sábado, 26 de janeiro de 2013

Pérolas do reacionarismo salazarista



        Há quase seis anos, em março de 2007, a rede de televisão portuguesa RTP realizou uma enquete, no programa denominado Grandes Portugueses, cuja questão era: "Qual é o maior Português de sempre?".  O mais votado foi o ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970), o que provocou euforia em algumas parcelas da direita naquele país.  O evento, que alcançou certa repercussão na mídia brasileira, não deixa de ser pitoresco.  Revolvendo a memória, consigo me recordar de um debate monarquia X república, ocorrido talvez há uns vinte anos numa TV carioca e finalizado com votação por telefone sobre qual seria o melhor regime.  Os monarquistas ligaram em peso clamando por um D. Pedro III e evidentemente "ganharam", enquanto os debatedores pró-monarquia comemoravam como se houvessem triunfado em plebiscito nacional.  Quase todos se lembrarão, sobretudo os brasileiros, de outra enquete, a respeito de quem teria sido o melhor jogador de futebol de todos os tempos, na qual milhões de argentinos asseguraram  com paixão a vitória de Maradona sobre Pelé.
     A despeito da alegada popularidade de Salazar, é significativa a constatação de que as forças políticas conservadoras de Portugal, na atualidade, não reivindicam ostensivamente a herança do Estado Novo, vestindo em regra o figurino liberal "modernizante".  Aliás, algo semelhante acontece na Espanha, onde o Partido Popular, de direita, também abre mão do culto à figura de Franco, ainda que a genealogia de suas bases revele uma continuidade direta com o franquismo.
      Chutarei cachorros mortos?  Creio que não.  Numa conjuntura em que milhares de jovens brasileiros buscam vínculos com movimentos reacionários, sempre é conveniente expor o perfil tenebroso dos regimes desta tendência.  Para além da mitologia anticomunista, o salazarismo combinou o atraso com a repressão, quase levando o país à ruína na tentativa anacrônica e fracassada de preservar um império colonial, praticamente sem concessões aos colonizados, em plena segunda metade do século XX.  Não esboçarei um inventário dos crimes de Salazar e de seus colaboradores.  Prefiro dar voz aos próprios, no estilo já adotado em outras matérias do blog.  Para exorcizá-los por inteiro, ilustro a postagem com imagens relacionadas à auspiciosa queda daquela ditadura.                                                  

Logo em 1930, Salazar publica o Acto Colonial, determinando uma política geral para os territórios sob controle português.  No artigo 2, ficou impressa uma das justificativas mais cínicas para um imperialismo de quinta categoria:

É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente.
(citado em José Luís Cabaço. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Unesp, 2009, p. 110)  

Em entrevista concedida a António Ferro, em 1932, Salazar estabelece sutis diferenças entre o seu regime e o de Mussolini, numa profissão de fé ditatorial:

A nossa ditadura aproxima-se, evidentemente, da ditadura fascista no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu caráter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social.  Afasta-se, nos seus processos de renovação.  A ditadura fascista tende para um cesarismo pagão, para um Estado Novo que não conhece limitações de ordem jurídica ou moral, que marcha para o seu fim, sem encontrar embaraços ou obstáculos.
(citado em Luís Reis Torgal.  O Estado Novo.  Salazarismo, fascismo e Europa.  In: História de Portugal/José Tengarrinha (org.).  Bauru: Edusc; São Paulo: Unesp; Portugal: Instituto Camões, 2001, p. 392)



Vinte e seis anos depois, a edição do jornal Le Figaro de 2-3 de setembro de 1958 traz uma declaração de Salazar que só pode ser enquadrada numa categoria: fascista!

Se a democracia consiste no nivelamento pela base e na recusa de admitir as desigualdades naturais; se a democracia consiste em acreditar que o Poder encontra sua origem na massa e que o governo deve ser obra da massa e não do escol, então efetivamente, eu considero a democracia uma ficção.  Não creio no sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta a diferenciação humana.  Os homens, na minha opinião, devem ser iguais perante a lei, mas considero perigoso atribuir a todos os mesmos direitos políticos.  Se o liberalismo consiste em construir toda a sociedade sobre as liberdades individuais, então eu considero mentira o liberalismo.  Não creio na liberdade, mas nas liberdades.  A liberdade que não se inclina perante o interesse nacional chama-se anarquia e destruirá a nação.
(citado em Torgal, p. 411) 

