sábado, 31 de agosto de 2013

Médicos cubanos: por que, de fato, eles incomodam a direita

     

        A rejeição à presença dos médicos cubanos que estão ingressando no Brasil através do programa Mais Médicos, do governo federal, uniu nas últimas semanas parlamentares de partidos conservadores e diversas entidades de classe, cujas declarações e manifestos desfrutaram de boa repercussão na mídia.  As vulgarizações livres do tema difundidas na Internet, entretanto, alcançam um volume muito maior.  A cada minuto, notícias das mais estapafúrdias são criadas ou distorcidas no sentido de predispor os potenciais usuários e o público em geral contra os cubanos.  Os participantes da campanha, em certos casos, não ocultam sua intenção de criar uma atmosfera de intimidação contra aqueles profissionais. 
         Uma viagem completa por esta gigantesca fábrica de boatos consumiria meses.  Seleciono, então, exemplos das "teses" mais recorrentes, o suficiente para caracterizar a má fé e a irracionalidade de uma direita virtual em grande parte formada por verdadeiros papagaios de pirata do tipo mais ignorante. 
              
1-Os médicos vão receber uma ínfima parcela das verbas pagas pelo governo.

A “importação” dos médicos cubanos é o único caso em que a remuneração de R$ 10 mil não será paga diretamente ao profissional, mas à ditadura, com a intermediação da Organização Panamericana de Saúde. O médico cubano só receberá uma pequena parcela do salário, cerca de 7%.

A simples menção aos locais em que os médicos trabalharão já é suficiente para desqualificar tamanha insanidade.  A suposta remuneração de 7% corresponde, a grosso modo, ao salário mínimo vigente.  Mesmo contando com a moradia gratuita fornecida pelas prefeituras, os cubanos simplesmente não teriam, em povoações onde praticamente tudo é mais caro, como suprir necessidades mínimas de alimentação, vestuário e higiene.




2-Os cubanos não entenderão seus pacientes pelo desconhecimento do português. 
Como será a comunicação entre os médicos cubanos, que não falam Português, com seus pacientes, que em sua imensa maioria não entendem Espanhol?

A apresentação do programa deixa claro que todos os estrangeiros terão aulas da língua nacional.  Certamente, algumas dezenas de horas de estudo não transformarão nenhum deles em candidato à Academia Brasileira de Letras, mas ninguém diria que há barreiras linguísticas intransponíveis entre falantes de português e de espanhol.  É difícil imaginar que diante da instrução de "poner gotas en la nariz" os pacientes pensem que chegou o momento do supositório.  Além disto, os demais profissionais existentes nos hospitais e postos de saúde são brasileiros e poderão facilmente esclarecer os termos mal compreendidos por ambas as partes.

  
3-Os cubanos serão submetidos a trabalho escravo.

A vaia na verdade foi para aquelas pessoas que tiveram a ideia absurda de trazer esses médicos para cá, inclusive com trabalho escravo sem nenhum compromisso a não ser com o compromisso ideológico do partido dos trabalhadores.

Estamos diante de uma baboseira panfletária, contra a qual basta atentar para uma definição básica de trabalho escravo. 

O conceito de trabalho escravo utilizado pela OIT é o seguinte : toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, falamos de um crime que cerceia a liberdade dos trabalhadores. Essa falta de liberdade se dá por meio de quatro fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e “gatos” de comportamento ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga. 


Todo malabarismo retórico do mundo é insuficiente para caracterizar como escravagista um programa cujas regras de adesão e desligamento são formais e estão expostas à população na Internet. 




4-O dinheiro do programa servirá para sustentar o governo cubano, aliado do PT.

Os cálculos mais extremistas já calculam que esses 6 mil médicos custarão 1,84 bilhão de reais ano para o povo brasileiro. Claramente, a maior parte desse dinheiro não seria dada aos médicos, mas destinada para sustentar o governo cubano.

Segundo as estatísticas disponíveis, Cuba tem pouco mais de 11 milhões de habitantes e um PIB em torno de 60 bilhões de dólares.  Mesmo que os 40 milhões de reais mensais destinados aos 4 mil médicos entrassem diretamente nos cofres do governo da ilha, nem de longe bastariam para salvar um regime que, segundo as versões de tipo macarthista, está moribundo há vinte anos.  Contudo, "articulistas" para os quais "os cálculos calculam" oferecem tais surpresas!     

