia 24, declarava na primeira página: "Seu sacrifício serve de lição e advertência.  Paz à alma de Getúlio Vargas.  E paz, na terra, ao Brasil e ao seu atribulado povo".
Carlos Lacerda, na mesma página, dizia:
"Inclino-me diante do corpo do Presidente e imploro à misericórdia de Deus perdão para o seu gesto de desespero.  (...) Com seu suicídio, Getúlio Vargas repudiou os mandantes do crime, que agora se escondem na emoção de sua morte (...).  Traíram-no os falsos amigos.

( FERREIRA, Jorge.  O carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto.  In: Vargas e a crise dos anos 50/Angela de Castro Gomes [org.],  Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, pp. 93/94)


Novembro de 1955- O general Henrique Lott, para assegurar a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek, depõe o presidente interino, Carlos Luz.  Carlos Lacerda se esconde em um navio da Marinha e depois na embaixada da Cuba de Fulgencio Batista:

O que importa ressaltar é que, do ponto de vista militar, o golpe foi um sucesso.  O Rio de Janeiro ficou inteiramente sob controle e os comandos de Minas Gerais, Mato Grosso e Paraná enviaram tropas para São Paulo, onde se esperava uma reação, devido à partida do Brigadeiro Eduardo Gomes, entrincheirado em Cumbica com 40 aviões da FAB.  Mas o governador Jânio Quadros permanece indiferente e o General Falconiere aí assume o comando pró-legalidade.  Frustra-se a reação de Carlos Luz que, em companhia de alguns ministros, vários oficiais e políticos como Carlos Lacerda (que mais tarde se refugiaria na embaixada de Cuba) embarca no Cruzador Tamandaré, na esperança de um desembarque vitorioso em Santos. (BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita.  A UDN e o udenismo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 98/99) 


Carlos Lacerda, em suas memórias, admite que a postura de seu partido, a UDN, de negar a legitimidade da eleição de Juscelino e Jango, em 1955, com o argumento de que a chapa não obteve maioria absoluta, foi uma tentativa fracassada de enganar o eleitorado:

A maioria absoluta, defendida principalmente pela "Banda de Música" e seu principal orador, Aliomar Baleeiro, não teve a mesma repercussão que em 1950, quando da eleição de Getúlio Vargas.  O desgaste do recurso era inevitável, como reconheceria Carlos Lacerda em suas memórias: "vamos dizer a verdade, o povo sentiu que era uma manobra em cima da eleição, para mudar as regras do jogo, depois do jogo começado.  E, evidentemente, não pegou" (1978, p. 102).  (A UDN e o udenismo, p. 97)  

1961- O corvo se junta aos porcos:

Anteriormente, ocorreu o episódio em que o embaixador dos Estados Unidos, Moors Cabot, fora ao palácio entrevistar-se com Jânio para protestar contra a política externa independente de seu governo.  Como a conversa ficara ríspida, Jânio levantou-se e ordenou que o embaixador se retirasse.  O presidente John Kennedy enviara seu emissário especial, Adolf Berle Jr., para sondar sobre possível invasão a Cuba com forças internacionais das quais o Brasil participaria.  Recebeu forte negativa de Jânio.  Mais tarde, essa invasão se daria pela baía dos Porcos, rechaçada por Fidel.  O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, saúda a invasão e recebe muitos anticastristas no Rio.  
(BARBOSA, Vivaldo.  A Rebelião da Legalidade: documentos, pronunciamentos,noticiário, comentários.  Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 17)  


Agosto de 1961- Renunciando Jânio, Lacerda é figura de proa nas articulações golpistas para impedir a posse do vice João Goulart, prevista pela Constituição:

Enquanto Ranieri Mazzilli desenvolve essas articulações, os ministros militares, por seu lado, tomaram providências na área militar e procuraram contatos políticos.  Não encontram grande ressonância no Congresso, apenas o respaldo de alguns deputados e senadores que com eles passaram a manter contatos frequentes, embora raramente utilizem a tribuna para demonstrar alinhamento com o golpe.  Só encontram mesmo um eco forte: o governador Carlos Lacerda, da Guanabara, estado em que foi transformada a cidade do Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, por ocasião da mudança da capital para Brasília, em 1961, feita pelo presidente Juscelino Kubitschek.  Esse engajamento do governador Carlos Lacerda ficou evidenciado pelas articulações e contatos que desenvolveu junto à direita no setor político e na área militar, pela forte repressão que desencadeou às manifestações populares que aconteciam no Rio, talvez as maiores no país depois de Porto Alegre, como parte da Rebelião da Legalidade, e pela censura a rádios, jornais e à incipiente televisão.  Machado Lopes assim descreve a forte participação de Lacerda no golpe:

Na Guanabara, o governador Carlos Lacerda reunia em palácio alguns governadores filiados à UDN e políticos influentes do mesmo partido, e propunha lançar um manifesto à nação, com teor que podia ser assim resumido:

