segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Mais sobre o apartheid e a geopolítica ocidental

       

     A Assembleia Geral das Nações Unidas, em sessão de plenário ocorrida no dia 12 de novembro de 1974, praticamente transformou a África do Sul do apartheid em um país pária sob o ponto de vista diplomático.  Por ampla maioria, foi aprovada a seguinte decisão:

"Baseado na consistência com que a Assembleia Geral tem regularmente recusado aceitar as credenciais da delegação da África do Sul, pode-se legitimamente concluir que a Assembleia Geral iria, do mesmo modo, rejeitar as credenciais de qualquer outra delegação autorizada pelo Governo  da República Sul-Africana a representá-lo, o que testemunha dizer-se, em termos explícitos, que a Assembleia Geral se recusa a permitir que a delegação da África do Sul participe em seu trabalho".

Os votos se distribuíram da seguinte forma:

Sim
Afeganistão, Albânia, Argélia, Argentina, Bahrein, Bangladesh, Barbados, Butão, Botswana, Bulgária, Burma, Burundi, Bielorrúsia, República Centro-Africana, Chade, China, Congo, Cuba, Chipre, Checoslováquia, Daomé, Iêmen Democrático, Egito, Guiné Equatorial, Etiópia, Gabão, Gâmbia, República Democrática Alemã, Gana, Granada, Guiana, Guiné Bissau, Haiti, Hungria, Índia, Indonésia, Iraque, Costa do Marfim, Jamaica, Jordânia, Quênia, República Khmer, Kuwait, Laos, Líbano, Libéria, República Líbia Árabe, Madagascar, Malásia, Mali, Malta, Mauritânia, Ilhas Maurício, Mongólia, Marrocos, Nepal, Nigéria, Níger, Omã, Paquistão, Panamá, Peru, Filipinas, Polônia, Qatar, Romênia, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Cingapura, Somália, Sri Lanka, Sudão, Suazilândia, República Síria Árabe, Tailândia, Togo, Trinidad Tobago, Tunísia, Uganda, Ucrânia, União Soviética, Emiratos Árabes, República Unida dos Camarões, República Unida da Tanzânia, Alto Volta, Iêmen, Iugoslávia, Zaire, Zâmbia.

Abstenções
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, República Dominicana, Equador, Fiji, Grécia, Guatemala, Irã, Japão, Lesoto, Malawi, México, Paraguai, Portugal, Espanha, Turquia, Venezuela.

Não
Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Costa Rica, Dinamarca, El Salvador, Finlândia, França, República Federal Alemã, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Nicarágua, Noruega, Suécia, Reino Unido, Estados Unidos.

Nota: Os dados factuais sobre as votações na ONU citadas nesta postagem e na anterior constam do livro Israel-África do Sul: a marcha de um relacionamento, organizado em 1976 por Richard P. Stevens e Abdelwahab M. Elmessiri, publicado originalmente por New World Press sob o título Israel-South Africa: The Progression of a Relationship