5-Os médicos não terão o direito de se sindicalizar. 
Os cubanos não têm diploma brasileiro, são pagos pelo governo cubano e virarão uma categoria à parte. Terão direito a se sindicalizar?


Embora a proposição não seja tecnicamente mentirosa, é cretina na melhor das hipóteses, e desonesta na pior.  Não haverá sindicalização porque o programa não gera vínculo empregatício.  Um sindicato de médicos estrangeiros bolsistas faz tanto sentido quanto um sindicato de alunos graduandos de História estagiários em colégios de aplicação das universidades federais.


6-Os cubanos são na verdade espiões a serviço do movimento comunista internacional.

Antes de tudo, os médicos cubanos são agentes de Fidel Castro, espiões a serviço do PT, para implantação do socialismo no Brasil, que é o objetivo final do Foro de São Paulo, criado por Lula e Fidel em 1990.

Os editais do governo, evidentemente, nada dizem sobre a proibição do alistamento de agentes secretos.  Mas só a mente de um escritor de Mídia sem Máscara, como Felix Maier, o autor da pérola, é capaz de conceber que milhares de espiões entrarão no país com seus nomes verdadeiros, tendo paradeiros conhecidos e cumprindo cargas horárias fixas em locais onde todos poderão vê-los e monitorar seus passos, com o agravante de serem estrangeiros, fato que tende a despertar ainda mais a curiosidade de moradores de cidades pequenas.    

           É desnecessário apontar as motivações para a histeria provocada pela chegada de milhares de cubanos ao Brasil entre as numerosas seitas neoconservadoras ou fascistófilas que se multiplicam na Internet. Entretanto, vemos o mesmo estado de espírito se apossar de organizações e indivíduos capazes de cálculo político bem mais fundado na realidade.  
          Possivelmente, algumas pessoas de mentalidade elitista já pensaram mais ou menos nestes termos: "Os cubanos, familiarizados com uma Medicina de caráter preventivo, vão condicionar pobres a sempre lavarem as mãos antes de comer, a não construir poços ao lado de fossas e a tomar outras providências que reduzirão a mortalidade infantil.  Com isto, além de contribuir para a reeleição de Dilma, farão com que um contingente extra de nortistas, nordestinos e sertanejos alcance a idade adulta, aumentando a pressão demográfica sobre a classe média e os ricos dos grandes centros".  
       Não menosprezo o impacto psicológico de ponderações deste gênero, mas julgo que, em particular no caso das entidades médicas que se insurgem, os temores vão muito além.  O sucesso, ainda que localizado, de um programa como o Mais Médicos, pode levantar sérios questionamentos sobre a função da Medicina na sociedade brasileira. Embora, diante dos inúmeros exemplos de compromisso verdadeiro com a saúde pública que encontramos entre os médicos do país, não possamos generalizar, é igualmente certo que muitos jovens ingressam na profissão tendo em vista o enriquecimento rápido, seja pelo atendimento exclusivo a uma clientela de alto poder aquisitivo, seja pelo acesso à propriedade de clínicas e hospitais onde pagarão o mínimo possível aos "colegas" e cobrarão o máximo possível aos planos de saúde, que por sua vez repassarão a conta para os usuários. O estabelecimento de relações não capitalistas no setor, mesmo que limitadas a regiões pobres e pouco povoadas do território, em nada interessa a estes segmentos.  Tudo o que eles não desejam é uma Medicina que, sem fins lucrativos, diminua em grande proporção o número das mortes ditas evitáveis e prolongue a expectativa de vida dos que definitivamente não têm dinheiro para pagar.                            
     




quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O mito isabelino: um breve comentário com interferência acidental de médicos cubanos



           A recente vinda de médicos cubanos para o Brasil enfureceu grande parte dos articulistas conservadores do país, bem como as entidades supostamente representativas da categoria, em regra também conservadoras e burguesas à décima potência.  Além dos textos de tipo convencional, a direita militante vem produzindo numerosas peças de propaganda no sentido de mobilizar a opinião pública contra a medida adotada pelo governo federal.  Tratarei diretamente do assunto em outra postagem.  Por ora, volto meu foco para uma montagem que tem circulado pelas redes sociais, tosca sob o ponto de vista intelectual, mas bastante esclarecedora a respeito do perfil de certa juventude dita politicamente incorreta.  