1- impedir a posse do sr. João Goulart na presidência da República;
2- apoio incondicional à ação dos três ministros militares;    
3-eleição indireta, pelo Congresso Nacional, do sr. Juracy Magalhães para a presidência da República

(A Rebelião da Legalidade,, pp. 93/94)

Outubro de 1962- Durante a Crise dos Mísseis em Cuba, Lacerda ordena repressão selvagem aos manifestantes anti-EUA:

Houve comícios em todo o país, realizados pelos sindicatos e associações estudantis.  As manifestações evidenciaram, pelo seu vigor, o acirramento do antiamericanismo.  Alguns dirigentes comunistas, que tentavam conter a exaltação dos ânimos, nem sempre alcançaram êxito.  E, no Rio de Janeiro, os líderes do CGT, moderados, não conseguiram evitar que uma concentração de massas, em frente da antiga Câmara dos Deputados, se convertesse em passeata de protesto e marchasse contra a Embaixada dos EUA, tendo que enfrentar bombas de gás lacrimogêneo, jatos d'água e outras violências da polícia do governo Lacerda. (O governo João Goulart, p. 91)


1964- Carlos Lacerda forma com a linha dura do golpismo e clama por mais cassações:

Carlos Lacerda opunha-se às iniciativas do presidente Castello Branco quanto à antecipação da Constituinte Nacional, e, sobretudo, quanto à prorrogação do mandato.  Esta prorrogação se daria através de uma emenda, dos senadores udenistas João Agripino e Afonso Arinos, vista por Lacerda como "um instrumento contra sua vitória certa nas eleições de 65".  A verdade é que Lacerda se aproximara da "linha dura", anti-Castello, e passara a contar com a oposição dos setores mais liberais dentro da própria UDN, como Afonso Arinos, João Agripino, Milton Campos e Daniel Krieger, para quem Lacerda, se eleito, "seria um ditador" (cit. por Viana Filho, 1975, p. 103).  Em dezembro de 1964, por exemplo, Lacerda chega a pedir o expurgo do Supremo Tribunal Federal e a continuação do Ato primeiro, "contra o legalismo de Castello Branco (Carlos Castello Branco, 1977, p. 169).  (A UDN e o udenismo, pp. 130/131)    


1966/1967- Frustrado em suas pretensões de ser conduzido à Presidência da República pela ditadura, Lacerda busca o apoio dos que sempre ofendeu e repudiou:

A radicalização e o aguçamento do autoritarismo militar, com a decretação do Ato Institucional n. 2, terminaram por desintegrar a frente política que apoiara o golpe de Estado em 1964.  Carlos Lacerda, cuja ambição consistia em suceder Castelo Branco na Presidência da República, frustrou-se, ao ver que o caminho para realizá-la se lhe fechara, primeiro com a prorrogação do mandato de Castelo Branco até 15 de março de 1967 e, em seguida, com a virtual escolha do marechal Artur da Costa e Silva, ministro da Guerra, para sucedê-lo no governo, a partir de 15 de março de 1967.  Como o jornalista Carlos Heitor Cony observou, Lacerda "ficara no vácuo, na posse de direitos políticos que não lhe davam direito nem à política (que deixara de haver em seu escalão civil) nem a mais nada, a não ser ruminar a frustração de não ser aquilo que podia ter sido".  E, em tais circunstâncias, ele rompeu com Castelo Branco, de quem disse ser "mais feio por dentro do que por fora", debandou para a oposição, com o propósito de conquistar-lhe a liderança, e passou a atacar violentamente o regime militar, ao mesmo tempo em que tratava de compor uma Frente Ampla com seus antigos adversários, Kubitschek e Goulart, bem como com Brizola e Miguel Arraes, o ex-governador de Pernambuco, e até os comunistas, visando à redemocratização do Brasil.  (O governo João Goulart, p. 191)   




quinta-feira, 19 de julho de 2012

A extrema direita ridícula: mais uma excursão pelo site Mídia sem Máscara


                                               

          Muitas vezes me pergunto o que leva alguém a se definir como conservador, direitista ou tradicionalista.  Sobretudo quando vive em um país moldado por mais de três séculos de escravismo, que há muito pouco tempo disputava com Honduras, Serra Leoa e Botswana  a taça da pior distribuição de renda do planeta.  Em numerosos casos, sem dúvida, é a naturalização da injustiça, associada ao aprendizado, desde a infância, das crenças de determinados grupos na sua própria superioridade e vocação para o mando.  Em outros, também inegavelmente, encontramos a alienação em estado puro, resultando numa visão de mundo inteiramente distorcida.      
               Volto ao site Mídia sem Máscara, agrupamento de ultraconservadores de diversas linhas que copiam ou produzem toneladas de teorias conspiratórias para concluir, em geral, que comunistas, socialistas, muçulmanos, ateus, negros, índios, gays e ambientalistas estão unidos a fundações esquerdistas bilionárias no propósito de destruir a cultura ocidental e a economia de mercado, não sem antes matar prazerosamente centenas de milhões de pessoas.  Cada vez mais imersos no delírio coletivo, os articulistas do MSM associam a discursos reacionários dos mais rançosos verdadeiras pérolas do humor involuntário.  Apresento algumas, dentro de um vasto universo de possibilidades:     