     Temos neste episódio mais uma comprovação do cinismo e das contradições do autodenominado "Mundo Livre", disposto a conceder sobrevida ao apartheid.  Colocando-se contra a decisão, Estados Unidos e Reino Unido arrastaram consigo todos os demais fundadores da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN): França, Itália, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Dinamarca, Noruega, Islândia e Canadá.  Mesmo Portugal, que no decorrer da Revolução dos Cravos acabara de reconhecer o direito das colônias à autodeterminação e a independência da Guiné Bissau, cedeu ao compromisso com o poderoso bloco militar, assim como a Alemanha Federal, que ingressou na OTAN em 1955.  Os dois membros restantes da organização, Grécia e Turquia, se abstiveram.
            Em contraste, notamos que virtualmente todos os países socialistas, filossocialistas e não alinhados voltaram a condenar inequivocamente o regime racista sul-africano.  Entre os votos "sim", visualizamos as repúblicas soviéticas, acompanhadas por seus aliados do Pacto de Varsóvia (Polônia, Alemanha Oriental, Romênia, Hungria, Bulgária e Checoslováquia) e pelos outros países europeus cujos governos possuíam orientação marxista, a Albânia e a Iugoslávia.  Encontramos igualmente na lista do "sim" China, Cuba, Mongólia, nações africanas e asiáticas cuja independência decorreu de revoluções nacionalistas ou de esquerda (Argélia, República Popular do Congo, Daomé, Iêmen do Sul, Etiópia), a Índia e a Líbia de Muammar Kadhafi (1942-2011).  
          O mundo muçulmano, com as exceções do Irã do xá e da Turquia, também cerrou fileiras contra o apartheid: além de países já citados, Afeganistão, Bahrein, Bangladesh, Egito, Iraque, Indonésia, Jordânia, Kuwait, Líbano, Malásia, Mauritânia, Marrocos, Omã, Paquistão, Qatar, Somália, Sudão, Síria, Tunísia, Emiratos Árabes e Iêmen votaram "sim".  O mesmo ocorreu com a África Subsaariana, excluindo o Malawi, ao qual já nos referimos na postagem de ontem, e o Lesoto, incrustado na África do Sul, de que dependia por completo em termos econômicos; Botswana, Burundi, República Centro-Africana, Chade, Guiné Equatorial, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné Bissau, Costa do Marfim, Quênia, Libéria, Madagascar, Mali, Ilhas Maurício, Nigéria, Níger, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Suazilândia, Togo, Uganda, Camarões, Tanzânia, Zaire e Zâmbia reprovaram mais uma vez o segregacionismo.
        Apreciando os votos latino-americanos, é fácil perceber que as nações então sujeitas às ditaduras de direita implantadas sob o pretexto do anticomunismo se viram empurradas para uma covarde abstenção, a começar pelo Brasil de Ernesto Geisel (1907-1996).  A mesma postura foi adotada pela Bolívia de Hugo Banzer (1926-2002), pelo Chile de Augusto Pinochet (1915-2006), pelo Paraguai de Alfredo Stroessner (1912-2006), pela República Dominicana de Joaquín Balaguer (1906-2002) e pelo Equador de Guillermo Rodríguez.  A Nicarágua de Anastasio Somoza Debayle (1925-1980) voltou a optar pelo "não".  Países com sistemas representativos frágeis, como a Guatemala e El Salvador, sob forte pressão de militares adeptos da doutrina da contrainsurgência, também se esquivaram de votar contra a África do Sul.  Entre os regimes conservadores ditatoriais e semiditatoriais da região, somente o Haiti da família Duvalier se posicionou pelo "sim", diante da inviabilidade de justificar perante seu povo a subjugação da maioria negra sul-africana.  Mesmo entre os governos plenamente constitucionais, Colômbia, Venezuela, México e Costa Rica não ousaram desafiar os interesses norte-americanos e europeus ocidentais.  Votaram "sim' apenas a Argentina, o Peru e pequenas repúblicas caribenhas de expressiva população negra, como Granada, Guiana, Jamaica, Panamá, Barbados e Trinidad Tobago.    
        A despeito da vasta propaganda que atribui à democracia liberal um protagonismo na destruição do apartheid, a verdade é que as potências capitalistas contribuíram em muito para a  permanência das aberrantes relações segregacionistas até a primeira metade da década de 1990.          
                             
   






  




domingo, 28 de outubro de 2012

A direita e o apartheid: algumas notas esclarecedoras

        