           Não discutirei por enquanto as premissas imbecis de que os recém-chegados são  instrutores de guerrilha e que sobreviverão em regiões de difícil acesso com uma mesada inferior ao salário mínimo.  O que me desperta a atenção no quadro é o reforço de um velho mito que ultrapassa em muito as fronteiras dos círculos monarquistas: a imagem da princesa bondosa que, afrontando senhores intransigentes e perversos, redime o povo negro do Brasil.  
             Afirmar que "a princesa Isabel aboliu a escravidão" não passa de uma distorção grosseira, ainda que difundida por toda parte.  Como regente do Império, ela sancionou uma lei aprovada no Parlamento com cerca de 90% de votos favoráveis.  Seria espantoso, ao contrário,  que Isabel de Bragança aplicasse um veto que afrontaria a maioria esmagadora das forças políticas do país.  Os perpetuadores do mito, com malícia, passam igualmente ao largo de duas outras informações das mais básicas: 

.A escravidão, desde a Lei do Ventre Livre, de 1871, estava condenada à morte por inanição, mesmo que alguns escravocratas sonhassem com o adiamento das últimas alforrias para a terceira década do século XX.
.Em decorrência das leis anteriores, das libertações espontâneas ou negociadas e da alta mortalidade dos cativos das fazendas, a Lei Áurea emancipou um contingente de escravos que não ultrapassava 5% do total da população brasileira.

            Os apologistas "modernos" da princesa Isabel, tal como seus antecessores de cem anos atrás, ou mais, apelam, na tentativa de sustentar seu ícone, para duas figuras que representaram no cenário pré-Abolição extremos inconciliáveis: o barão de Cotegipe e José do Patrocínio.  Do primeiro, resgatam a frase de efeito "Vossa Alteza redimiu uma raça, mas perdeu o seu trono"; do segundo, relembram a atitude de se prostrar diante da herdeira de Pedro II e lhe dar o título de Redentora.  Oportunamente, se esquecem de que a fala de Cotegipe estava carregada do rancor de um escravocrata decrépito que de certa forma acabava de perder a batalha mais importante de sua trajetória política, e de que Patrocínio, após o delírio de uma curta febre monarquista, participou de forma ativa da instalação do regime republicano. 
           O mito isabelino não se mantém apenas pelo proveito que dele ainda pode ser extraído pelos fãs do velho Império caído de podre.  Ele serve, em proporção muito maior, aos conservadores de todas as linhagens, inclusive os mais ferrenhamente republicanos, interessados em fazer valer a noção de que as conquistas sociais derivam, ou devem derivar, da generosidade de indivíduos instalados no topo de uma elite.  Como sempre, mentem ou se enganam.  Sem as fugas coletivas dos escravos e a atuação dos militantes abolicionistas dispostos em certos casos a arriscar suas próprias vidas, a vergonha da escravidão teria se estendido por mais tempo, talvez até ultrapassando o marco da mudança do regime. Da mesma forma, só a sintonia com os partidos de esquerda e demais organizações populares, não obstante suas insuficiências e contradições, possibilitará aos trabalhadores impor ao Estado a direção que lhes convém.  Votando nos DEMs, PSDBs e "partidos novos" será impossível.           
                            
                 

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Parem o moinho, prendam os moleiros

          
          Darcy Ribeiro (1922-1997), no livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), incluiu um capítulo denominado Moinhos de gastar gente.  Nele, o antropólogo e político mineiro  pôs em destaque o elevado custo humano da colonização do país, marcada inicialmente pelo apresamento e escravização dos índios e logo em seguida pelo cativeiro dos africanos e de seus descendentes. Darcy descreveu em dezenas de páginas não apenas a brutalidade do enquadramento de milhares de pessoas em sistemas de trabalhos forçados, como também a destruição de seus corpos, submetidos às jornadas exaustivas, aos castigos físicos, à falta de alimentação adequada, ao confinamento em ambientes imundos.             
           Há poucos dias, enquanto percorria o site oficial do Ministério do Trabalho e Emprego, me deparei com informações que produziram uma imediata recordação daquela obra clássica.  Entre os links publicados de fevereiro a agosto de 2013 encontrei dez notícias sobre providências tomadas pelos funcionários do ministério, ou autoridades estaduais, contra empresas flagradas na prática do "regime de trabalho análogo à escravidão".  Apresento abaixo os respectivos print-screens:    












         O inventário destas aberrações resulta na descoberta de 214 pessoas diretamente resgatadas do cativeiro em escassos seis meses.  Conhecendo a deficiência de meios e de pessoal que caracteriza todos os esquemas de fiscalização do Brasil, não é difícil supor que este número representa uma minúscula ponta de iceberg.  Teremos, sem dúvida, um contingente nada desprezível de homens e mulheres escravizados em pleno ano de 2013.  A imagem estereotipada do grileiro semianalfabeto, antigo jagunço, mantendo trabalhadores presos em terras amazônicas cercadas à bala com a conivência do prefeito sócio e em alguns casos primo provavelmente é real, mas notemos que é apenas uma entre múltiplas possibilidades.  Existe escravidão nas proximidades das metrópoles regionais e nacionais, inclusive em firmas de grande porte cuja produção se destina ao mercado externo. 
          Agregando a este universo as milhares de empresas que, sem incorrer em ousadias escravocratas tão escandalosas quanto a falta de bebedouros e privadas em suas dependências, deixam de cumprir itens elementares da legislação trabalhista e fiscal, visualizamos de maneira nítida o tenebroso quadro das relações de trabalho no país.  Relações que se tornam ainda mais inaceitáveis caso se leve em consideração o grau de industrialização e de desenvolvimento da comunicação de massa com o qual paradoxalmente convivemos.   Permanece, no longo prazo, uma mentalidade segundo a qual a força de trabalho é composta por peças descartáveis conforme as conveniências imediatas dos empregadores. 
          Somente isto já seria suficiente para justificar, entre nós, a necessidade de uma esquerda combativa e incansável, bem como para despertar repulsa contra todo e qualquer conservadorismo político.  Paremos, com nossos votos, com nossos protestos, com nossas denúncias, com nossos atos diários de resistência contra os variados tipos de abuso de autoridade, os moinhos de gastar gente.  Prendamos, sem complacência, todos os moleiros que insistem em manter presente o século XVI.           
              
                  

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A direita caricata em mais cinco tiras

          Vimos surgir, pelo menos desde a eleição de Fernando Collor em 1989, mas de forma mais ostensiva nos últimos anos, uma leva de pseudointelectuais e profissionais do entretenimento dispostos a defender abertamente, ou quase, as hierarquias sociais tradicionais, enquanto fazem alarde de uma suposta vocação para a tirania das forças contestatórias.  Salvo raríssima exceção, seus discursos são marcados pela pobreza argumentativa, pela superficialidade, por apelos emocionais baseados no senso comum.  Todavia, eles recebem da mídia um tratamento principesco: qualquer arrazoado de cem páginas composto às pressas para denegrir sindicalistas, acadêmicos de esquerda, guerrilheiros, líderes populares e artistas alternativos, enaltecendo em contrapartida seus respectivos carrascos, é promovido a clássico nos "cadernos de cultura" destinados à classe média. 
           Retomando a linha adotada na postagem de 1º de agosto, capturei na Internet outro conjunto de cinco falas de nossos incompreendidos anti-heróis, reproduzidas com a maior fidelidade possível, confrontando-as com respostas fictícias que certamente detestariam ouvir.  Divirtam-se e compartilhem.      
                                             

1-O ator Carlos Vereza, um dos mais notórios integrantes da tribo dos ex-esquerdistas arrependidos, demonstra certa dificuldade em reconstruir sua própria trajetória. 



2-Cenas que gostaríamos de ver: Leandro Narloch, cujas pérolas poderiam abastecer várias sessões deste gênero sem o recurso a outros "colaboradores", vê suas fábulas naufragarem diante de uma historiografia básica.


 
 
         3-Pena que Ali Kamel só possa interagir com seu ídolo no mundo virtual.
 


       
  4-Concedo uma segunda tira também a Lobão.  Afinal, deve ser dificílimo conviver com paranoias herdadas. 


 
           
              5-Reinaldo Azevedo é convidado por personagens ilustres a refazer sua linha do tempo.







quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Algumas coisas que todo negro brasileiro deveria e pode saber sobre a monarquia



           
         
         Há muito acredito que caberá aos negros, majoritários entre os trabalhadores, entre as variadas categorias de oprimidos e no conjunto da população brasileira, a tarefa de desferir os golpes fatais na ordem oligárquica e no próprio capitalismo.  Solidário a este projeto, trago aos leitores mais uma série de informações que, conforme penso, são bastante instrutivas a respeito do que os negros sempre puderam esperar do status quo: subalternidade compulsória e extermínio, com a ascensão consentida de alguns indivíduos a cada geração funcionando como sistema de refrigeração das tensões sociais.    
          Depositários das hierarquias étnicas que marcaram suas histórias coloniais, os Estados que se formaram na América Latina do século XIX marginalizaram em graus variados suas populações negras e indígenas, bem como os mestiços inassimiláveis ou mal assimilados pelas comunidades brancas.  Esta premissa é especialmente verdadeira no que diz respeito ao Brasil, cuja experiência de escravidão foi tão racializada que em alguns casos os alunos do Ensino Fundamental recebem como ideia exótica a noção de que existiram escravos brancos e índios.   Embora o caráter discriminatório da sociedade imperial seja bastante evidente para os historiadores que se dedicam ao tema, nisto incluídos os que adotam perspectivas teórico-metodológicas de matriz liberal, a questão ainda constitui um tabu para muitas pessoas cuja opinião acompanha, no essencial, o senso comum. 
       Para o conservador "médio", pouco ou nada afeito à cultura acadêmica, a negação automática da herança racista atende a duas conveniências, que já abordei em diversos textos: a manutenção da imagem virtuosa da monarquia extinta e a reafirmação da sociedade brasileira contemporânea como uma democracia racial.  A desconstrução destes mitos pode ser trabalhosa, mas também é instigante, tal a quantidade de exemplos à nossa disposição para demonstrar que o Império, como idealização do reino da ética, vale tanto quanto os governos de Silvio Berlusconi em Roma, e que a igualdade racial, na vida cotidiana, é tão consistente  quanto as proclamadas vitórias de Saddam Hussein  na Primeira Guerra do Golfo.
      Esta matéria, que em boa parte dá continuidade à do último dia 3 de julho,  poderia ter recebido o título de "Mais algumas coisas que todo brasileiro deveria saber sobre a monarquia".  Entretanto, a totalidade das mazelas e barbaridades que localizei em mais uma excursão pelos documentos digitalizados do século XIX, produzidos sem exceção por órgãos do governo central, aponta para uma mesma direção: a desumanização do negro, visto na sociedade monárquica, fosse escravo, liberto ou livre, como  uma força de trabalho barata e descartável cuja existência biológica valia pouco e as perspectivas de cidadania menos ainda.
                                   

A Constituição de 1824 negou explicitamente aos ex-escravos a condição de eleitores "de segundo grau". Desta forma, salvo nas ocasiões em que foram envolvidos nas fraudes típicas do período, eles jamais puderam votar para deputado provincial, deputado geral ou senador.  

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm

Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se

        I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.
        II. Os Libertos.
        III. Os criminosos pronunciados em queréla, ou devassa.
 

Vemos no relatório do Ministério da Justiça publicado em maio de 1835 que o governo pretendia acelerar os procedimentos legais para a execução dos africanos que haviam participado da recente Revolta dos Malês em Salvador.  Cinicamente, o ministro Manoel Alves Branco admitia que, por seu caráter violento, a escravidão precisava de "medidas fortes" para se legitimar.
No relatório de 1837, o ministro da Justiça Bernardo Pereira de Vasconcellos, ele mesmo um convicto defensor da escravidão e do tráfico negreiro, dá testemunho da ineficácia da lei de 1831 que proibia esta atividade, visto serem as autoridades judiciárias parte interessada no comércio de escravos. 
Pelo relatório do Ministério da Justiça de 1845, notamos que pelas leis brasileiras os africanos escravizados irregularmente que chegavam ao país eram obrigados a prestar serviços (leia-se trabalho braçal em condições análogas à escravidão) ao Estado ou a particulares.
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1837/000035.html



No mesmo documento, o ministro José Joaquim Fernandes Torres, escrevendo em nome do governo central (!), podia fazer coro ao discurso de um presidente de província segundo o qual crimes violentos eram coisa de escravos africanos e índios.