Para Leonardo Faccioni, a Coluna Prestes foi um movimento comunista e sua vitória resultaria na implantação do stalinismo no Brasil:



Segundo Mirian Macedo, havia liberdade de expressão no governo Geisel, visto que um JORNAL ALTERNATIVO publicava lista de torturadores:


De acordo com Felipe Melo, o nazismo provém ... de Marx!!!



Nivaldo Cordeiro decreta, em pleno segundo turno da campanha presidencial de 2010, o fim de Dilma, que seria esmagada por Serra, representante da "maioria moral":



O cineasta Ipojuca Pontes, em fins de 2010, vê na iminente vitória de Dilma o caminho para a ditadura de partido único:



Aristóteles Drummond informa: os quilombolas foram inventados!



Julio Severo revela: o filme A Lagoa Azul foi uma produção destinada a promover o controle da natalidade:



Mídia sem Máscara seria um dos sites mais engraçados do mundo, se não tivesse seguidores que o levam a sério.

  


terça-feira, 17 de julho de 2012

Racismo palpável: o matrimônio segundo o bispo Macedo

      

          Não acreditei nesta notícia, quando a li pela primeira vez, reproduzida nas redes sociais.  Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, conta com multidões de seguidores ferrenhos, mas também é odiado por milhares de pessoas, e por diversos motivos.  Calculei  que algum dos detratores do bispo, talvez até ligado a uma igreja concorrente, tivesse escrito o texto que copio na íntegra logo abaixo, com a finalidade de denegrir a sua imagem.  Grande foi a minha surpresa quando acessei o site da IURD e verifiquei que era autêntico.  

  
    

             A experiência de vida acumulada em escolas, universidades, empregos públicos, privados e na "economia mista", residência na capital fluminense e no interior, não me permite mais ficar estarrecido com a mera constatação de preconceitos.  Todavia, é espantoso que um homem tão exposto aos holofotes quanto Edir Macedo se expresse de maneira tão abertamente preconceituosa.
              O bispo afastaria, se pudesse ordenar o mundo desde as origens, Salvador Dalí, nascido em 1904, de sua eterna musa Gala, que era de 1894.  Napoleão Bonaparte (1769-1821) jamais chegaria perto de Josefina de Beauharnais, seis anos mais velha.  O par romântico formado por Tarcísio Meira e Glória Menezes também seria contra-indicado, mesmo sendo a diferença, neste caso, bem menor. 
              Porém, o que causa maior assombro, sem dúvida, é a tentativa de persuadir os fiéis a evitarem os matrimônios interétnicos.  A pregação do bispo, se efetivada no âmbito da igreja, colide com o artigo 14 da Lei do Crime Racial (Lei 7716/89 de 5 de janeiro de 1989), que prevê pena de reclusão de dois a quatro anos para quem "impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social":


         Levando-se em conta o conjunto dos relatos sobre o que costuma acontecer aos que adotam comportamentos heterodoxos na IURD, é bastante provável que estas diretrizes prevaleçam, a não ser que ocorram mobilizações sociais e jurídicas que obriguem Edir Macedo a recuar.  A exemplo dos "bons" racistas cordiais, o bispo deixa claro que por ele "não haveria nenhum problema" nos casamentos interraciais.  Seus defensores poderiam alegar que as restrições se devem à primazia da expansão da fé sobre a felicidade pessoal, e que outros grupos, como diplomatas e agentes secretos, estão sujeitos, na prática, a restrições ainda maiores no que se refere à escolha dos cônjuges.  
             Estes argumentos são frágeis, sobretudo se atentarmos ao fato de que o proselitismo cristão inclui, infalivelmente, a diretriz de afrontar as perseguições, de não se curvar aos poderes terrenos quando estes se opõem à doutrina religiosa.  Além disto, mesmo nos países em que as manifestações racistas são mais ostensivas, isto não ocorre de maneira uniforme, nem com a participação de todas as pessoas.  Mas pode ser que o bispo, ao planejar o crescimento da sua igreja, mire de preferência nos segmentos mais conservadores: os que se resignam aos velhos preconceitos, inclusive raciais, talvez sejam os melhores candidatos à conversão e em seguida os obreiros mais submissos.
              Passo agora a palavra a outro tipo de crente, o que acredita na existência da democracia racial brasileira.