     Excetuando-se uns poucos neonazistas raivosos, possivelmente ninguém fora da África do Sul ousa proferir ou redigir, nos dias atuais, uma apologia ao apartheid.  Este fato é bastante compreensível, se recordarmos que o sistema caído em 1994, com a ascensão de Nelson Mandela à presidência, obteve níveis de reprovação perante a opinião pública mundial que talvez tenham se igualado aos do hitlerismo na década de 1940. 
       Embora o tema esteja hoje relegado a um segundo plano, os políticos e diplomatas de todos os continentes, se confrontados com a memória do apartheid, sem dúvida colocariam em relevo a condenação formal de seus respectivos países, passando inclusive pelo terreno das sanções econômicas, às práticas de segregação racial adotadas na África do Sul ao longo de grande parte do século XX.
     Caiu em conveniente esquecimento uma obviedade: o apartheid jamais teria alcançado tamanha longevidade se não contasse com suportes de peso nos campos diplomático, econômico e militar, por vezes velados, mas nem por isto menos decisivos.  Podemos confirmar esta tese, entre inúmeras possibilidades, pela observação do posicionamento dos governos da época frente aos documentos produzidos pela ONU no sentido de censurar ou pressionar o regime sul-africano.  Transcrevo abaixo um deles:

Resolução nº 3.207 de 30 de setembro de 1974 da Assembleia Geral da ONU (XXIX)

A Assembleia Geral,
Considerando suas resoluções nºs 2.636 A (XXV), de 13 de novembro de 1970, 2.862 (XXVI), de 20 de dezembro de 1971 e 2.948 (XXVII), de 8 de dezembro de 1972 e sua decisão de 5 de outubro de 1973, pela qual decidiu rejeitar as credenciais sul-africanas,
Recordando que a África do Sul não acatou nenhuma das decisões anteriormente mencionadas e continua a praticar a sua política de "apartheid" e discriminação racial contra a maioria da população da África do Sul,
Reafirmando, uma vez mais, que a política do "apartheid" e discriminação racial do Governo da África do Sul é uma flagrante violação dos princípios da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
Observando a persistente recusa por parte da África do Sul, de abandonar sua política de "apartheid" e discriminação racial, em obediência às relevantes resoluções e decisões da Assembleia Geral,
Apela ao Conselho de Segurança para rever o relacionamento entre as Nações Unidas e a África do Sul, à luz da constante violação dos princípios da Carta e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, por parte da África do Sul.

Sim

Afeganistão, Albânia, Argélia, Argentina, Austrália, Bahamas, Bahrein, Bangladesh, Barbados, Bélgica, Butão, Bolívia, Botswana, Brasil, Bulgária, Burma, Burundi, Bielorrússia, Canadá, República Centro-Africana, Chade, Chile, China, Colômbia, Congo, Costa Rica, Cuba, Chipre, Checoslováquia, Daomé, Iêmen Democrático, Dinamarca, República Dominicana, Equador, Egito, El Salvador, Etiópia, Fiji, Finlândia, Gabão, Gâmbia, República Democrática Alemã, República Federal Alemã, Gana, Grécia, Granada, Guatemala, Guiné Bissau, Guiana, Haiti, Honduras, Hungria, Islândia, Índia, Indonésia, Iraque, Irlanda, Itália, Costa do Marfim, Jamaica, Japão, Quênia, República Khmer, Kuwait, Laos, Líbano, Lesoto, Libéria, República Árabe, Líbia, Luxemburgo, Madagascar, Malásia, Mali, Malta, Mauritânia, Ilhas Maurício, México, Mongólia, Marrocos, Nepal, Holanda, Nova Zelândia, Níger, Nigéria, Noruega, Omã, Paquistão, Panamá, Peru, Filipinas, Polônia, Portugal, Qatar, Romênia, Ruanda, Arábia Saudita, Senegal, Serra Leoa, Cingapura, Somália, Sri Lanka, Sudão, Suécia, República Síria Árabe, Tailândia, Togo, Trinidad Tobago, Tunísia, Turquia, Uganda, Ucrânia, União Soviética, Emirados Árabes, Camarões, Tanzânia, Alto Volta, Uruguai, Venezuela, Iêmen, Iugoslávia, Zaire, Zâmbia.

Abstenções

França, Irã, Israel, Malawi, Nicarágua, Paraguai, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos.