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1837/000020.html



Ainda consultando o Ministério da Justiça, no relatório de 1836, verificamos numa mesma página que os prisioneiros escravos do Rio de Janeiro eram confinados em um dos lugares mais insalubres da cidade, o Calabouço do Castelo, e que numerosos africanos livres, a princípio isentos de qualquer acusação, se viam forçados a trabalhar ao lado de criminosos comuns.

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1827/000021.html



Pelo relatório de 1864 da Repartição dos Negócios Exteriores constatamos que o Império, comprometido com o escravismo, reconhecia os estados confederados do Sul dos Estados Unidos como potência beligerante.   

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1501/000044.html



Conforme o documento correspondente do ano anterior, a neutralidade do Império possibilitava que vasos de guerra da Confederação escravista se abastecessem em território brasileiro.

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1499/000013.html




No relatório do Ministério da Justiça referente ao biênio 1880-81 o titular Manoel Pinto de Souza Dantas lamentava que os capoeiras, tidos como uma herança indesejável do período colonial, não pudessem ser engajados contra a vontade nas Forças Armadas.     

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1874/000157.html







segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Flagrantes oligárquicos

        

        Um traço comum a todos os conservadores, e sobretudo aos mais empenhados em defender seus princípios do que em ganhar eleições, é a crença na necessidade de aristocracia.  Segundo eles, os indivíduos das classes mais altas não apenas são dotados de mais iniciativa, em comparação com o homem médio, como também de uma moralidade avantajada.  Desta maneira, toda rebelião contra a autoridade, seja patronal, seja do Estado oligárquico, torna-se condenável, exceto nos casos em que a corrupção e os abusos de poder atingem níveis intoleráveis para as próprias elites.  Nesta perspectiva, as classes populares, tidas como desregradas e voltadas para o ócio, estão condenadas à miséria e à anarquia se privadas de uma "direção superior".
        Embora bastante difundidas em todas as classes, estas ideias são evidentemente fantasiosas e não resistem ao simples exame dos jornais.  "Nossos" políticos, em sua maioria, procedem dos segmentos mais endinheirados da sociedade, e diversas estatísticas já comprovaram que o índice de transgressões ao Código Penal verificado entre eles é bem mais elevado do que o encontrado no conjunto da população.  Diariamente podemos constatar que as autoproclamadas elites, quando ameaçadas em suas posições políticas ou em seus interesses econômicos e/ou pessoais, são capazes das mesmas atrocidades atribuídas aos gerentes das bocas de fumo.  
         O Brasil se transformou em um país com economia de dimensões consideráveis  e nível mediano (ou medíocre, se formos um pouco rigorosos) de qualidade de vida apesar de sua aristocracia, urbana ou rural, sofisticada ou grileira, muito mais do que graças a ela.  Selecionei e adaptei para os leitores quatro episódios, entre um leque infinito de opções, que bem resumem a natureza dos nossos "condutores", pouco mudada ao longo dos séculos.  Contive o impulso de incluir dezenas de outros pela necessidade de não exceder os limites espaciais adequados para um texto de blog.       
     
   
            
                                                              (...)

      Antes do final do século XVII, Garcia Rodrigues Paes foi encarregado da abertura do Caminho Novo, viabilizando as comunicações e o comércio entre o Rio de Janeiro e as Minas Gerais que se integravam à América Portuguesa.  Ele seria premiado pela Coroa, em 1711, com sesmarias equivalentes, em termos de superfície, ao quádruplo da média do que recebiam os beneficiários deste tipo de concessão.  Rodrigues Paes construiu uma venda, ranchos para os viajantes e cultivou parte das terras.  Entretanto, nem ele nem seus descendentes teriam recursos para ocupar todas aquelas áreas.  Outros homens chegaram à região e montaram suas fazendas no território que hoje corresponde ao município fluminense de Paraíba do Sul, sendo entretanto obrigados a pagar foros aos sucessores do desbravador.
       A partir da terceira década do século XIX, fazendeiros como Antônio Barroso Pereira passaram a pleitear a caducidade das sesmarias, tentando escapar da condição de foreiros.  Eles enfrentavam o marquês de São João Marcos, o mais poderoso dos herdeiros de Garcia Rodrigues Paes.  O marquês não residia na área conflagrada, mas se fazia representar por um parente e procurador, Joaquim José dos Santos Silva, vereador da vila de Paraíba do Sul.  Santos Silva, acumulando vitórias e derrotas, lutou contra vários cafeicultores na Justiça, chegou a ser afastado da vereança por responder a processos criminais, mas conseguiu ascender à presidência da Câmara Municipal em 1839, valendo-se de uma licença de Antônio Barroso Pereira, seu grande inimigo.
          Todavia, não saboreou este sucesso por muito tempo.  Quando vinha da fazenda em que morava para mais uma sessão da Câmara, em 29 de julho de 1839, Joaquim José dos Santos Silva sofreu uma emboscada e morreu a tiros.  Os demais vereadores, adversários de seus interesses, sequer lhe prestaram uma homenagem póstuma.  O principal suspeito de ser o mandante do crime era outro vereador, José Agostinho de Abreu Castelo Branco, que acabou sem tempo para se defender.  Em 28 de setembro do mesmo ano, quando se dirigia às suas terras, Castelo Branco foi morto por um capanga que cortou uma orelha do cadáver.  Somente em 1841 o marquês de São João Marcos e seus irmãos doaram o terreno onde se instalara a vila de Paraíba do Sul à respectiva Câmara, livrando seus habitantes dos foros.
(Adaptado de Márcia Maria Menendes Motta.  Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX.  Rio de Janeiro: Vício de Leitura; Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998)    

                                                                         (...)

         Antônio Manuel de Freitas nasceu em Cunha, no Vale do Paraíba paulista, em 1778.  Por volta de 1815, mudou-se para São João Marcos, na província do Rio de Janeiro, onde prosperou como cafeicultor.  Adquiriu novas terras na região que depois constituiria o município de Rio Claro, integrou as Milícias locais e se lançou à política, o que lhe rendeu, em 1829, o cargo de capitão-mor da vila de São João Marcos.
           Pai de onze filhos, Freitas criou um esquema original para ampliar sua riqueza.  Ele fazia batizar as crianças não com o próprio sobrenome, mas com nomes idênticos aos de parentes e estranhos sem herdeiros, apoderando-se de seu patrimônio quando faleciam.  Uma das "vítimas" foi o cunhado José Luís de Andrade, seu companheiro na migração para as terras fluminenses.
             Isto não impediu que Antônio Manuel de Freitas continuasse a receber distinções.  Em 1849, comissionado pela Câmara do município de São João do Príncipe, organizou a construção das primeiras ruas, praças e prédios públicos que formariam o núcleo inicial da vila de Rio Claro.  Logo depois, D. Pedro II concedeu-lhe o título de barão de Rio Claro.
(Adaptado de Dilma Andrade de Paula.  História de Rio Claro.  Rio Claro (RJ): Prefeitura Municipal, 2004)   

                                                                        (...)

          Raul Salles, filho de um fazendeiro do município paulista de Rio Claro¹, era também sobrinho do presidente Campos Salles.  Ele tentou seduzir, no ano de 1900, a filha de um dos colonos italianos que trabalhavam na fazenda paterna.  Prometeu, a princípio, instalar a família dela no local mais fértil da propriedade caso a moça cedesse às suas investidas.  Sendo rejeitado, planejou um rapto que também resultou em fracasso.  Tentou, em seguida, acionar a polícia local contra o irmão da vítima.  Como tudo falhava, convenceu o pai, Diogo Salles, a expulsar a família italiana de suas terras. 
              A situação era particularmente grave para os colonos, que sairiam da fazenda antes da colheita e sem garantias de poder se instalar em outra a tempo de plantar alimentos na época ideal. Além disto, seriam obrigados a pedir grandes adiantamentos a um possível novo patrão.  Uma áspera discussão entre Diogo Salles e os italianos desembocou numa agressão física do fazendeiro ao idoso chefe da família.  O irmão da moça, o mesmo que Raul Salles desejara ver preso, matou o irmão do presidente da República com um tiro, sendo obviamente processado.  
           A colônia italiana de Rio Claro mobilizou-se para pagar um bom advogado de defesa, mas isto não foi suficiente para livrar o acusado, submetido a uma dura pena ao final do julgamento. Anos depois, o Supremo Tribunal, no Rio, revogou a sentença, mas o caso já havia pesado na decisão do governo da Itália de proibir a imigração para o Brasil em 1902.
(Adaptado de Robert W. Slenes.  Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: História da vida privada no Brasil 2.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997) 