João Ameal (1902-1982), historiador comprometido com o salazarismo, declara em 1938 seu entusiasmo pelo Führer:

Hitler, pela sua reação vigorosa e triunfal, soube levantar a barreira mais eficaz- barreira intransponível- à marcha para oeste da epidemia marxista.  Título de glória suficiente para lhe render a justa gratidão de todos os povos do Ocidente em perigo.
(citado em Torgal, p. 397)



Vicente Ferreira, republicano partidário do colonialismo, expõe no II Congresso da União Nacional, partido único do regime salazarista, sua crítica à visão freyriana da mestiçagem no império português (maio de 1944):

Em Portugal há quem considere [o mestiçamento] uma característica da raça.  Gabamo-nos, até, da facilidade com que os portugueses se acasalam com as mulheres de cor, demonstração evidente- segundo os tais- das superiores aptidões colonizadoras portuguesas.
Erro grave, segundo me parece! Porventura erro necessário nos primeiros tempos da colonização do Brasil; mas não deve, nas condições actuais de civilização de Angola e Moçambique merecer aplausos e, ainda menos, incitamentos oficiais ou oficiosos.  Pelo contrário!
(citado em Cabaço, 2009, p. 196)   

Marcelo Caetano (1906-1980), que chegaria à presidência do Conselho de Ministros após o afastamento de Salazar em 1968, apresenta no Rádio Clube de Moçambique, em 7 de setembro de 1945, sua opinião pessoal sobre as uniões "mistas":

Num só ponto deveremos ser rigorosos quanto à separação racial: no respeitante aos cruzamentos familiares ou ocasionais entre pretos e brancos, fonte de perturbações graves na vida social de europeus e indígenas, e origem do grave problema do mestiçamento, grave, digo, senão sob o aspecto biológico, tão controvertido e sobre o qual não me cabe tomar posição, ao menos sob o aspecto sociológico.  Mas se convém evitar ou reprimir esses cruzamentos raciais, o que não se justifica é a hostilidade contra os mestiços, só por o serem, pois não lhes cabe culpa de terem nascido, e se erro paterno houve não é justo que o paguem como vítimas inocentes.
(Cabaço, p. 152-153)

O mesmo Caetano, em obra de 1951, constrói uma justificativa dos sistemas de trabalhos forçados impostos às populações colonizadas na Idade Moderna:

Na época heroica dos descobrimentos e da descolonização [sic] Portugal contava à roda de um milhão de habitantes e foi com essa escassa população que percorreu todo o globo, ocupando e conquistando grande parte dele!  Não é de estranhar que esses homens, a quem se pedia um esforço sobre-humano, que passavam enormes dificuldades e perigos e morriam em todas as latitudes, julgassem inadmissível o aparente "far niente" das populações africanas e americanas.  Por isso, como de resto aconteceu com os restantes povos colonizadores, forçaram-nos a trabalhar com eles.  Mas nesta colaboração forçada não houve ódio, antes sempre as relações dos portugueses com os povos nativos se caracterizaram por acentuada cordialidade.
(Apud Cabaço, p. 114)

O cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), patriarca de Lisboa, revela em 1960 a educação ideal para os colonizados:

Tentamos atingir a população nativa em extensão e profundidade para os ensinar a ler, escrever e contar, não para os fazer "doutores".  [...] As escolas são necessárias sim, mas escolas onde ensinemos os nativos o caminho da dignidade humana e a grandeza da nação que os protege.
(Apud Cabaço, 210)

Custódio Alvim Pereira, bispo auxiliar de Lourenço Marques (hoje Maputo) em 1964, escreve em circular condenatória dos movimentos de libertação do continente africano:

O slogan "África para os africanos" é uma monstruosidade filosófica e um desafio à civilização cristã, porque os acontecimentos actuais mostram-nos que é o comunismo e o islamismo que querem impor a sua civilização aos africanos.
(Apud Cabaço, p. 210)


Muitos anos após a queda do regime, o historiador salazarista José Hermano Saraiva (1919-2012) tenta convencer seus leitores de que o exército colonial derrotou as guerrilhas de Angola e Moçambique, tal como os revisionistas caricatos que insistem na tese da "vitória americana no Vietnam":

Com excepção da Guiné, as guerrilhas não tiveram qualquer êxito militar e não conseguiram afectar o desenvolvimento económico dos territórios, que então entrou numa cadência acelerada.  Foi já depois da guerra que se iniciou e concluiu a barragem de Cabora Bassa, no Norte de Moçambique, a maior barragem hidroeléctrica ao sul do equador.  Mas Portugal foi obrigado a manter em África grandes contingentes militares e a consagrar, durante doze anos, uma percentagem muito avultada da receita nacional às despesas militares.
(José Hermano Saraiva.  Breve História de Portugal Ilustrada. Généve: Éditions Minerva, 1989, p. 119)  

José Luís Cabaço, doutor em Antropologia e participante da luta pela independência de Moçambique








domingo, 20 de janeiro de 2013

Mais sobre a "escravidão benevolente": manipulação de fontes na construção do mito


      

       Retorno ao artigo de Flávio Versiani citado na última postagem com um propósito bem específico: demonstrar que no Brasil, quando se trata de temas relacionados à escravidão, o debate exclui forçosamente a inocência em qualquer dos seus graus.  A difusão da ideia de que as relações escravistas verificadas no país tiveram um caráter benevolente não se limita ao objetivo de reforçar um outro mito, o da democracia racial.  Este discurso também dá margem a uma legitimação das demais formas de exploração e sujeição do homem pelo homem, até os dias atuais, e à consequente valorização do status quo como única alternativa ao caos econômico. Podemos resumir a mensagem implícita nestes termos simples: "Se no Brasil até os escravos eram bem tratados, do que reclamam os trabalhadores assalariados, que não gostando das regras da casa podem sair quando quiserem"? 
      Em sua tentativa de reconstituir a genealogia da tese da "escravidão suave", Versiani recorre aos livros de memórias dos viajantes estrangeiros do século XIX:


No século XIX, a fonte mais conhecida do argumento são os depoimentos de viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil, especialmente depois da abertura dos portos, em 1808. Como se sabe, foram numerosos os relatos publicados, na Europa e nos Estados Unidos, por tais cronistas. Menções de um tratamento brando de escravos são frequentes nesses escritos, muitas vezes com mostras de surpresa. 

       É certo que o autor não afirma decididamente que a percepção de um "tratamento brando" foi unanimidade entre os viajantes; tampouco os limites espaciais impostos ao artigo permitiriam uma análise, ainda que superficial, de todos os trabalhos do gênero.  Porém, Versiani se limita à exposição de breves trechos de Saint-Hilaire e Burton que presumidamente reforçam o que deseja provar, sem examinar as versões em contrário, que estão longe de ser escassas.
         A inglesa Maria Graham (1785-1842), durante estadia na província de Pernambuco no início da década de 1820, elaborou o seguinte relato:

"Esta manhã, antes do café, olhando pela janela da casa do Sr. Stewart, vi uma mulher branca, ou antes um demônio, surrando uma pobre negra e torcendo seus braços cruelmente enquanto a pobre criatura gritava angustiadamente, até que nossos homens interferiram.  Bom Deus! Como pode existir este tráfico e estes hábitos de escravidão!  Perto da casa há dois ou três depósitos de escravos, todos moços.  Em um vi uma criança de cerca de dois anos à venda.  As provisões agora estão tão raras que nenhum bocado de alimentação animal tempera a massa de farinha de mandioca, que é o sustento dos escravos, e mesmo assim estas pobres crianças, com seus ossos salientes e faces cavadas, revelam que eles raramente recebem suficientemente".¹


          Poucos anos mais tarde, Robert Walsh (1772-1852) assim descreveu o cotidiano de uma parte dos escravos urbanos do Rio de Janeiro:

Passamos pelo Largo do Paço e subimos a Rua Direita, a maior rua de toda a cidade e o centro do comércio.  Ela é paralela à baía e a partir dela todas as outras correm em ângulo reto.  Nela está situada a Alfândega, e nesse local, pela primeira vez, pude observar a população negra em circunstâncias muito chocantes para um estrangeiro.  Todo o serviço de transportes de cargas era feito por eles, e o estado em que se apresentavam era revoltante para a Humanidade.  Havia ali vários seres quase inteiramente despidos, a não ser por um manto feito de trapos imundos, amarrado em volta da cintura.  A pele deles, devido à constante exposição ao ar, tinha se tornado dura, cheia de crostas e rachada, lembrando a pele negra e grossa de alguns animais, ou a de um elefante, enrugada e com pelos esparsos.  Ao contemplá-los, sua constituição física nos fazia pensar em seres inferiores ao homem: calcanhares compridos e salientes; pernas desprovidas de panturrilha; boca e queixo salientes; nariz achatado e frontes fugidias.  A cabeça e as pernas eram exatamente iguais à da tribo dos babuínos.  Alguns desses seres puxavam pesadas carroças de carga presas a eles por cangas.  Outros seguiam em fila, com enormes pesos nas cabeças, murmurando uma cadência de sons inarticulados e tristes enquanto caminhavam.  Alguns mastigavam cana ruidosamente, como bestas de carga comendo capim, e alguns eram vistos à beira d'água, deitados no chão em meio ao lixo, encolhidos como cães, como se não esperassem ou não quisessem mais conforto.  Seu estado e conformação eram tão pouco humanos que não pareciam, mas realmente eram, seres muito inferiores aos animais que os rodeavam.  Cavalos e mulas não eram usados dessa maneira; eram empregados apenas para o lazer e não para o trabalho.  Podiam ser vistos nas mesmas ruas, bem tratados, cheios de vida e enfeitados com ricos jaezes, gozando de um estado muito superior ao dos negros, parecendo olhar os infelizes acorrentados e carregados de pesos que passavam por eles como se fossem seres inferiores.²  


