quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Era uma vez a princesa que nunca teve escravos...


          
        A construção sistemática da imagem de uma Princesa Isabel heroína, em contraposição ao Zumbi dos Palmares cruel, não é exatamente uma estratégia nova dos ideólogos da direita brasileira.  Este discurso serve como poucos à manutenção da premissa de que as conquistas sociais resultam, ou devem resultar, de concessões vindas "do alto" e não das lutas do povo, tido como violento, vingativo e ignorante até dos próprios interesses.  O enaltecimento da Santa Isabel da Lei Áurea, portanto, convém não apenas às seitas cujos membros anseiam pelo improvável dia em que beijarão a mão de um chefe de Estado hereditário e vitalício, como também a alguns liberais sofisticados que muito se divertiriam, na intimidade, com os aspectos caricatos de um Terceiro Reinado.  O processo mencionado assumiu proporções inusitadas nos últimos anos, a partir da difusão da bibliografia dita "politicamente incorreta", que se caracteriza, entre outros defeitos, por uma singular ojeriza aos métodos científicos.  Já vulgares desde a origem, certas teses se desdobram na Internet em vulgarizações ainda piores.   
        As "narlocadas" e "kameladas" dos livros degeneram, por exemplo, em montagens como esta:     




         As mensagens breves e diretas, com forte apelo à emoção e nenhum à razão, deixam claro que se trata de uma ordinária peça de propaganda, de formação de opinião no sentido do conservadorismo.  Apesar de sua puerilidade, talvez em parte por causa dela, o quadro se alastrou com rapidez pela blogosfera e pelas redes sociais, como notamos nos links abaixo, entre grande número de possibilidades:   

http://homemculto.com/tag/princesa-isabel/
http://ferramula3.blogspot.com.br/2013/11/consciencia-lucida.html
http://www.bazingaonline.net/2013/11/uma-verdade-sobre-o-dia-da-consciencia.html
http://cinenegocioseimoveis.blogspot.com.br/2013/11/zumbi-e-o-dia-da-consciencia-negra.html

               
        Neste artigo, me limitarei à afirmativa inicial, a que mais contradiz dados factuais elementares:

[A Princesa Isabel] Nunca possuiu escravos.

      Não há como sustentar uma mistificação tão grosseira, pois qualquer pessoa bem informada sobre o Império do Brasil, ainda que "leiga", sabe que a Casa de Bragança dispôs da força de trabalho de muitos cativos, denominados "escravos da Nação". Assinalo, em antiga obra de um autor confessadamente monarquista e ferrenho entusiasta da figura de D. Pedro II, a seguinte passagem:

Mas a festa maior, esta só aconteceria no dia 10 de outubro, na Fazenda Nacional de Santa Cruz, lugar de concentração do maior dos contingentes de escravos da Nação espalhados pelo Brasil inteiro, ao aparecerem nela a Princesa Isabel e o Conde d'Eu e Rio Branco e todos os seus ministros, a fim de que presentes estivessem no instante em que o seu diretor, o Dr. José Saldanha, dissesse a todos eles:
-Escravos, agora, para vós, esta palavra não mais existe! Livres estão agora todos os escravos da Nação!¹

       Brasil Gérson se referia aos acontecimentos que se seguiram à promulgação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871.  Basta ser alfabetizado, então, para compreender que a família imperial ainda era dona de escravos trinta e um anos após a ascensão de Pedro II ao trono, ocorrida em 1840. Desta maneira, tinha o imperador, nascido em fins de 1825, 46 anos incompletos quando abriu mão da propriedade sobre homens.  Uma eventual alegação de que os escravos da Nação serviam ao Estado e não ao monarca desmorona se lembrarmos que a Fazenda de Santa Cruz, situada em freguesia rural, a várias léguas da Corte, constituía uma das residências prediletas da Casa de Bragança. 
     Logo, nem o mais ingênuo dos leitores continuará a crer que Pedro II, Isabel e demais integrantes da dinastia não lidaram com cativos na posição de senhores, em relação sociojurídica idêntica, ou quase, à do plantador escravista mais iletrado e truculento com seus cativos do eito.  A insistência na atitude de compartilhar imagens como a que copiamos será, sem dúvida, uma mentira intencional. Só resta aos cultuadores da Santa Isabel, enfim, insistir na sentença de que a princesa era boazinha e caridosa com os subalternos, hipótese que, se admitida, em nada modificaria o que aponto nesta matéria.  
        Isabel possuiu, sem dúvida, muitos escravos, a não ser que se faça uso de sofismas cretinos baseados no fato de que aquelas pessoas não estavam, provavelmente, "no nome dela".  Compartilhem sem moderação.         
           

        

Nota:
1-Brasil Gérson.  A escravidão no Império.  Rio de Janeiro: Pallas, 1975, p. 234.  

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Mandela, Fidel e seus detratores mentecaptos


 
         Empenhado numa aproximação com o Ocidente, em 1987, o governo Gorbachev se afastava de antigos aliados dos soviéticos, como o MPLA, de Angola.  Aproveitando-se da conjuntura, os Estados Unidos de Ronald Reagan e a África do Sul (sob o apartheid) intensificavam seu apoio aos guerrilheiros direitistas da Unita, chefiados por Jonas Savimbi, que assim ampliaram seu controle sobre vastas áreas ao sul do território angolano.  Reunindo tropas no norte da Namíbia, os sul-africanos realizaram uma pesada ofensiva contra o MPLA em novembro do mesmo ano.  As forças governistas de Angola recuaram para a cidade de Cuito Cuanavale, situada em área de florestas.  A eventual queda daquela localidade deixaria todo o sul do país debaixo da ocupação sul-africana.  
           Sem contar com o auxílio soviético, o presidente angolano José Eduardo dos Santos pediu ajuda a Fidel Castro.  O dirigente cubano atendeu-o prontamente, enviando para Angola um general de sua confiança, Leopoldo Cintra Frías, que recebeu o comando na região meridional, e nove mil soldados, que desembarcaram no início de 1988.  O contingente cubano na África atingiu, então, a cifra de 50 mil homens.  Uma parte avançou para o norte, até as fronteiras com o Congo e Zâmbia, e outra tomou o rumo de Cuito Cuanavale.  


                                  Vemos Cuito Cuanavale na província de Cuando Cubango. 
          
            O ataque sul-africano àquele posto avançado, reforçado pela ação da Unita, ocorreu a partir de 14 de fevereiro de 1988.  Entretanto, após várias semanas de combates, as até então invictas forças armadas do apartheid foram batidas e retrocederam, abandonando Angola.  O enfraquecimento dos agressores teve desdobramento nas negociações que resultaram na independência da Namíbia, onde ascendeu ao poder a Organização do Povo do Sudoeste Africano (SWAPO), grupo guerrilheiro que antes fustigava a dominação racista¹.  Assumindo a presidência da África do Sul em setembro de 1989, Frederik de Klerk se viu obrigado a admitir a desmoralização interna e externa do regime e a afrouxar seus fundamentos, até promover, em 1994, o pleito que terminou com a eleição de Nelson Mandela. 


                                                        Soldados cubanos em Cuito Cuanavale 

                 

             Falecido Mandela, nos deparamos com uma intensa campanha de depreciação da sua imagem, efetuada por organizações muito bem articuladas, a julgar pela rapidez com que difundem "informação".  Mandela  é demonizado por não ter combatido com flores uma das ditaduras mais truculentas e irracionais que já existiram, e virtualmente por qualquer outra coisa, inclusive os atuais índices de contaminação por HIV da população sul-africana!  Esta orquestração desprezível dispõe do entusiasmo gratuito não só dos arautos de sempre, como também, no que diz respeito ao Brasil, de milhares de "pessoas comuns"; na maioria dos casos,  reacionários ressentidos que, lidando cada vez pior com as frequentes rejeições ao conservadorismo nas urnas, adotam uma postura de enaltecimento de tudo que vem da direita.  Inclusive o apartheid. 
            Um dos elementos centrais do "Dossiê Mandela" é a "denúncia" da amizade do ex-presidente da África do Sul com Fidel Castro.  Recuperando o contexto dos episódios que abrem esta postagem, tenho um gosto especial em transcrever as palavras que Mandela dirigiu a Fidel durante a visita oficial que fez a Havana, em julho de 1991:

"A derrota decisiva do exército racista em Cuito Cuanavale foi a vitória de toda a África... Possibilitou à África desfrutar a paz e estabelecer a sua própria soberania... [e] ao povo da Namíbia alcançar sua independência.  A derrota decisiva das forças agressivas do apartheid destruiu o mito da invencibilidade do opressor branco.  A derrota do exército do apartheid serviu como inspiração para o povo combativo da África do Sul"².
  
          Mandela, solto da prisão em fevereiro de 1990, na temporada seguinte voou até Havana para confraternizar com o povo que em boa parte foi responsável por sua liberdade, e com seus governantes.  Reconheceu, como em outras ocasiões, o papel de um exército popular e multirracial na derrocada do apartheid.  De quem "nossos" udenistas tardios gostariam que fosse amigo? Thatcher? Bush Senior? Carlos Menem? Não podem ser levados a sério.                   
1-Este processo é descrito com bom número  de detalhes em Richard Gott.  Cuba: uma nova história.  Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 311 a 314.   
2- Gott, p. 313.  

       

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A juventude Mezzo Cérebro (segunda parte)


         
         Retorno, conforme o prometido, aos comentários sobre as pérolas de Daniel Mezzo Cérebro e seus amigos. Um deles, segundo mensagem que recebi, é o Sr. Péssimo Menezes.  Como estou sem tempo para tarefas de maior fôlego, deixo a sugestão de um estudo de caso para quem não tiver olfato excessivamente sensível.  


          Não me surpreende a constatação de que os gênios autodidatas ignoram o que é dialeto.  Ao mesmo tempo em que rotulam como "falácias de esquerda" tudo que não lhes convém, adotam sem o menor discernimento outros lugares comuns.  O jovem politicamente incorreto, esse iluminado, lê em alguma coleção de frases de efeito que "a África é uma Babel de dialetos" e, no piloto automático, converte qualquer idioma do continente em código primitivo acessível somente a mil aldeões selvagens.  Caso consultasse pelo menos a Wikipédia antes de escrever a primeira baboseira que lhe surge na mente, saberia que o iorubá, falado por dezenas de milhões de pessoas, tem status de língua oficial no país mais populoso da África. 


          Sobre o alegado caráter "ágrafo" do iorubá, confesso o meu espanto, pois já vi centenas de vezes, nas bancas do Rio de Janeiro, jornais e revistas das nações do Candomblé parcialmente redigidos naquela língua.  A fantasia de que um nigeriano, para se comunicar pela escrita, precisa se valer do inglês, parece saída da cabeça de um perfeito "garoto da bolha", de alguém que mal sai às ruas e vive restrito a um circuito de informações quase fechado.  Calculo qual seria a irritação do antropólogo Nina Rodrigues (1862-1906), que se queixava do desconhecimento a respeito das línguas africanas no Brasil, ao ver que mais de um século após a sua morte ainda são lidas ou ouvidas idiotices deste quilate.  Já que mencionei Nina, sigo com a imagem de um antigo açougue de Salvador, que consta do livro Os africanos no Brasil e, em fenômeno quase inacreditável, tinha o letreiro impresso numa língua "exclusivamente oral", de acordo com a família Mezzo Cérebro. O cúmulo da ironia é o fato de Péssimo Menezes ser baiano!!!       





                   
             A tentativa de negação do caráter racializado que a escravidão possuiu no Brasil chega a dar pena.  Caso eu fosse o dono de uma máquina do tempo, enviaria Mezzo Cérebro & Péssimo ao Parlamento imperial de 1826.  Ali, Bernardo Pereira de Vasconcelos, que mais tarde se tornaria um dos principais nomes do conservadorismo no país, afirmou categoricamente, ao defender a atitude dos tripulantes de um navio que trataram negros livres como se fossem escravos, que "a presunção é que um homem de cor preta seja sempre escravo".  (ver Octavio Tarquinio de Sousa.  História dos fundadores do Império do Brasil, vol. V: Bernardo Pereira de Vasconcelos.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 49-50. 
             Dentro de uma lógica semelhante, após a Revolta dos Malês de 1835 os "homens de cor livres" da Bahia, nas viagens pela província, ficaram sujeitos ao uso de passaportes, numa violação brutal do princípio da igualdade perante a lei registrado na Constituição de 1824 (ver Paulo César Souza.  A Sabinada: a revolta separatista da Bahia, 1837.  São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 142-143).




            Não custa nada lembrar que um "a" craseado antes de "pão" quebra toda e qualquer firma.  O pior deste trecho, porém, é o retorno à velha construção da escravidão suave, adocicada, mesmo que limitada a um grupo seleto.  João José Reis, que estudou minuciosamente a Revolta dos Malês, fez a seguinte observação sobre os participantes daquele movimento:

No interior de casebres, lojas e quartos pobres e superpovoados, libertos e escravos tentaram redefinir como viver de maneira mais independente de senhores e autoridades.  Isto, é claro, não foi possível para todos os escravos, pois nem todos os senhores permitiam que seus escravos se afastassem em demasia do raio em que seu poder se exercia.  
(Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835.  São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 416)      

          O mesmo autor recupera uma conclusão de Kátia Mattoso, para quem 90% dos moradores livres de Salvador [área onde mais havia escravos malês no Brasil] viviam no limiar da pobreza (idem, p. 29).  As pesquisas do próprio Reis demonstram que a concentração de renda na cidade era tão alta que os 10% mais ricos detinham, na primeira metade do século XIX, 66,9% da riqueza total (ibidem, p. 30-31).  Falta, portanto, uma explicação sobre a mágica que permitia que uma sociedade miserável tratasse nababescamente uma parte de seus escravos.  Talvez, nos delírios da família Mezzo Cérebro, os proprietários dos malês dessem filé mignon aos cativos enquanto comiam dobradinha. 
          É significativa a informação de que o líder mais eminente da revolta, Pacífico Licutan, era um simples enrolador de fumo, escravo de aluguel, que ao ser interrogado pela polícia declarou sofrer "mau cativeiro" por  parte de seu senhor, um médico (ibidem, p. 287-288) 
       Sobre a presumida "discriminação" dos malês contra os outros negros, podemos compreender pela leitura da mesma obra  que o rancor dos primeiros contra os escravos nascidos no Brasil, inclusive os mulatos, girava em torno da suspeição de que os últimos seriam "vendidos ao sistema" (expressão do autor), coniventes com os senhores (ibidem, p. 387).  Por outro lado, os nagôs, que formavam a maioria entre os rebeldes malês, souberam se aliar a africanos de outras etnias no ataque à ordem escravista. A hipótese da "aristocracia escrava" esnobe e excludente não passa de uma abobrinha infantil. 



                 
         Como têm na ponta da língua o discurso sobre norte-africanos que puseram grilhões em europeus, os editores daquele blog, para ganhar ainda mais credibilidade, deveriam explicar que quesitos inferiorizavam os franceses, espanhóis, italianos e ingleses escravizados na Idade Moderna pelos "piratas da Barbária", na comparação com seus escravizadores "mouros".  Não me arrisco a adivinhar.     



            Os recursos da família Mezzo Cérebro, devo admitir, não se limitam ao uso indiscriminado do chutômetro.  Nesta passagem aprendemos que a melhor defesa contra uma relação social desfavorável  é fazer de conta que ela não existe.  Deixem de notar que o batalhão X só mata negros, e aos poucos ele deixará de matar!  Parem de reclamar que a empresa Y não contrata negros, e logo haverá uma maioria afro-mestiça no seu quadro de funcionários!  A proposta é tão boa que já estou pensando em adaptá-la para as populações que habitam áreas sujeitas a terremotos, erupções vulcânicas e tsunamis: -Só existe catástrofe se você quiser acreditar nisto!!!  A senhorita Ortografia também agradece pelo "Engove" que lhe foi fornecido com o rótulo em "irorubá".      



        Temos aqui um novo atentado à língua.  Só posso dizer que poucas coisas são mais engraçadas do que lidar com sujeitos que se consideram cercados de analfabetos e ignorantes por todos os lados enquanto produzem sentenças como "os sofrimentos (...) não respeita".   


            O acento em tofu revela alguma coisa.  Nosso idioma oficial, se pudesse se exprimir como uma pessoa, usaria a mesma palavra para definir sua condição atual nos arraiais da nova direita.  Para fechar com chave de ouro, descobrimos também que o freguês de um self service que escolhe comer somente estrogonofe, arroz e fritas em determinado almoço incorre em prática discriminatória contra os outros 27 pratos que tem à disposição naquele dia.  Encerro lamentando o solene desprezo dedicado pela família Mezzo Cérebro ao sistema de ensino oficial.  Que teses de Sociologia eles não seriam capazes de parir!!!  
    

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A juventude Mezzo Cérebro

       

     Os programas humorísticos da segunda metade dos anos 70 figuram entre as melhores lembranças da minha infância e do começo da adolescência.  Jô Soares sobressaía, na época, como o mais talentoso criador de personagens que muitas vezes serviam como instrumento para uma sátira desconcertante da ditadura.  Recordo-me hoje de um tipo burguês arrogante, interpretado por Jô, que ridicularizava em festas, perante seus amigos, as falas de garotos supostamente desinformados.  A cada rodada de "pérolas", seguia o bordão "A ignorância da juventude é um espanto!".  Entretanto, a graça do quadro estava em constatar que o homem de meia idade que se julgava culto proferia asneiras em grande quantidade para "desmontar" as afirmativas corretas dos jovens.
      Encontro uma situação diametralmente oposta ao visitar a página do Facebook e o blog do grupo intitulado "Meu professor de História mentiu para mim", que segundo investigações independentes conta com três editores, um dos quais já razoavelmente conhecido no mundo virtual pela alcunha de Daniel Mezzo Cérebro.  Muito jovens, eles se distinguem pela algo divertida pretensão de humilhar diante de não poucos seguidores uns 90% da sociedade, em particular a militância de esquerda e os professores de História maduros, que consideram os agentes disseminadores, por excelência, de lugares comuns "progressistas" e multiculturais.  Não satisfeitos em reproduzir em grande escala a literatura de tipo narlochiano e todos os clichês da propaganda reacionária contemporânea, alimentam a ambição de construir seu próprio conteúdo, como vemos neste link:       

http://meuprofessordehistoriamentiupramim.blogspot.com.br/2013/11/tudo-que-seu-professorzinho-do-mequi.html

       Não discutirei por ora a lamentável tentativa de banalizar ou descaracterizar os preconceitos de origem e etnia.  A Internet está superpovoada de elementos cínicos ou desequilibrados o suficiente para sustentar que a melhor alternativa para o cidadão chamado quase diariamente de paraíba, crioulo e termos equivalentes, servindo ainda de alvo preferencial da polícia e de quadrilhas neonazistas, é juntar uma tonelada de dinheiro e passar do time dos discriminados para o dos discriminadores.  Podemos criticá-los a qualquer instante, coisa que continuarei fazendo, mas meu foco neste momento é a quantidade de disparates e dados inventados que Mezzo Cérebro e seus sócios reúnem em tão pouco espaço.  Para não tornar a matéria longa demais, e digo isto sem ironia, decidi fracioná-la em dois blocos.  Vamos, então, ao primeiro, composto por quatro citações.        

      Apesar de todo o entusiasmo do trio politicamente incorreto, simples dados factuais arrasam a fábula.  Constatamos que na Inglaterra do século XI, há muito cristianizada, os escravos continuavam desempenhando um papel significativo na produção: 
Pela metade do século XI, o governo escandinavo havia sido derrubado e um reino anglo-saxão recentemente unificado fora restaurado.  O campesinato por esta época consistia geralmente de rendeiros semi-dependentes, exceto nas áreas de antiga colonização dinamarquesa mais a nordeste, onde havia muitos lotes alodiais de proprietários jurisdicionais.  Os escravos ainda existiam, compreendendo uns 10 por cento da força de trabalho; eram mais importantes economicamente nas regiões ocidentais mais remotas, onde a resistência céltica à conquista anglo-saxônica fora mais demorada, e os escravos compreendiam um quinto ou mais da população.
(Perry Anderson.  Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.  São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 155)
     Descartemos da Europa, talvez, esta Inglaterra excessivamente "bárbara".  Os civilizadíssimos bizantinos, na mesma época e até mais tarde, reduziam ao cativeiro, em elevada proporção, populações cristãs dos Bálcãs. 
A ocupação bizantina [na Bulgária] durante os séculos XI  e XII levou a um rápido aumento das grandes propriedades e à intensificação das extorsões sobre o campesinato.  Pela primeira vez foi introduzida na Bulgária a instituição da pronoia e  multiplicadas as comunidades ekskousseia.  Números crescentes de antigos camponeses livres caíam na situação de paroikoi dependentes, e a escravidão se expandia contemporaneamente graças ao cativeiro de prisioneiros de guerra. 
 
(Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, p. 277) 
           Muito além dos limites da Idade Média, John Locke poderia ensinar a Mezzo Cérebro & Cia., através das Constituições Fundamentais da Carolina, que o fato de um escravo frequentar a igreja de sua preferência em nada afetava os direitos do senhor sobre sua pessoa:   
(...) no plano civil, os escravos, como todos os outros, podem legitimamente se registrar e aderir à igreja ou confissão que cada um deles julgue a melhor e dela se tornar membros, tão plenamente como acontece com qualquer homem livre.  Entretanto, nenhum escravo deixa por isso de se submeter ao poder civil que seu dono exerce sobre ele e, em todos os aspectos, cada um permanece no mesmo estado e na mesma condição de antes.
(Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil.  Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 315. 

 

           A família Mezzo Cérebro, cujos integrantes não são formados em História, está obviamente desobrigada de saber que o Cristianismo chegou ao reino de Axum, situado em terras dos atuais Etiópia e Sudão, ainda na Antiguidade, transformando-se em religião oficial.  Também podem ignorar à vontade que as terras da Núbia "medieval" estiveram repartidas entre os Estados cristãos da Nobácia, Macúria e Alódia, que tiveram certo êxito, por alguns séculos, na contenção da expansão islâmica.  Mas, sobretudo, devem aliviar o mundo virtual da sua fábrica de balelas!!!

            
         Quanta bobagem em tão poucas linhas!  Alguns colegas maliciosos dizem que na verdade foi o próprio professor de História que desistiu desta turma.  Vou adiante e assinalo que Mezzo Cérebro & Cia. brigaram também com o professor de Português, como se nota no trecho "dO norte da África, que tinha sido aculturadA", a não ser que retruquem afirmando que toda a África foi "aculturada" por muçulmanos, sepultando de vez a realidade para retocar a gramática. 
      Não me atrevo a adivinhar qual é o conceito de tecnologia dos prodigiosos jovens conservadores, mas caso tivessem lido superficialmente qualquer manual de História para crianças da antiga quinta série (sim, daqueles aprovados pelo MEC!) saberiam que o trabalho do homem com os metais antecedeu em muito a feitura dos primeiros sinais cuneiformes na velha Mesopotâmia.  Em outras palavras, um bom Mario Furley Schmidt iria salvá-los de uma opinião estúpida como a de que não há tecnologia sem escrita. 
        Para arrematar a obra, o autor do "texto" nos garante que nenhuma língua da África Subsaariana possuía representação escrita antes da expansão do Islã, empregando ainda caixa alta para dar mais destaque à asneira.  Vou poupá-lo de bibliografia vinda do MEC, mas preciso apresentá-lo à escrita meroíta, usada na antiga Núbia, que já possuía uma versão alfabética quando boa parte dos habitantes do norte europeu sequer imaginava o que era um alfabeto. 


 
 
  

 
     
         Temos aqui novos chutes, tão ruins quanto os anteriores e com o agravante das referências absurdas.  A África de Mezzo Cérebro brota, sem dúvida, de filmes da série Indiana Jones ou das reprises de Allan Quatermain.  Sobre um dos mencionados impérios de "primitivos que dançavam em volta da fogueira", escreveu João Carlos Rodrigues que

O principal governante do Mali foi Kankan Mussa, ou mansa Mussa (1312-1332), irmão e sucessor de Abubakar que alcançou celebridade internacional ao empreender, em 1324, uma peregrinação a Meca.  Sua estada no Cairo causou rebuliço pela quantidade de ouro que distribuiu e pela suntuosidade do seu séquito.  O historiador Al-Omari escreveria dele em 1336 na sua obra África sem o Egito: "É o mais importante dos reis negros muçulmanos; seu reino é o maior, seu Exército, o mais numeroso; é o mais poderoso, o mais rico, o mais temido pelos inimigos e o mais capaz de boas ações".  De volta da Arábia, Mussa trouxe consigo numerosos teólogos, cientistas e artistas- entre eles o quase lendário arquiteto andaluz Al-Saheli, autor da mesquita Djinger-Ber, em Timbuctu, e outras obras características do esdrúxulo [!] estilo sudanês.  Seu reino marcou o apogeu do Mali. 

(Pequena História da África Negra.  São Paulo: Globo; Brasília: Biblioteca Nacional, 1990, p. 34)     

      Para seguir  com a esdrúxula (sem exclamação) tese da família Mezzo Cérebro, precisaríamos conceber o mito do rei que importava intelectuais e técnicos qualificados para ... nada, já que seus súditos eram todos selvagens!
       Sobre o "Dahomey", atual Benin, o mesmo Rodrigues relata que durante o reinado de Agajá (1708-1727) havia uma organização de governo bastante elaborada, em que "cada funcionário administrativo tinha como correspondente ou duplo uma mulher encarregada de controlá-lo e denunciá-lo ao Estado em caso de irregularidades" (Pequena História da África Negra, p. 94).  Não muito longe dali, na cidade de Bigu, em território que hoje corresponde à República de Gana, Alberto da Costa e Silva informa que existia, já em meados do século XV, "um importante centro têxtil, de produção de ferro e trabalho no marfim e no cobre". ( Ver A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 195) 

       Apesar do estilo, e dos outros defeitos da página, um público superior a 50 mil pessoas manifesta aprovação a "Meu professor de História mentiu para mim".  Não cultivo a ilusão de ser o único que enxerga em um mundo de cegos: é evidente que muitos dos que "curtem" identificam as invenções, distorções e generalizações primárias dos editores.  Todavia, quando se trata de defender o indefensável, uma mentira a favor vale mais do que uma verdade contrária.  Concluo em breve...
          



quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Carta ao pós-adolescente coxinha



Jovem criatura,
        Não devo tratá-lo como caro, e penso que nisto concordaremos, e talvez em mais nada.  Tenho o desprazer quase diário de constatar a sua presença próxima desde que me aventurei pela primeira vez na Internet, já estando naquela altura bem acima da sua idade atual.  Gabriel O Pensador, em música de uns dez anos atrás, disse que era mais fácil comprar maconha do que pão.  Esbarrar no seu discurso, entretanto, é mais fácil do que achar maconha OU pão.  
        Às vezes você parece homem, às vezes mulher, o nome também varia muito, o que em regra faz  com que eu simplesmente me esqueça do rótulo vinte minutos depois.  Mas sempre posso localizá-lo, com a cara que assumir na ocasião, naquele fórum em que se fala que é normal chamar pejorativamente de baianos ou paraíbas todos os brasileiros que nasceram ao norte da cidade mineira de Nanuque, visto que a maioria deles têm uma inserção subalterna nas sociedades do Sul e do Sudeste e não se pode reprimir as "atitudes espontâneas" dos indivíduos. Clicando na primeira das páginas afins, verei seu perfil alternativo sustentar com fúria, ao longo de horas, que o idoso gay assassinado ontem pelo garoto de programa que contratou recebeu o que estava procurando, e que a Justiça deve cuidar do caso como assunto trivial, até porque o morto violava as leis da Natureza.  Instalada no tópico logo abaixo, outra parcela de você condenará ao tratamento de cem pilhas de louça a feminista que protestou em frente às câmeras da Globo sacudindo as estatísticas sobre quantas mulheres espancadas pelos maridos foram internadas nos hospitais da sua cidade nos últimos cinco anos.  
        Suas contrapartes blogueiras, em milhares de versões, estarão defendendo o eventual bombardeio da aviação israelense contra algum alvo a quatro mil quilômetros de Tel Aviv onde supostamente existem simpatizantes do Hamas, e condenando a frouxidão do governo Obama nas relações com o Irã;  pregarão quarteladas dirigidas por formandos da Escola das Américas, a favor de latifundiários e banqueiros, em qualquer país centro-americano no qual um partido de esquerda vença as eleições presidenciais e tente aprovar no Congresso tímidas emendas constitucionais a favor dos setores populares; imputarão a negros de todas as partes da América a responsabilidade integral por sua miséria e falta de oportunidades, tentando convencê-los da honra que têm de permanecer na cozinha em uma sociedade gloriosa, quando poderiam viver como selvagens da série Indiana Jones; anunciarão a falência econômica do Brasil (ou a da Argentina, ou a do Uruguai) cada vez que gráficos mostrarem no horário nobre da televisão que a massa salarial cresceu 1% nos últimos doze meses.  
        Sabemos bem que o seu clichê preferido é o de que os "perdedores", ao invés de se esforçar para progredir em condições desfavoráveis (como se a sociedade estivesse de pernas e braços abertos para acolher a todos em seus melhores espaços), se "vitimizam" e depositam as esperanças no socorro do Leviatã malvado. 
      Olhando o quadro de outro ângulo, percebo que  a única vítima imaginária é você mesmo.  Nascido no Brasil que disputava com Honduras, Serra Leoa e Botswana a taça da pior distribuição de renda do planeta, tem nostalgia dos tempos recentes em que pessoas das classes  D e E se sujeitavam às piores condições de trabalho possíveis para lavar os pratos e as privadas da casa dos seus pais em troca de um salário mínimo ainda mais depreciado do que o atual. Sonha ver nos olhos de pobres conformados a mesma admiração desfrutada por seu avô há cinquenta anos por andar limpo, bem vestido e "falar bem". Tem na ponta da língua a ladainha liberaloide de que só no laissez-faire há crescimento (não importando quantos exemplos conheça do contrário), mas está muito mais preocupado com a salvação do seu status meio roto de principezinho de classe média do que com o desempenho macroeconômico do país.  Em resumo, se sente acuado pelas conquistas dos que identifica como inferiores, mesmo que isto não implique em qualquer perda material para você.  
        Sei o quanto me tornarei desagradável pela sentença, mas o fato é que você é um anti cidadão, hostil a qualquer igualdade e, desta forma, constitui mais um tipo de pré-capitalista do que o burguês moderno que busca no espelho enquanto experimenta roupas de grife.  Noto com estarrecimento e certa irritação que seus próprios pais, socializados em contextos  mais adversos a mudanças, nem sempre lhe acompanham no reacionarismo.  O seu melhor dos mundos talvez fosse a vida em um Estado caricato onde todos beijariam a mão de um carrancudo D. Pedro III (legitimando todas as hierarquias de nascimento em efeito cascata) e reviveriam relações sociais da Idade Média sob a batuta de pregadores que proclamariam a excelência moral do projeto, enquanto você  exibiria seu carro novo para os pobres mortais a cada quatro meses.
        É certo que, caso você tenha avançado até este ponto, já estarei associado a todos os espantalhos falecidos que habitualmente são usados pela direita, a cada derrota política sofrida, para anunciar um iminente genocídio.  Porém, bem mais sádico do que o pior deles, não desejo a sua morte ou a sua prisão, tampouco que ganhe uma reles canelada no futebol ou no jiu-jitsu.  Quero apenas ver o seu "programa social" naufragar por completo, que metade dos seus futuros colegas no mestrado ou na direção da empresa sejam ex-cotistas, que ninguém passe a sua roupa  daqui a vinte anos por menos do que a diária praticada em Frankfurt, que seu filho curse uma faculdade de História ao lado do filho do boy que carrega as contas do seu pai para a fila do Bradesco.  Neste cenário talvez você siga o cínico lema de Roberto Campos ("liberalismo, Galeão ou Cumbica") e promova uma boa diversão  para a minha terceira idade, editando de qualquer cidadezinha do Kentucky ou da Nova Escócia uma página lotada de impropérios contra o inferno natal de que "fugiu".
       Para fechar, deixo votos de grande insucesso na campanha que fará em 2014 para os "socialistas fabianos" do PSDB (o "mal menor"), e o meu abraço de urso.                
                                  

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Desagravo a Cléo Tibiriçá, com observações sobre um Torquemada liliputiano


      
     Há cerca de um ano e meio, numa das primeiras matérias do blog, alinhei breves comentários a respeito de uma sombria página virtual, Escola sem Partido, que sob o pretexto da proteção à integridade moral dos jovens  promove a  apologia de projetos políticos dos mais retrógrados.
       Devo acatar os direitos ao exercício da crítica e ao confronto de ideias por parte do fundador do movimento mencionado e dos seus colaboradores, apesar da total divergência que manifesto em relação às suas teses.  Todavia, o Sr. Miguel Nagib, em texto do último dia 22, publicado com a promessa de constituir o início de uma série, incorreu em postura abominável, tentando intimidar uma docente do ensino superior.      
 http://www.escolasempartido.org/universidades/424-doutrinacao-ideologica-na-fatec-de-barueri-1-parte
       O advogado (!) Nagib pretende imputar à professora Cleonildi Tibiriçá, da Faculdade de Tecnologia de São Paulo, uma pecha de criminosa, fazendo ainda comunicação das presumidas transgressões ao coordenador do curso em que a mesma leciona (o de Comércio Exterior da FATEC-Barueri), ao diretor daquela faculdade e ao secretário de Educação do Estado de São Paulo.  O maior delito, nesta perspectiva, foi o de "forçar" os alunos à leitura de autores acadêmicos de variada projeção, como Eric Hobsbawn, Fernando Nogueira da Costa e Marcos Bagno, apresentando ainda artigos impressos, documentários e entrevistas produzidos por personalidades associadas à esquerda.  A lista resulta no total de quatorze itens trabalhados com os discentes.           
       É óbvio que, sob o aspecto institucional, a "denúncia" de Nagib será inócua. Colocar em execução um plano de curso cujos referenciais teóricos se situam à esquerda (ou à direita) só pode constituir figura penal sob uma ótica panfletária, demagógica e própria para mobilizar apenas imbecis incuráveis.  Mesmo que algum dos dirigentes notificados pense por um minuto em compactuar com a iniciativa do "nosso" desastrado censor, nada fará contra Cléo Tibiriçá, pelo mero fato de  valorizar sua carreira e não almejar um título vitalício de ditador, com as justas manifestações de desapreço que viriam a reboque.  É divertido, de certa forma, perceber que Nagib acaba por tecer um excelente elogio involuntário à desafeta que alega ignorar quem seja; ao acusá-la de realizar com êxito tantas "atividades subversivas", precisa ao menos admitir que está diante de uma "doutrinadora" extremamente competente e assídua ao trabalho, sob pena de cair no ridículo.  Mas não escapa do vexame, entretanto, quando sugere que Cléo Tibiriçá impõe uma espécie de "pensamento único" e ao mesmo tempo revela que nas aulas foram debatidos, ou no mínimo apresentados, pensadores marxistas e não marxistas, e que tiveram voz representantes de partidos tão diferenciados quanto o PSB e o PSTU.  Desejo com passionalidade que Miguel Nagib fique bastante irritado ao notar que anunciou para milhares de pessoas os talentos de uma até então desconhecida doutoranda de Barueri.          
        Exponho solidariedade integral à docente atingida pelo ataque despropositado e selvagem.  Mas não quero me limitar a isto.  É preciso, mais uma vez, demonstrar que o atacante é muito melhor como vidraça do que como pedra.   Ao mesmo tempo em que se escandaliza, ou simula estar escandalizado com professores esquerdistas para agradar à plateia, Nagib comprova no texto medíocre seu forte ranço ultradireitista.  Ele atribui à vitoriosa Revolução dos Cravos, que se livrou da decrépita herança colonial e se desdobrou no sistema multipartidário que até hoje permanece em Portugal,  o rótulo simplista de "golpe militar", enquanto o "regime salazarista" curiosamente escapa da merecida classificação de ditadura ou tirania.  Produz, na mesma linha, uma generalização distorcida  e desprovida da mais baixa dose de honestidade intelectual na referência ao livro Preconceito Linguístico, de Marcos Bagno.  Nagib afirma que para o autor "a norma culta é instrumento de opressão da classe dominante contra os pobres", quando qualquer leitor ponderado perceberia que a indignação de Bagno se volta contra o preconceito sofrido pelos que não dominam a variante culta da língua, e não contra a existência da mesma.  Joga em estilo desprezível para impressionar um certo tipo de reacionário, ao mesmo tempo pedante e mentalmente preguiçoso, dando-lhe a impressão de que Marcos Bagno deseja obrigar todos os brasileiros a referendarem a conjugação cês foi, nós vai, a gente fumo em nome da libertação das classes populares.    
      Temos, desta maneira, o perfil real do homem que pretende pairar acima das doutrinações e se instituir como juiz de presumidos abusos ideológicos.  Rosnando contra o domínio da esquerda sobre o sistema de ensino, o que não passa de falácia repetida à exaustão,  ele deixa claro que gostaria de substituí-lo por um proselitismo de direita cujas matrizes são evidenciadas nos textos acessórios que publica na página do movimento que comanda.  Estes últimos, diga-se de passagem, sempre mais bem escritos do que os assinados pelo dono do site, o que também não considero grande vantagem. Miguel Nagib sequer se esforça um pouco para manter a máscara em seu lugar, quando propõe, como alternativa para os livros didáticos aprovados pelo MEC, a compra dos panfletos inconsistentes intitulados, em esperta manobra midiática, "guias politicamente incorretos".  Não acredito que o Torquemada frustrado enxergue em Cléo Tibiriçá um décimo do perigo que alardeia.  Estou mais propenso a imaginar que seus patrocínios escasseiam, até pela pobreza dos argumentos e pela falta de alcance das ações, e que só alegando duvidosos serviços de combate pode tentar reverter o quadro.  Miguel Nagib, calado, é um poeta dos melhores.         
       

      

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Um pouco de Gramsci, "meritocracia" brasileira e cotas




"A questão é complexa.  Decerto, a criança de uma família tradicional de intelectuais supera mais facilmente o processo de adaptação psicofísico; quando entra na sala de aula pela primeira vez, já tem vários pontos de vantagem sobre seus colegas, possui uma orientação já adquirida por hábitos familiares: concentra a atenção com mais facilidade, pois tem o hábito da contenção física, etc.  Do mesmo modo, o filho de um operário urbano sofre menos quando entra na fábrica do que um filho de camponeses ou do que um jovem camponês já desenvolvido para a vida rural.  Também o regime alimentar tem importância, etc., etc.  Eis por que muitas pessoas do povo pensam que, nas dificuldades do estudo, exista um 'truque' contra elas (quando não pensam que são estúpidos por natureza): veem o senhor (e para muitos, no campo, senhor quer dizer intelectual) realizar com desenvoltura e aparente facilidade o trabalho que custa aos seus filhos lágrimas e sangue, e pensam que exista algum 'truque' ".
(Antonio Gramsci.  Cadernos do cárcere, volume 2.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 52)   
       A passagem que transcrevo faz parte do caderno 12 de Gramsci, escrito em 1932, cujo título é Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais.  Somos levados de imediato a traçar linhas paralelas entre a sociedade italiana de oito décadas atrás e o Brasil contemporâneo. Neste, a vitalidade dos mecanismos de concentração de renda e saber, opressivos e onipresentes, nos permite distinguir com exatidão a classe social e o nível de instrução de uma pessoa após breves momentos de observação; em certos casos, sem que o observado tenha sequer a necessidade de abrir a boca.
       Tal como na Itália do Período Entreguerras, a naturalização dos abismos sociais é uma via de mão dupla: por um lado, as parcelas instruídas e endinheiradas da população não esperam que os filhos dos pobres e mal alfabetizados  alcancem mais do que uma alfabetização precária que lhes permita o acesso às mesmas tarefas de baixa qualificação e mal remuneradas exercidas por seus pais; de outro, muitos pobres se resignam à fórmula "filho de peão, peão é".  Veem a escola de seus filhos apenas como um "espaço seguro" onde os deixam durante metade do dia, um local de socialização pouco ou nada vinculado às relações que assumirão posteriormente no mundo da produção.  
       Do alto de uma experiência de quatorze anos na rede estadual e em algumas prefeituras do estado do Rio de Janeiro, eu poderia afirmar, sem dúvida, que conheci um número respeitável de exceções, de crianças, adolescentes e adultos que superando dificuldades estruturais obtiveram uma escolaridade real acima do padrão das comunidades em que vivem.  Entretanto, tais êxitos nem sempre se traduzem em oportunidades econômicas ou na aceitação social por parte de uma classe média com a qual continuam a não compartilhar espaços e de quem raramente  receberão tratamento igualitário.  O projeto de realizar um curso superior que venha a lhes garantir em definitivo a migração do trabalho braçal para o intelectual pode ser abortado de variadas formas, entre elas a mera precariedade do transporte entre as universidades públicas e as favelas e/ou comunidades interioranas.                  
       A leitura de Gramsci, porém, também nos devolve quase obrigatoriamente à discussão sobre cotas no sistema de ensino, em pauta há vários anos no país.  É notório que a maioria dos argumentos dos adversários desta política gira em torno de um determinado conceito de meritocracia. Ouvimos com frequência que cotas "discriminam os mais inteligentes", "estimulam a não estudar" e  "prejudicam quem estudou mais".  Poderíamos, sem grande esforço, encontrar e listar incontáveis variantes do discurso, mas o essencial é que, para os anticotistas, a concessão de qualquer tipo de bônus aos pobres, negros, índios e demais categorias desfavorecidas fere as regras de uma livre competição que deveria prevalecer no ingresso a todas as instituições educacionais de nível médio e superior.  Eventualmente, incorporando o discurso do Estado Mínimo, eles se opõem até mesmo a políticas nada ameaçadoras do status quo como a merenda escolar e o transporte gratuito para estudantes.    
       Mas um olhar superficial é o bastante para tornar risível a mera possibilidade de que exista "competição livre" em qualquer setor da vida brasileira, e em particular no acesso ao ensino médio e superior de qualidade.  Já me referi, na postagem Algumas considerações sobre cotas (http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/04/algumas-consideracoes-sobre-cotas.html), ao desequilíbrio extremo que se verifica na oferta de educação básica no país, com evidente prejuízo dos que não têm acesso às escolas particulares de alto ou médio padrão ou às poucas instituições públicas de ponta, o que me leva a considerar, quanto aos exames de tipo vestibular, que as cotas "sociais" seriam mais justas do que as "raciais". 
        Não podendo negar ou minimizar um dado tão evidente, respondem os anticotistas que, ao invés de estabelecer "discriminações invertidas", o Estado deveria promover a excelência educacional em todos os níveis e em todas as partes do território. Simulam ignorar, como igualmente já apontei, que o aprendizado e o desempenho escolar dependem de diversos fatores que ultrapassam os muros das escolas, e que todo e qualquer governo que venha a colocar o atendimento às necessidades básicas da maioria acima das "grandes obras" e do sustento de uma base parlamentar fisiológica será impiedosamente sabotado com todos os meios "legais" e criminosos ao alcance de seus opositores.  
       A resolução efetiva das questões educacionais, bem como a superação das relações discriminatórias que permeiam a sociedade brasileira em todas as atividades e em múltiplas direções, passa pela supressão do capitalismo e pelo estabelecimento de uma democracia popular.
     
          

       

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Sobre a nova direita e o velho fascismo



"O fascismo apresentou-se como o antipartido, abriu as portas para todos os candidatos; e, prometendo a impunidade, permitiu que uma multidão informe cobrisse com um verniz de idealismo político vago e nebuloso o transbordamento selvagem das paixões, dos ódios, dos desejos.  O fascismo tornou-se assim uma expressão de nossos costumes, identificando-se com a psicologia bárbara e antissocial de alguns estratos do povo italiano, ainda não modificados por uma nova tradição, pela escola, pela convivência em um Estado bem organizado e bem administrado.  Para compreender todo o significado destas afirmações, basta recordar que a Itália tinha o primado em homicídios e linchamentos; que a Itália é o país onde as mães educam os filhos com golpes de tamanco na cabeça, o país onde as jovens gerações são menos respeitadas e protegidas; que, em algumas regiões italianas, parecia natural, até poucos anos atrás, por uma focinheira nos vindimeiros para que não comessem as uvas; que em algumas regiões, os proprietários trancavam a chave os seus trabalhadores nos estábulos, quando estes voltavam do trabalho, a fim de impedi-los de reunir-se e de frequentar as escolas noturnas".

       O fragmento de texto que apresento aos leitores foi escrito por Antonio Gramsci (1891-1937) em 26 de abril de 1921, ou seja, cerca de um ano antes da tomada do poder pelos fascistas. Saltam aos olhos mais desatentos as semelhanças entre um país cujas relações sociais eram consideradas bárbaras, brutais, na Europa de quase um século atrás, e o Brasil contemporâneo.  Não temos obrigatoriamente o "primado dos homicídios" no ranking mundial, mas nossos índices apavoram; às mortes resultantes das disputas territoriais entre facções do crime organizado, entre estas e as polícias, aos latrocínios, somam-se milhares de delitos passionais sequer vistos como transgressões por seus autores, que por vezes entendem como justiça o "exercício arbitrário das próprias razões". Os castigos físicos, longe de ficarem limitados a uma esfera doméstica da qual por vezes ocorre a migração  para os jornais televisivos, quando crianças perecem em consequência das pancadas desfechadas por pais, mães, avós ou padrastos, são corriqueiramente empregados por agentes do próprio Estado como instrumento de submissão das classes julgadas perigosas.  Não nos surpreendem, tampouco, as notícias sobre o trabalho em condições análogas à escravidão, com a retenção de agricultores em alojamentos insalubres de fazendas nem sempre distantes dos grandes centros, sob a mira de seguranças armados.  O ensino de adultos, pouco valorizado, não atinge o extremo de motivar episódios de cárcere privado, mas a autorização para frequentá-lo é considerada uma grande concessão por certos empregadores, que veem com maus olhos a possibilidade de dispensar parte da mão de obra enquanto ainda se percebe um pouco de luz solar.
            Os intérpretes destes fenômenos sempre divergiram, segundo suas concepções doutrinárias e filiações partidárias, acerca das origens das mazelas e dos remédios que devem saná-las.  Porém, mesmo os políticos de direita de tipo tradicional, não obstante suas práticas (ou as de seus patronos) no mundo da produção, habitualmente condenam no plano retórico as variadas formas de violência que se exercem "de cima para baixo" em nossa sociedade.  É certo que podemos apanhá-los, no calor de certas discussões, em flagrante contradição, como nos casos em que a tentativa, ou mera sugestão, de desapropriar terras onde foi comprovado o cativeiro de trabalhadores ou o cultivo de maconha se faz acompanhar por furiosa resistência parlamentar.  Contudo, salvo raras exceções, em regra produzidas nos momentos de confrontação ideológica mais exacerbada, havia um certo consenso, até poucos anos atrás, quanto ao espantoso grau de injustiça vigente na sociedade brasileira e à necessidade de  modificar este panorama.  Isto se refletiu, por exemplo, na ampliação de diversos direitos sociais e trabalhistas, com numerosos votos de constituintes conservadores, na Carta de 1988.
        Percebemos na contemporaneidade a consolidação de um novo tipo de direita cujos ídolos, conforme o grau de instrução e as preocupações imediatas de seus componentes, podem ser Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, Luiz Carlos Prates, Rachel Scheherazade, Leandro Narloch, o falecido Luiz Carlos Alborghetti ou um pequeno punhado de genéricos mais ou menos anônimos, do gênero celebridades de Internet.  Salvo o próprio Bolsonaro, ainda não contam com uma representação formal no Congresso ou nos governos estaduais e municipais, mas é previsível que em futuro próximo construam o seu Front National*, e as "pérolas do reacionarismo" que por vezes aqui exibo como caricaturas ou celebrações particulares da imbecilidade humana se transformarão em elemento corriqueiro da vida política brasileira.
       Eles não se limitam, como muitos de seus antecessores, a defender a manutenção do capitalismo em sua plenitude e a presumida necessidade da hegemonia político-militar do Estados Unidos no cenário global.  Desenvolvem uma campanha vigorosa contra qualquer alteração do status quo no sentido do avanço das forças populares e da supressão ou amenização das barreiras de classe, gênero e etnia.  Costumeiramente são demagógicos e mergulham na histeria: a regulamentação rotineira de um artigo da legislação trabalhista, ou uma explosão de fúria de três ou quatro militantes durante uma passeata, de súbito são anunciadas em milhares de páginas virtuais como indícios inegáveis da vinda próxima do Leviatã comunista. 
        Os mentores desta nova direita estão cientes, é claro, de que as correlações de força existentes no mundo real passam por linhas bastante diversas daquilo que apregoam: as possibilidades concretas de que as forças de esquerda venham a derrubar o capitalismo, na maioria esmagadora dos países, são quase nulas; apesar dos progressos alcançados pelos movimentos sociais nas últimas décadas, as chances de exercício da cidadania plena e as oportunidades econômicas oferecidas a mulheres, pobres, negros, gays e "dissidentes" da sociedade capitalista permanecem notavelmente inferiores às que se colocam para o "burguês branco heterossexual conservador"; até mesmo a recente ascensão ao poder de partidos formalmente esquerdistas em alguns países da América Latina se faz acompanhar por um elevado grau de compromisso com segmentos do empresariado e políticos de tipo oligárquico "antigo".  
        A apreensão do mundo real, entretanto, pouco importa para as lideranças da nova direita.  Basta que suas distorções do noticiário da grande mídia (comicamente denunciada como esquerdista ou liberal esquerdizante), suas patéticas teorias da conspiração, sirvam para continuar a arregimentar seguidores aterrorizados com a iminência de uma nova ordem dominada por comunistas, terroristas muçulmanos e minorias organizadas que supostamente matarão cem, trezentos ou quinhentos milhões de terráqueos por puro instinto de perversidade. 
        Talvez seja irrelevante debatermos se cabe à nova direita, cujo reduto mais confortável, sem dúvida, ainda é a Internet, o rótulo de fascista.  Inclusive creio que, caso recorramos às definições de fascismo dos melhores especialistas, o diagnóstico será negativo.  Entretanto, seu parentesco com os mussolinianos da década de 1920 torna-se patente na intenção declarada (e permeada pela nostalgia das eras alheias ao sufrágio universal) de salvar uma ordem idealizada como benéfica, apesar das suas anomalias evidentes, da sua irracionalidade gritante.  Seu programa informal, que incentiva ou no mínimo admite as intervenções militares "preventivas" ou punitivas  contra os governos rebeldes à hegemonia ocidental, a prisão arbitrária e a tortura dos indivíduos tidos como social ou politicamente ameaçadores pelos setores dominantes, a conversão ideológica das desigualdades historicamente construídas em elementos "naturais" intrínsecos às sociedades e o exercício da violência verbal e física contra seus contestadores, poderia ser subscrito com tranquilidade pelo falecido Duce.
          Mussolini se apoderou do governo italiano em 1922 chefiando um partido-movimento que dispunha de menos de um décimo dos integrantes do Parlamento.  Não devemos, portanto, subestimar o poder de fogo da nova direita, apesar de sua fachada indiscutivelmente ridícula.  Precisamos multiplicar os espaços de denúncia das suas falácias e mobilizar o maior número possível de pessoas contra os seus propósitos.  
           
        
*Alusão ao partido direitista francês dirigido durante muitos anos por Jean-Marie Le Pen.         
                                    



quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Vinte "novas" pérolas do velho reacionarismo





       Retomo hoje o tema de duas séries compostas em abril de 2012, contendo máximas diversificadas do pensamento reacionário, cujos links seguem logo abaixo: 

        A finalidade, mais uma vez, é deixar em evidência o que nos diferencia radicalmente "deles".  Longe de estar superada, a antítese esquerda/direita permanece tão válida quanto  há cem anos atrás, e por trás do discurso civilizatório a direção política conservadora só nos tem a oferecer opressão e alienação, sem excluir a barbárie de tipo fascista em certos momentos entendidos como de crise. 
        As citações que volto a agregar não são baboseiras propagandísticas nos moldes do forjado "Decálogo de Lenin".  Saíram de fato das bocas e das penas de homens tidos como respeitáveis representantes da ordem.  Apesar de cobrirem um intervalo temporal de quase duzentos anos, não me sinto inclinado a crer que seus herdeiros melhoraram significativamente. 
       

1-Evaristo da Veiga (1799-1837), jornalista brasileiro do Primeiro Reinado e do Período Regencial, exprime seu temor diante das reformas sociais propostas pelos "liberais exaltados":


 "Temo mais hoje os cortesãos da gentalha que aqueles que cheiram as capas ao monarca".
Citado em Emília Viotti da Costa.  Da monarquia à república: momentos decisivos.  São Paulo: UNESP, 1999, p. 147.


2-Alexis de Tocqueville (1805-1859) tenta legitimar o imperialismo e dá testemunho involuntário da incompatibilidade entre liberalismo e igualdade: 
Não há utilidade nem obrigação da nossa parte em passar para os nossos súditos muçulmanos ideias exageradas da sua própria importância, e nem persuadi-los de que nós somos obrigados a tratá-los como se fossem nossos concidadãos e nossos iguais.  Eles sabem que na África temos uma posição dominante e esperam que a conservemos.
Citado em Domenico Losurdo.  Contra-história do liberalismo.  Aparecida: Ideias e Letras, 2006, p. 253. 

   
3-Thomas Robert Bugeaud (1784-1849), marechal francês, autor de vários massacres na Argélia e feito duque d'Isly por seus serviços na África, se queixa a Adolphe Thiers, presidente do Conselho, contra a educação do povo:

"A nação só pode viver graças a um trabalho duríssimo que não deixe aos homens campos nem oficinas, e nem tempo livre ou força para o estudo".


(citado em FERRO, Marc. História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 105)
4-Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), presidente da Argentina entre 1868 e 1874, se mostra mais um adepto da tese da "multidão-criança":

"Os povos, em sua infância, são umas crianças que nada preveem, que nada conhecem e é preciso que os homens de alta previsão e de alta compreensão lhes sirvam de pai".

Citado em León Pomer (organizador).  D. F. Sarmiento: política.  São Paulo: Ática, 1983. 



5-Antônio José Fernandes, deputado ligado à lavoura do município de Valença, apresenta na Assembleia Legislativa da Província do Rio de Janeiro em 14 de setembro de 1880 sua concepção sobre o direito dos funcionários públicos à aposentadoria:

"O empregado devia exercer o seu emprego sempre que tivesse forças físicas e morais para desempenhá-lo.  Muito embora tenha 30 ou 40 anos de exercício, logo que esteja no caso de exercer as suas funções não deve ser aposentado".   






6-John Maynard Keynes (1883-1946) revela no texto Am I a Liberal? (1925) qual era a sua pátria: 
Quanto à luta de classes como tal, meu patriotismo local e pessoal, como os de qualquer um, exceto uns poucos desagradáveis entusiastas, liga-me a meu próprio ambiente.  Posso ser influenciado pelo que me parece ser a justiça e o bom senso, mas a guerra de classes vai me encontrar do lado da burguesia educada.
Citado em István Mészáros.  O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 61.



7-Charles Maurras (1868-1952), dirigente monarquista francês, registra sua versão da meritocracia :

« Ni aujourd'hui ni jamais, la richesse ne suffit à classer un homme, mais aujourd'hui plus que jamais la pauvreté le déclasse.  » 

(Nem hoje nem nunca, a riqueza é o bastante para classificar um homem, mas hoje, mais do que nunca, a pobreza o desclassifica.)
http://www.evene.fr/citations/charles-maurras


8-O filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) faz sua profissão de fé elitista:

Eu disse e continuo crendo, cada dia com mais enérgica convicção, que a sociedade humana é aristocrática sempre, queira ou não, por sua própria essência, até o ponto de que é sociedade na medida em que seja aristocrática, e deixa de sê-lo na medida em que se desaristocratize.

http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/rebeliaodasmassas.pdf (A rebelião das massas, p. 21)


9-O embaixador Oswaldo Aranha (1894-1960), em carta ao presidente Vargas datada de 1937, mistura a paranoia anticomunista ao antissemitismo:  

"Este país, Getúlio, está quase dominado por esta nova maçonaria de fundo liberal, mas, realmente, ao serviço dos ideais extremistas.  À sombra do New Deal estamos vivendo na antessala do comunismo nos Estados Unidos.  Creio que é o judaísmo que criou e mantém este ambiente, capaz de deslocar esta civilização para um abismo. [...] A filantropia americana, esta tendência para uma forma de caridade política e até internacional, se for dominada pelo espírito judaico, arrastará toda esta civilização para um novo regime, similar ao russo".  

Citado em Maria Luiza Tucci Carneiro (org.).  O anti-semitismo nas Américas: memória e história.  São Paulo: Edusp, 2008, p. 388.


10-O economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) conspira alegremente contra o sufrágio universal:

"Observe-se: pouco importa que nós, observadores, consideremos válidos estes motivos ou as normas práticas em razão das quais se excluem do direito [de voto] determinados setores da população; importa que a sociedade em questão os admita.  E não se objete que, aplicável a exclusões justificadas pela incapacidade ("a menoridade"), este critério não pode ser aplicado à exclusão em bloco por razões que não têm nenhuma relação com a capacidade de servir-se de modo inteligente do direito de voto, porque a "capacidade" é questão de opinião e de grau e, para estabelecer sua presença ou ausência, certas normas são necessárias.  Sem cair no absurdo ou na hipocrisia, pode-se dizer que a capacidade é medida pela  possibilidade de prover-se a si mesmo".
Citado em Domenico Losurdo.  Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal.  Rio de Janeiro: UFRJ; São Paulo: UNESP, 2004, P. 247.    


11-Roberto Marinho (1904-2003), presidente das Organizações Globo, reafirma seu apoio à ditadura civil-militar em pleno ano de 1984:

Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das lnstituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada. Quando a nossa redação foi invadida por tropas antirrevolucionárias, mantivemo-nos firmes em nossa posição. Prosseguimos apoiando o movimento vitorioso desde os primeiros momentos de correção de rumos até o atual processo de abertura, que se deverá consolidar com a posse do novo presidente.

http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-editorial-de-Roberto-Marinho-que-exaltou-a-Ditadura-Militar/4/27682


12-Jânio Quadros, o sr. "Forças Ocultas", vai ao delírio ao tentar aglutinar votos conservadores em torno de sua candidatura à Prefeitura de São Paulo (setembro de 1985):

“Enfrentamos uma conspiração de comunistas e comunistóides que persistem em desmoralizar militares de alta patente e civis que combatem o comunismo”.

(citado em SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 510)


13-Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995), fundador da TFP (Tradição, Família e Propriedade), alia o reacionarismo a um discurso caricato, em entrevista de 10 de abril de 1974 à Folha de São Paulo:

Mandai-nos o que quiserdes. Só não nos mandeis que cruzemos os braços diante do lobo vermelho que investe. A isto nossa consciência se opõe."

14-O embaixador Meira Penna (1917-), em passagem que definitivamente dispensa introdução ou explicação, nos mostra o espírito reacionário em estado puro numa publicação de 1988:
"Gentlemen, até certo ponto, podem ser alguns europeus, às vezes suecos ou holandeses, ou membros da aristocracia daqueles países semibárbaros do "continente" que, pelo fosso esplêndido do estreito de Calais, está isolado do arquipélago britânico. Mas, de qualquer forma, o resto do mundo é sempre de uma maneira ou outra composto de natives ou aliens.  São os elos, os missing-links entre o macaco e o homem, pessoal meio selvagem, gente inferior e vulgar que merece ser tratada humanamente mas com certa distância.  Essa concepção durou até os cataclismas políticos e bélicos do século XX, em consequência dos quais vingou a noção lamentável do homem comum, o homem das massas, o homem coletivo irresponsável".



15-O escritor cubano Carlos Alberto Montaner (1943-) escolhe o adversário ideal, na verdade praticamente um parceiro, para as direitas:

As melhores esquerdas do mundo são aquelas que deixaram de ser esquerdas, como Tony Blair, na Inglaterra. Quando alguém abandona a luta de classes e a mentalidade antimercado e se converte em um amante do estado de direito já não é mais de esquerda.

http://veja.abril.com.br/230800/entrevista.html



16-Jean-Marie Le Pen, celebrado líder xenófobo de parte da direita francesa, revisa com inesperada sinceridade a historiografia da Segunda Guerra Mundial:  

Eu sou forçado a dizer que as câmaras de gás foram um detalhe da história da guerra mundial, o que é uma evidência.
17-Thomas Sowell (1930-), economista americano, nos explica os benefícios da redução dos salários reais:

Havia um salário mínimo, mas, como o valor deste havia sido estipulado em 1938, e estávamos em 1949, seu valor já havia se tornado insignificante em decorrência da inflação.  Por causa desta ausência de um salário mínimo efetivo, o desemprego entre adolescentes negros no ano de 1949, que foi um ano de recessão, era apenas uma fração do que viria a ser até mesmo durante os anos mais prósperos desde a década de 1960 até hoje. À medida que os moralmente ungidos passaram a elevar o salário mínimo, a partir da década de 1950, o desemprego entre os adolescentes negros disparou.  Hoje, já estamos tão acostumados a taxas tragicamente altas de desemprego neste grupo, que várias pessoas não fazem a mais mínima ideia de que as coisas nem sempre foram assim — e muito menos que foram as políticas da esquerda intrometida que geraram tais consequências catastróficas.




18-Leandro Narloch e Duda Teixeira explicitam seu programa "capitulacionista" na introdução do Guia politicamente incorreto da América Latina:
"Não nos sentimos representados por guerrilheiros ou por indignados líderes andinos e suas roupas coloridas.  Não há aqui destaque para veias abertas do continente, mas para feridas devidamente tratadas com a ajuda de grandes potências.  Conhecemos bem as tragédias que nossos antepassados índios e negros sofreram, mas, honestamente, estamos cansados de falar sobre elas". 



19-James Inhofe, senador republicano pelo estado norte-americano do Oklahoma, assim contesta (em março de 2002) o direito dos palestinos aos territórios ocupados e à formação de um Estado independente:

"A Bíblia afirma que Abraão desarmou sua tenda e foi morar na planície de Mambré, que é Hebron, erigindo aí um altar em honra do Senhor.  Hebron encontra-se na Cisjordânia, e foi naquele lugar que Deus apareceu a Abraão e lhe disse: 'Eu te dou esta terra', a Cisjordânia.  Esta batalha não é de modo algum política, é uma controvérsia sobre o fato de a palavra de Deus ser verdadeira ou não.


Citado em Domenico Losurdo.  A linguagem do Império: léxico da ideologia estadunidense.  São Paulo: Boitempo, 2010, p. 55.  


20-Walter Williams (1936-), economista norte-americano, apresenta em dose dupla sua visão de "liberdade":

Primeiro, não existe igualdade racial absoluta, nem ela é desejável. Há diferenças entre negros e brancos, homens e mulheres, e isso não é um problema.
(...)

A Universidade George Manson tem dinheiro público. Portanto, não pode discriminar. Uma biblioteca pública, que recebe dinheiro dos impostos pagos pelos cidadãos, não pode discriminar. Mas o resto pode. Um clube campestre, uma escola privada, seja o que for, tem o direito de discriminar.