                                                                 (...)

          O estado brasileiro de Goiás, na virada do século XX, era controlado pelo senador Leopoldo Bulhões, um homem culto que já fora duas vezes ministro da Fazenda.  Bulhões dizia, ao se referir à sua terra natal, que "ali quanto pior melhor".  Para ele, Goiás deveria continuar a ser o domínio dos fazendeiros que lhe garantiam os votos necessários para permanecer indefinidamente no Senado.  Rejeitou a construção de rodovias rumo ao interior goiano por temer a vinda de "aventureiros" que poderiam causar danos à sua máquina eleitoral.
         Todavia, a oposição a Leopoldo Bulhões conseguiu se fortalecer e estabeleceu, por volta de 1912, Antônio Ramos Caiado, o Totó, como novo homem forte do estado.  Totó Caiado prometeu reformas, mas agiu exatamente como seu antecessor: submeteu-se aos interesses dos grandes fazendeiros, mudou-se para o Rio de Janeiro e deixou a administração de Goiás nas mãos de parentes.  Utilizou as tropas estaduais e por algum tempo as federais para combater pelas armas seus inimigos políticos do norte goiano.  Após anos de combates, a maioria dos últimos tinha morrido ou fugido para o sertão baiano.
          Apesar de tudo, o senador Totó Caiado se manteve no poder durante duas décadas, enquanto o povo goiano pagava uma fatura elevada. Em 1925, quando Goiás possuía mais de 500 mil habitantes, somente 7 mil crianças estavam na escola primária; no vizinho Mato Grosso, cuja população era muito menor, havia 9 mil alunos naquele nível de ensino.
(Adaptado de Neill Macaulay.  A Coluna Prestes.  Rio de Janeiro; São Paulo: Difel, s/d [original de 1977])             

1-Não confundir com o município fluminense do episódio anterior.     
    
         

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O reacionarismo caricato em cinco tiras

     Os leitores com mais de quarenta anos, sobretudo os que foram criados nas metrópoles brasileiras, provavelmente se lembram da hilariante revista Mad, cuja versão em português continha uma seção intitulada "Cenas que gostaríamos de ver".  Nela, encontrávamos artistas e políticos em situações grotescas ou tipos humanos desagradáveis sofrendo revides inesperados por seus atos antissociais. 
     Mantendo ênfase na veia humorística, recuperei um pouco do espírito da antiga revista, adotando ao mesmo tempo o estilo das charges do Facebook,  o que resultou em cinco pequenas montagens.  As "vítimas", é claro, são subcelebridades de direita que infestam a mídia em geral. Apesar do caráter fictício dos diálogos, procurei me aproximar do discurso real dos personagens, em certos casos transcrevendo suas falas em artigos e vídeos.
     Sei que de imediato surgirão pretensos ideólogos conservadores dizendo que estas pessoas não representam a direita, que nunca leram Burke, não seguem o decálogo de Russell Kirk, entre outros argumentos patéticos.   Mas o máximo que conseguirão é provocar mais riso.   
          

                                        Miguel Nagib chora suas mágoas para Marilena Chauí:




Lobão tenta se exibir para Marcelo Nova:



Julio Severo e a escuta quase paciente de Caio Fábio:



Yvonne Maggie é apresentada ao mundo real.




Leandro Narloch enfrenta dois fantasmas:  




Compartilhem com os amigos, e mais ainda com os inimigos coxinhas.