     Fazendo alusão aos conflitos ocorridos no Primeiro Reinado entre escravos e mercenários irlandeses, Walsh estabeleceu um quadro mais geral do escravismo como se apresentava na Corte:

No Rio, os pobres escravos , utilizados apenas como bestas de carga são, de longe, entre todas as classes humanas, os mais desamparados e humilhados.  Empregados somente como animais inferiores, sem o menor respeito à sua condição de seres dotados de raciocínio, eles trabalham o dia todo e só à noite são liberados, quando, por uma grande incongruência, têm permissão de praticar os atos mais licenciosos e irrefreados.  Percorrem as ruas geralmente bêbados, gritando e brigando.  Quando se imagina que existem de 50.000 a 60.000 escravos nessa grande e licenciosa cidade, e que eles constituem a grande maioria da população, é assustador pensar nas consequências que podem surgir, de uma hora para outra, devido ao seu estado de grande agitação.  Mesmo assim eles eram os instrumentos usados para provocar e irritar os estrangeiros.³  


      Johann Moritz Rugendas (1802-1858), convicto defensor da inferioridade dos negros, e que acreditava de fato na menor brutalidade de portugueses e espanhóis no trato com seus escravos, em comparação com os anglo-saxônicos, não deixaria de testemunhar, no Brasil, o caráter corriqueiro dos castigos físicos:

Quando um escravo comete um crime, as autoridades se encarregam de puni-lo, como veremos mais adiante; mas, quando ele se limita a descontentar o senhor pela sua embriaguez, preguiça, imprudência ou pequeninos roubos, este o pode punir como bem entende.  Em verdade, existem leis que impõem certos limites ao arbítrio e à cólera dos senhores, como por exemplo a que fixa o número de chicotadas que é permitido infligir, de uma só vez, ao escravo, sem a intervenção da autoridade; entretanto, como já dissemos acima, essas leis não têm força e talvez mesmo sejam desconhecidas da maioria dos escravos e senhores; por outro lado, as autoridades se encontram tão afastadas que, na realidade, o castigo do escravo por uma falta verdadeira ou imaginária ou os maus tratos resultantes do capricho e da crueldade do senhor só encontram limites no medo de perder o escravo, pela morte ou pela fuga, ou no respeito à opinião pública4.     


        Uma passagem de Rugendas sobre a rotina das plantations deveria ser o suficiente para desfazer por inteiro qualquer romantização do cativeiro:

O que mais importa é o caráter do feitor.  De chicote na mão, ele conduz os escravos ao trabalho e os fiscaliza de perto durante todo o dia.  O que mais nos revolta, neste infeliz sistema, é o horrível pensamento de submeter o homem, como um animal, à ação do chicote.  Embora, em regra geral, seja verdadeiro, como pretendem os defensores da escravidão, que o chicote na mão do feitor é apenas um símbolo do poder de que não se serve nem para obrigar o negro a trabalhar, nem para puni-lo arbitrariamente, não é menos verdade que só a presença ou a vontade do senhor pode impedir o feitor de fazer uso do chicote e não é possível que um homem grosseiro, cruel, rancoroso, não abuse de seu poder; os exemplos de abuso verificados são, aliás, mais do que frequentes.5  

       O pintor alemão, em conclusão desconcertante para os neofreyrianos, vira pelo avesso uma das premissas fundamentais do mito, dando a entender que não visualizou no Brasil um escravismo ameno, mas apenas menos violência do que em outras partes do continente: 

Infelizmente, os europeus do norte são ainda piores do que os portugueses.6           

        A denúncia do revisionismo que tende a reabilitar a escravidão permanece na ordem do dia, sobretudo por sabermos, sem exceção, que em várias atividades econômicas e em diversas partes do país continuam a prevalecer condições de trabalho e relações hierárquicas análogas às do século XIX.     
        

Referências:
1-Maria Graham.  Diário de uma viagem ao Brasil.  Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1990, p. 136)
2- Robert Walsh.  Notícias do BrasilBelo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985, vol. I, p. 70/71. 
3- Idem, p. 127.
4-Johann Moritz Rugendas.  Viagem pitoresca através do Brasil.  São Paulo: Círculo do Livro, p. 241-242.
5- Idem, p. 239.
6- Ibidem, p. 240













           

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Um pouco sobre o mito da escravidão benevolente

        


      A tese de que teria prevalecido no Brasil colonial e imperial um modelo de escravidão benevolente quase nunca é defendida de maneira direta por historiadores de ofício na atualidade.  Isto não impede que o mito esteja bem vivo e seja alimentado em outras esferas.  Encontro numa revista virtual de Economia Política, organizada em 2007, um texto de Flávio Rabelo Versiani, que resgata o tema a partir de Gilberto Freyre e de alguns relatos de viajantes estrangeiros do século XIX.  O autor, em sua conclusão, declara que a o "tratamento dos escravos" no país não se caracterizou pelo "uso universal de força e violência física".      


        Podemos assinalar muitas incoerências e inconsistências no artigo, a começar pela afirmativa de que a aferição de uma maior ou menor "benignidade" depende de testemunhos subjetivos (e eventualmente mentirosos) de literatos oitocentistas.  Versiani ignora, ou simula ignorar, as várias peças legislativas que regeram as punições aplicadas aos cativos por seus donos ou pelo Estado, as medidas publicadas e postas em prática pelas autoridades após rebeliões ou agitações nas senzalas e os processos na Justiça envolvendo escravos que se queixavam de torturas infligidas pelos senhores.  Material bem mais concreto, certamente, ainda que não imune a distorções. 
       Versiani parte da premissa, de comprovação bastante duvidosa, de que senhores de poucos homens, numerosas vezes trabalhando ao lado destes, faziam um menor uso da violência corporal enquanto mecanismo de coerção.  Entretanto, dentro de tal categoria caberiam tanto sitiantes e posseiros quanto arrendatários de terras e pequenos fazendeiros, ocasionando uma variação imensa nos graus de proximidade física (e no trato pessoal) com a escravaria.  O autor cita para sustentar seu ponto de vista passagens de Saint-Hilaire e Rugendas, mas na prática não esclarece que razões levariam proprietários menos abonados economicamente a bater em cativos considerados desobedientes ou relapsos com frequência mais baixa do que os plantadores ricos.  Sob outro ângulo, também não lhe passa pela mente que a intensificação forçada do ritmo de trabalho do escravo constrangido pela presença permanente do senhor poderia ser tão opressiva quanto passar alguns dias por ano no tronco.  
          A desconstrução da premissa de que "o escravo da grande lavoura era o escravo típico" também é fraca.  Versiani valoriza seletivamente exemplos estatísticos de áreas e épocas nas quais predominaram plantéis reduzidos, passando ao largo da região em que o escravismo brasileiro atingiu seu maior desenvolvimento, o Vale do Paraíba fluminense a partir dos anos 1830.  O autor exibe dados sobre a província de São Paulo antes da expansão da cafeicultura sem trazer como contraponto a situação vigente nos centros cafeeiros de ponta como Piraí, Vassouras e Valença, na província do Rio, cuja população escrava se agrupou preferencialmente nas grandes unidades territoriais.  Voltando seu olhar para o Nordeste, Versiani aponta para a conhecida diminuição dos plantéis locais depois de 1850 sem relacionar o processo ao tráfico interno direcionado às plantations do Sudeste.  Omite, igualmente, a existência de numerosos trabalhos que demonstram que a propriedade escrava se concentrou progressivamente após o fim do tráfico atlântico: as cidades perdiam escravos para o campo; os pequenos fazendeiros vendiam sua mão de obra, cujo preço tendia a subir, aos barões. 
       À suavidade do cativeiro urbano celebrada por Flávio Versiani poderiam ser opostas as estatísticas de Thomas Holloway sobre a ampla predominância dos escravos na célebre prisão carioca do Calabouço e a média de chicotadas que recebiam os negros sentenciados pela Justiça gaúcha segundo as pesquisas de Mário Maestri.  Porém, nesta matéria não apresentarei um longo levantamento historiográfico, mesmo não descartando a possibilidade de fazê-lo a curto ou médio prazo.  Prefiro expor ao leitor um punhado de amostras do cotidiano da sociedade escravista, a partir de dois periódicos da antiga Corte: o Correio Mercantil e o Diário do Rio de Janeiro.          
      Na edição de 10 de setembro de 1849, o Correio reproduziu um requerimento elaborado por cidadãos da localidade paulista de Ubatuba que protestavam contra a prisão arbitrária de alguns de seus correligionários políticos.  Do texto emerge não só a naturalização do castigo físico como método disciplinar para os escravos como também o risco que traria para a ordem o fato de um senhor ser punido por chicotear seus negros.    

                                         
       Em 4 de novembro do mesmo ano, o Correio transcreveu a proposta de um vereador do Rio que prescrevia cinquenta chibatadas para o escravo apanhado no "delito" de jogar laranjas ou água nos transeuntes durante o entrudo.






            Pela edição de 6 de fevereiro de 1850 do Correio verificamos que o vereador "Tavaves" não era exatamente o general Newton Cruz de seu tempo, pois na freguesia carioca do Sacramento os senhores cujos escravos fossem surpreendidos participando do entrudo escolheriam entre perder oito dias do trabalho destes últimos (encarcerados) ou mandar "corrigi-los" com cem açoites no Calabouço.



    Ainda no Correio, desta vez na data de 12 de novembro de 1851, revelou-se que africanos que talvez jogassem búzios estavam sujeitos à prisão com acréscimo de vergastadas.              


                                        

   Quanto aos escravos suspeitos de planejar insurreições, os suplícios físicos poderiam chegar à mais extrema crueldade, conforme notamos nas notícias de Alagoas registradas no Correio Mercantil de 21 de dezembro de 1852. 




      O Correio de 5 de janeiro de 1855 publicou as posturas municipais, já aprovadas pela autoridade superior, da vila fluminense de Barra Mansa.  Os cativos que descarregassem barris com urina e fezes fora dos horários permitidos, obviamente por ordem de seus donos, tomariam cinquenta chibatadas caso os mesmos senhores não se dispusessem a pagar a multa prevista de dez mil-réis.


     O Diário do Rio de Janeiro de 7 de dezembro de 1858 apresenta as posturas da freguesia de São Cristóvão, na Corte.  O dono de um escravo que cortasse árvores ilegalmente, não desejando vê-lo na prisão ou pagar multa, também teria a opção, só para variar, do chicote.



      O escravo baloeiro, na freguesia carioca de São José, estava igualmente exposto às alternativas da prisão e do açoite, de acordo com o Diário de 27 de junho de 1860.

        Esta nota publicada no Correio de 27 de dezembro de 1858, cujo autor se valeu do pseudônimo de Um estrangeiro, desautoriza radicalmente as versões literárias adocicadas da escravidão brasileira.  Assinalemos que foi composta muito antes do fortalecimento do movimento abolicionista nacional.  
  


                                            

        Neste anúncio sobre a fuga de um escravo do comendador José Breves, como em outros do mesmo gênero, percebemos que as marcas dos castigos impostos aos escravos do eito poderiam, na hipótese de fuga, servir como sinais particulares para facilitar a sua recaptura.  





     Retornarei ao assunto em novas ocasiões.  Por fim, registro mais uma vez meu estarrecimento diante daqueles que continuam a construir idealizações dignas de contos de fadas a respeito da sociedade imperial.

Obs: Perdi a referência do último recorte, mas vou recuperá-la em breve. 

    

                

              


sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Sobre um tipo conhecido: o pequeno burguês conservador e suas grandes contradições




O pequeno burguês conservador fica indignado com o "desrespeito aos direitos individuais"quando um prefeito ou governador eleito por 60% ou até 70% dos votantes, com o respaldo do Legislativo, estabelece áreas interditadas ao fumo, mas acha perfeitamente normal que um único homem, presidente de um banco ou de uma indústria, crie regras absurdas para  centenas ou milhares de funcionários no que se refere à própria aparência física deles, com base apenas em preconceitos pessoais.
O pequeno burguês conservador esbraveja quando sabe pelo Jornal Nacional que  um cacique caiapó impediu a entrada de uma equipe de reportagem em sua aldeia, mesmo que se trate de área indígena demarcada há várias gerações, mas julga inteiramente legítimo que um latifundiário mande abrir fogo contra qualquer ser que ultrapasse sua porteira sem convite.
O pequeno burguês conservador aplaude a execução de bandidos que já haviam se rendido à polícia, a tortura de presos, o uso indiscriminado de força bruta contra populações faveladas e outros expedientes típicos de governos coloniais ou ditaduras das mais truculentas, mas nunca deixa de se dizer democrata e de chamar de totalitário, quando não de fascista, todo aquele que ousa desconsiderar suas baboseiras liberalóides.

O pequeno burguês conservador idealiza uma sociedade com mão de obra barata e dócil, mas decreta em todas as festas familiares que "as metrópoles têm paraíbas demais e o povo está ficando baixinho e feio".  


O pequeno burguês conservador repele os programas de transferência de renda e os subsídios para a habitação dos pobres, mas quer que o aparato repressivo estatal detenha a favelização. 


O pequeno burguês conservador tem o hábito de desvalorizar a cultura universitária, chamando os acadêmicos de diletantes, subversivos ou improdutivos, mas não abre mão de demarcar seu status de bacharel.    

O pequeno burguês conservador não cabe em si de prazer quando governos de países da União Europeia em dificuldades financeiras criam novas barreiras contra a imigração de árabes, africanos, afrocaribenhos e mesmo latino-americanos, mas como bom colonizado gostaria imensamente que o Brasil abrigasse as massas de desempregados daqueles mesmos países, "para nos civilizar".
O pequeno burguês conservador é de opinião que sindicatos e organizações populares ferem os princípios da livre concorrência e não deveriam existir, mas nunca diria o mesmo de federações empresariais e organizações classistas da alta burguesia.

O pequeno burguês conservador protesta contra "doutrinadores comunistas disfarçados de professores de História e Geografia", mesmo que não conheça nenhum, mas dá crédito à revista Veja e outras publicações panfletárias de udenistas tardios.  Nos casos mais graves, consome todo o repertório de Ali Kamel e Leandro Narloch e ainda compra vários exemplares de cada livro para "presentear" os parentes.  

O pequeno burguês conservador cultiva todos os preconceitos possíveis de classe, etnia, origem regional, orientação sexual e estética, mas se considera um oprimido pelas minorias organizadas que adoraria poder desmobilizar. 

O pequeno burguês conservador é favorável ao endurecimento do sistema prisional e das leis penais, mas rejeita o fim do instituto da prisão especial, mesmo sabendo que portadores de diplomas de nível superior têm muito mais oportunidades econômicas do que os pouco instruídos, e em tese nenhuma necessidade de delinquir.
O pequeno burguês conservador finge acreditar que o atual Estado de Israel é a restauração de um reino subjugado pelos romanos há quase dois milênios e que qualquer concessão territorial aos "palestinos terroristas" é um extraordinário ato de liberalidade, mas quase morre de ódio quando vê indígenas andinos, despojados de governo próprio há "só" cinco séculos e que nunca deixaram as regiões de origem, pretendendo ter suas línguas oficializadas pelo Estado e fundar instituições segundo seus parâmetros culturais. 

O pequeno burguês conservador classifica o chavismo como uma ditadura, mas aberta ou envergonhadamente lamenta que o golpe promovido pela Fedecámaras (nome bastante sugestivo em português) em 2002 tenha fracassado. 

O pequeno burguês conservador vota em ACM Neto, Geraldo Alckmin e Jair Bolsonaro, eventualmente enviuvou de Enéas Carneiro, mas raramente se assume como direitista.  Ele é "contra o projeto das esquerdas".

O pequeno burguês conservador é radicalmente contra medidas de ação afirmativa, mas jamais lhe ocorreu que um sistema meritocrático passaria, no mínimo, pela universalização da pré-escola e de políticas de habitação e saúde merecedoras destes nomes.

O pequeno burguês conservador reclama de todos os impostos, mas não se revolta por entregar vinte ou trinta reais por mês a um banqueiro pela simples honra de hospedar sua conta salário.  Também simula satisfação ao pagar pedágio a governos estaduais de direita.