Não 

África do Sul


     Ninguém com um mínimo de senso de realidade esperaria que o governo sul-africano apoiasse sua própria condenação.  Porém, podemos identificar através das poucas abstenções a solidariedade de importantes forças conservadoras a um governo com o qual compartilhavam a visão anticomunista e a intenção de barrar o avanço dos movimentos populares no chamado Terceiro Mundo:      

.A França tinha como primeiro-ministro o direitista Giscard d'Estaing, notório defensor do imperialismo.
.O Irã permanecia sob a ditadura do xá Reza Pahlavi (1919-1980), que esmagava os opositores comunistas, islâmicos e mesmo os meros adeptos das eleições livres, contando com amplo respaldo anglo-americano.
.Israel figurava como um dos principais aliados da África do Sul, tema que merece texto à parte.
.O ditador do Malawi, Hastings Kamuzu Banda (1898-1997), simpatizava com o apartheid, chegando a receber, alguns anos antes, o primeiro-ministro sul-africano Balthazar Johannes Vorster (1915-1983) em visita oficial a seu país.
.A Nicarágua, sob Anastasio Somoza (1925-1980), se alinhava com a corrupção e com o reacionarismo, o que também pode ser dito do Paraguai de Alfredo Stroessner (1912-2006).
.A Espanha, no final do franquismo, ainda dispunha do duvidoso privilégio de possuir um dos governos mais direitistas do planeta, patrocinado em suas origens pelo nazifascismo.
.O premier Harold Wilson (1916-1995), apesar de eleito pelo Partido Trabalhista, estava inteiramente abandonado pela esquerda do Reino Unido, em consequência de suas posições a respeito da Guerra do Vietnã. 
.Os Estados Unidos ingressavam na presidência de Gerald Ford (1913-2006), um membro do partido imperialista por excelência, o Republicano.

Retornarei ao assunto na próxima postagem.       






    

 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

História do Rio de Janeiro: Itinerários para o café no pós-1850


                                Inauguração da Estrada de Ferro Dom Pedro II
 
 
       Enviei este texto para um encontro em Brasília, há dois anos, mas não cheguei a apresentá-lo, por razões das quais nem me recordo.  Reencontrei-o agora, numa busca despretensiosa, e decidi postá-lo para reorganizar minhas pesquisas no campo da História Econômica.
 
 
III Conferência Internacional em História Econômica &

V Encontro de Pós-graduação em História Econômica





Brasília, 23 e 24 de setembro de 2010


Itinerários para o café no pós-1850: negociantes e fazendeiros na luta pela definição de uma política de transportes

Autor: Gustavo Alves Cardoso Moreira

         J. M. Pereira da Silva, em artigo publicado no Jornal do Commercio de 19 de maio de 1839, se referiu às vilas de Iguaçu e Itaguaí como “as duas mais comerciais da província [do Rio de Janeiro]”. Segundo o autor, estas povoações haviam passado por um período de forte rivalidade econômica, encerrado com o triunfo da primeira. Pereira da Silva constatou ainda a necessidade comum a ambas, para um maior desenvolvimento, de contar com uma rede de transportes adequada. Iguaçu aguardava a “construção da estrada do comércio, que dá trânsito aos gêneros de produção de Vassouras, Valença, Pati, Paraíba, Rio Preto e Minas Gerais”. Itaguaí, por sua vez, demandava o conserto da “estrada por onde conduzem os cafés de Resende, São João do Príncipe, Piraí, Arrozal e Bananal”.
         A lavoura fluminense atravessava, na ocasião, uma fase bastante favorável. O Rio de Janeiro, superando Minas Gerais e São Paulo, se destacava como a maior província cafeicultora do Império. Na primeira metade da década de 1830, as exportações brasileiras de café tinham crescido de forma muito acelerada, evoluindo do montante de 663 mil para 2.435 libras esterlinas. A participação do produto nas exportações totais do país aumentara de menos de 20% para mais de 45%²

Leiam na íntegra em: