quarta-feira, 22 de maio de 2013

Para além da fábula da democracia racial

       

       Meu sogro Moacyr Fernandes Dias (1922-2012), natural de Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais, cursou quatro faculdades. Certo dia, para meu espanto, ele relatou que só conseguiu concluir o extinto Científico aos 22 anos, quando já morava no Rio de Janeiro e trabalhava como servente.  A explicação para o atraso não me surpreendeu tanto: os diretores dos colégios de seu município de origem davam preferência, por ocasião do período das matrículas escolares, às crianças brancas.  Depois, matriculava-se "quem fosse possível".  O sistema em vigor, evidentemente, não tinha amparo no ordenamento jurídico formal do país, mas fez com que o garoto Moacyr, na prática, estudasse ano sim, ano não, ficando exposto ao que hoje classificaríamos como uma grave defasagem idade-série. 
      Juiz de Fora, a antiga Santo Antônio do Paraibuna, estava longe de ser um grotão nos tempos do primeiro governo Vargas.  Em meados do século XIX, o progresso da cafeicultura já permitira a elevação da vila à categoria de cidade.  O quadro descrito diz respeito, portanto, a um centro urbano de proporções médias situado na segunda unidade mais populosa da federação. Talvez algum cínico alegue que me reporto a um caso particular, quem sabe uma anomalia social limitada à Zona da Mata mineira, destoando do restante do Brasil, mas infelizmente estará enganado.  Basta um pouco de determinação na prática investigativa  para descobrir outros destes episódios "anômalos".
      Álvaro Pereira do Nascimento, em artigo publicado no ano de 2007, informa que o jornal A Tarde, de Salvador, trouxe aos leitores em 7 de fevereiro de 1923 matéria originada de uma denúncia de que jovens que satisfaziam "todas as condições exigidas pelas leis" não recebiam admissão na Escola de Aprendizes Marinheiros da Bahia "pelo simples fato de serem pretos".  Emissários do periódico solicitaram esclarecimentos ao comandante da Escola, capitão de corveta Freire de Carvalho, que apontou os critérios empregados para a eliminação de candidatos, como analfabetismo e dentição precária.  Por fim, o oficial definiu a queixa como improcedente, pois havendo mais candidatos do que vagas a escolha cabia ao comando da instituição, para o qual "entre rapazes brancos e outros tantos pretos, é natural que sejam preferidos os primeiros¹". 
      Recupero hoje estas informações devido a uma casualidade.  Procurando no programa de periódicos digitalizados da Biblioteca Nacional dados para viabilizar trabalhos de estudantes que fazem estágio no Museu Nacional, encontrei uma reportagem do jornal carioca A Esquerda datada de 5 de março de 1931, que reproduzo abaixo na íntegra.   


   


         O ministro Joaquim Barbosa, mineiro nascido em 1954, terminou o segundo grau em Brasília dentro da faixa etária recomendada.  Não seria absurdo presumir, contudo, que para a maioria de seus conterrâneos negros da geração imediatamente anterior esta conquista constituiria uma proeza das maiores.
      Suponho também que o comandante Freire de Carvalho não desconhecia a existência de intelectuais negros baianos como os engenheiros Domingos Sérgio de Carvalho (1866-1924) e Antônio Joaquim de Souza Carneiro (1881-1942) e o médico Juliano Moreira (1873-1932), todos seus contemporâneos.  Entretanto, julgava que adolescentes "pretos", mesmo que comprovassem a condição de alfabetizados e tivessem todos os dentes intactos, não eram os aprendizes de marinheiro ideais. 
        A futura atriz Ruth de Souza, com dez anos em 1931, morava em Copacabana, na capital federal; por sorte não vivia do outro lado da Baía de Guanabara, mais especificamente no bairro niteroiense do Fonseca, onde sequer conseguiria cursar o primário.
        Tendo em mira estas e outras narrativas, só podemos nos indignar quando um universitário de discurso conservador cujo ingresso no ensino superior dependeu da capacidade de seus pais de pagar a alta mensalidade de um curso pré-vestibular de ponta repete a desgastada ladainha: "Os negros não entram na faculdade porque não estudam.  Ficam chorando como se ainda estivessem em 1888 ao invés de correr atrás das oportunidades". Pior é vermos certos intelectuais, enclausurados em luxuosos gabinetes e prestigiados nos circuitos editoriais, afirmando repletos de uma convicção calculada que os péssimos indicadores sociais dos negros se devem exclusivamente à má inserção de seus ancestrais na economia nacional após a Abolição e não a mecanismos racistas. 
         Quarenta ou cinquenta anos depois da Abolição, em algumas regiões possivelmente bem mais tarde, a sociedade brasileira ainda tinha como dado natural a exclusão parcial ou completa dos negros dos bancos escolares.  Nisto, eles saíam amplamente desfavorecidos em comparação com os filhos dos imigrantes europeus pobres cujo exemplo de esforço não quiseram, segundo os panfletários elitistas, copiar.  O Brasil sempre foi um país estruturalmente racista.  Precisa admiti-lo, para começar a deixar de ser.                
Referência:
1-Um reduto negro: cor e cidadania na Armada (1870-1910). In: Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil/ Organizadores: Olívia Maria Gomes da Cunha e Flávio dos Santos Gomes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 301/302         
        

10 comentários:

  1. Não duvido que esses casos que você citou tenham ocorrido, e com certeza não foram os únicos, mas hoje em dia eles só têm interesse histórico. É uma fantasia acreditar que, na época atual, episódios de discriminação análogos ainda aconteçam nas escolas públicas do país, e que constituam um fator importante para entender a diferença social entre negros e brancos no presente. No passado, a grande maioria nos negros não estudava, não por ser discriminada, mas porque viviam na roça, muito longe de qualquer escola. Diferente do que acontecia nos EUA na mesma época, onde já havia uma grande oferta de escolas públicas, mas cujo ingresso era vetado aos negros.

    Devemos copiar o remédio norte-americano - as ações afirmativas - se o nosso caso não é igual ao deles? Aqui não há multidões de negros perfeitamente aptos a cursar nível superior, como nos EUA dos anos 60. A grande maioria dos negros brasileiros não está apta a entrar para uma universidade, e se você conhece a escola pública brasileira, com certeza sabe o motivo.

    Passando ao largo das discussões acerca da justiça e da necessidade de compensações pelos erros do passado, chamo a atenção para o fato de que o atual critério da meritocracia não é um critério subjetivo, neutro ou aleatório, mas sim um critério cartesiano, ligado a uma cadeia de causas e conseqüências, que persegue um propósito declarado - a excelência do ensino. Todos sabemos muito bem que um aluno despreparado cursar com aproveitamento um curso superior é uma impossibilidade cabal. Como também sabemos que um aluno bem preparado, uma vez formado, terá maior probabilidade de se tornar um bom profissional do que um aluno mal preparado.

    Podemos ir contra um critério cartesiano? Claro que podemos, aliás, não só podemos como já o temos feito. Mas há uma diferença. Ir contra um critério subjetivo resulta em, no máximo, ter a oposição daqueles que criaram tal critério. Ir contra um critério cartesiano resulta em bater de cara contra aquilo que os filósofos chamam a estrutura da realidade. Podemos, por exemplo, declarar que não reconhecemos as leis da termodinâmica, e que vamos subir o morro pisando com toda a força, mas sabemos que o resultado inevitável vai ser o motor ferver. No caso das cotas, sabemos que o resultado inevitável será que, em alguma medida, o nível dos profissionais formados vai cair.

    Não é uma medida aconselhável nesse mundo em que já está mais que provado que o único meio viável que os países ditos emergentes têm de alcançar os mais ricos é pelo incremento, e não decremento da qualidade do ensino. Mas a meu ver, o ensino brasileiro já é tão fraco, mesmo sem cotas, e a quantidade de negros aptos a disputar uma vaga nas universidades é tão pequena, mesmo com cotas, que acredito que no fim das contas o nível acadêmico dos estudantes cotistas não será muito diferente dos estudantes não-cotistas, e talvez nem mesmo o nível social seja muito diferente. Se é isso o que vai acontecer, as cotas podem prestar-se a seu papel de peça de propaganda sem riscos exagerados - vão fazer apenas o ensino brasileiro afundar um pouco mais. Disto não passa.

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  2. Permita-me dizer, Pedro Mundim, que o comentário é muito pouco cartesiano e deriva sobretudo das suas escolhas ideológicas e daquilo em que quer acreditar. Note que não me refiro às ordenações que discriminavam os pardos, mouriscos e cristãos-novos no século XVIII e sim a processos corriqueiros no século XX, dos quais ainda há muitas testemunhas vivas.
    Não faz sentido, portanto, alegar que o assunto está morto e sepultado, exceto como curiosidade histórica, quando milhões de pessoas da nossa faixa etária são filhas dos que ficaram sem escola nas décadas de 30 e 40. Nem o mais otimista dos arautos do individualismo se atreveria a negar que o analfabetismo e a consequente pobreza dos pais empurraram para baixo o seu nível de oportunidades e expectativas.
    O quadro descrito também desqualifica o que você chamou de critério meritocrático. Para haver meritocracia no acesso ao ensino superior, seria necessário que toda a população dispusesse, só para começar, de escolas próximas do ideal nos ensinos fundamental e médio, o que por enquanto não passa de utopia. O que vemos, ao contrário, é uma corrida em que a maioria parte do marco zero, outros da metade da pista e uma pequena maioria só precisa correr os últimos cem metros.

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  3. Ressalto mais algumas distorções e erros factuais, que atribuo a uma certa ansiedade na busca por argumentos. É falsa a ideia de que os negros norte-americanos não tinham acesso à escola na primeira metade do século XX. O que ocorria era a segregação, a existência de escolas para brancos e escolas para negros. Não tenho no momento dados sobre o assunto, mas não ficaria nada surpreso se constatasse que os negros americanos da época da Segunda Guerra possuíam um nível de instrução superior ao dos brasileiros em geral. A título de "interesse histórico", vale registrar que muitos escravos deixaram, nos Estados Unidos, memórias de seu cativeiro, fato raro ou inexistente no Brasil, onde somente 1% da escravatura, aproximadamente, era capaz de ler e escrever.
    A alegação de que a maioria dos negros brasileiros vivia no meio rural não dá resposta ao que discutimos. Perceba que dois dos três "casos" mencionados dizem respeito ao Rio e Salvador, duas metrópoles habitadas por imensos contingentes negros.
    Não procede, igualmente, a afirmativa de que há poucos negros aptos a ingressar no ensino superior. A mera observação das estatísticas dos últimos anos, que mostram o crescimento de sua presença nos bancos universitários,basta para comprová-lo. Abundam os estudos a respeito do desempenho superior ou inferior dos que são cotistas, mas o fato é que não temos nenhuma calamidade em curso. O ensino superior do Brasil continua, a grosso modo, com as deficiências que já conhecíamos.

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  4. Para concluir uma sessão que já se tornou longa em excesso, preciso destacar que não propus no texto a "cópia" da ação afirmativa como se estabeleceu nos Estados Unidos. Quem desejar saber o que penso sobre cotas pode ler a postagem de 2 de abril de 2012, neste link:

    http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/04/algumas-consideracoes-sobre-cotas.html

    Mas repito que a superação do racismo não passa por sua negação ou pela minimização de seus efeitos, o que parece ser a posição de Pedro Mundim.




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  5. Este igualitarismo sistemático imposto pelo estado tenta forçar uma igualdade que nunca existirá, pelo menos nessa trivial dimensão. Meu caro! Eu não sou racista, fui criado num bairro pobre e a maioria de meus amigos me chamava de branquelo (até hoje). Mas, sobre a tal cota, não vejo futuro em nenhum tipo de socialismo ou programa deste tipo. Quando a escravidão acabou, nem meus avós eram nascidos, portanto, logicamente, não concordo com este tipo de coitadismo histórico, e nem com qualquer tipo de política abrangente querendo por a mão nos meus bolsos como se eu fosse culpado por tudo de ruim que existe felizmente neste áspero universo.

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    1. Permita-me fazer uso de uma franqueza semelhante à sua. Em primeiro lugar, revela má leitura, visto que o texto não é sobre escravidão e muito menos sobre cobrança de passivos do cativeiro. Em segundo, você se apresenta como mais um adepto do conservadorismo por inércia: admite que há processos discriminatórios, mas como também sabe que o combate a eles produzirá resistência, deseja que nada seja feito, possivelmente para que ninguém perturbe sua leitura da Veja e/ou o Domingão do Faustão com batatas chips. Cada um com suas inclinações, mas eu prefiro investir na igualdade possível, visto que as relações sociais nada têm de estáticas. Em terceiro, já vi muitos argumentos apelativos, mas a sua fala "eu também sou chamado de branquelo" foi dose!

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  6. (Branquelo do Faustão)

    Suas análises historicistas a meu respeito estão tão, elmachipsiosamete, com todo glutamato monossódico que se tem direito, distantes quanto àquelas que se encontram singularmente em suas postagens. Conservadorismo? Eu? Isso é coisa de Lordes Britânicos ou de Capitalistas Americanos! A Única coisa que tento conservar é o pouco de dignidade e, também, um pouco daquilo que ganho com o meu esforço próprio, afinal de contas, não sou funcionário público.

    Agora, “Toda igualdade possível”, meu caro, tem seu preço! A conta deveria ir inexoravelmente para os voluntários ou para aqueles assistencialistas de carteirinha. Isto também serve para as relações sociais, diz respeito à coerção e à liberdade. Extorquir de terceiros em nome do social é uma forma de escravidão tão lastimável quanto outra qualquer. Principalmente, tendo o Estado como mediador. Meu caro, acredito em suas boas intenções, mas a realidade não é virtual e as utopias deveriam permanecer somente nas mentes dos Morus (loucos).

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    1. Não foi uma análise historicista, mas somente uma especulação, talvez realmente ruim. Você pode alegar com acerto que eu seria um mau novelista, mas por outro lado está se levando a sério em excesso. Insinuar que só existe conservadorismo entre anglo-saxões é uma tremenda bobagem. Apelar para o jurássico clichê de que funcionários públicos ganham bem sem trabalhar enquanto os demais se matam para receber ninharias, pior ainda. Para fechar o pacote, faz um uso sem nexo da categoria "escravidão".
      Quanto a medidas que "têm seu preço", posso em tese estender seu raciocínio a praticamente tudo. Afinal, é impossível que qualquer política pública deixe de prejudicar determinados segmentos dos governados.
      Enfim, registro que a sua intervenção já beira a mais pura trollagem. O texto "comentado" descreve situações de racismo cujos efeitos se perpetuam e aponta para a necessidade de combater o problema de frente. Em nenhum parágrafo proponho soluções assistencialistas ou utópicas, salvo imensa distorção interpretativa.
      Mas já que entramos no terreno das interpretações, não deixa de ser estranho que ao ouvir falar em enfrentamento do racismo você pense de imediato em coerção estatal e restrições à liberdade. Um leitor mais passional eventualmente chegará a conclusões do tipo "Levi considera que barrar alguém no sistema de ensino ou no mercado de trabalho em decorrência de cor/raça/etnia pode ser um exercício legítimo do livre arbítrio". Felizmente, eu prefiro colher mais informações antes de formular sentenças tão repugnantes, e sobretudo diante de um fake de título tão imponente.

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  7. Gustavo, o seu site é demais. É disparado o mais lucido e sóbrio site progressista da internet. Continue assim Brother.

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