A mentalidade do pequeno burguês conservador é um imenso estorvo para a sociedade! 
















quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sobre direitistas assumidos e enrustidos



      Encontramos com frequência, tanto nos sites e blogs conservadores quanto nas páginas impressas e virtuais dos profetas do deus Mercado, a lamentação, até certo ponto justificada, de que não há no Brasil um partido ideológico de direita.  Nesta perspectiva, as duas agremiações que poderiam assumir tal papel, com base em suas conexões históricas com a última ditadura, estão irremediavelmente contaminadas: o DEM pelo notório fisiologismo e o PP pela aliança com o governo federal sob direção petista.  O PSDB, que sem dúvida vem recebendo  os votos da direita na maioria das eleições para cargos do Executivo, em todos os níveis, é desqualificado por conservadores que se reportam à antiga retórica socialista de alguns de seus membros e por liberais insatisfeitos com a relutância dos tucanos em aceitar por inteiro o projeto do Estado-mínimo. 
      Voltando os olhos para um passado mais ou menos recente, podemos nos recordar do deputado fluminense Amaral Netto (1921-1995) em suas enfáticas defesas da pena de morte e do regime implantado em 1964; do paulista Antônio Henrique Cunha Bueno sonhando com uma Restauração de Bragança à brasileira; de Enéas Carneiro (1938-2007) clamando por uma ordem nacionalista dentro do capitalismo; de um Roberto Jefferson pretendendo representar a "direita com coração" ao reconhecer os direitos civis dos homossexuais.  Na atualidade, o capitão Jair Bolsonaro, deputado pepista, tem assumido o combate frontal a todas as iniciativas progressistas no Congresso, mantendo em regra votação elevada no estado do Rio de Janeiro.  Porém, é certo que no Brasil jamais se formaram coalizões como as que se verificam no parlamentarismo europeu, em que partidos liberais, confessionais, e eventualmente neofascistas e monarquistas se agrupam por afinidade doutrinária contra as forças de centro-esquerda, por vezes fracionando o eleitorado em duas parcelas de porte assemelhado.  
     Estou longe de negar o pragmatismo, não raro excessivo, do político médio brasileiro.  Seria ingenuidade supor que a relativa invisibilidade da direita se deve à falta de articulação ideológica entre os deputados, senadores e governadores eleitos sob o patrocínio do empresariado ou ao desconhecimento do fato de que milhões de jovens e velhos reacionários se sentem órfãos de uma plena representação.  Tomo a liberdade, então, de especular a respeito do que seria o partido direitista "autêntico", recorrendo ao discurso de quatro formadores de opinião que se inserem neste campo.   
      O raivoso Diogo Mainardi, em artigo datado de 13 de novembro de 2010, deixa claro que ainda crê em certas premissas que se vinculam ao racismo científico do final do século XIX.  Julgo que nem Bolsonaro se expressaria de maneira tão brutal:




        Ele também deplora a suposta incapacidade dos brasileiros ricos de se comportarem como verdadeiros aristocratas.  Duvido que o escrachado Sarkozy ou o pornográfico Berlusconi se atrevessem, como Mainardi, a proclamar a missão civilizatória das elites tradicionais.  Seja por cálculo eleitoral, seja por simples falta de convicção.     







       Já Aristóteles Drummond celebra sem meias palavras a política de remoção forçada de favelas aplicada pelo governador Carlos Lacerda nos anos 60, que baniu milhares de cariocas para áreas do município situadas a dezenas de quilômetros de seus meios de subsistência. Aponta a presença de pobres na Zona Sul do Rio como uma desgraça, praticamente uma sentença de morte para a cidade: 






       Como se não bastasse, enfatiza que favelados devem de fato ser levados para longe dos ricos, de forma a não incomodá-los:



http://www.imil.org.br/artigos/valores-invertidos/

         Segundo Nivaldo Cordeiro, aposentados, bolsistas e "beneficiários" de seguro desemprego são "viciados em não trabalhar".   Não preciso me estender sobre a repercussão que o seguinte trecho teria na opinião pública fora de reduzidos círculos de seguidores de Ludwig von Mises:


      Reinaldo Azevedo mistura moralismo rasteiro (falar em "Antropologia da Maldade" é agredir a inteligência de qualquer ser pensante) e elitismo em último grau ao denunciar as manifestações culturais dos subúrbios e favelas como indícios de selvageria.  Seus fãs são alertados sobre o imenso potencial subversivo de ... Regina Casé!!!

http://veja.abril.com.br/051207/p_116.shtml






         Sou contrário à hipocrisia.  Acho, tanto quanto eles mesmos, que os direitistas precisam ter seu Partido Republicano, Federalista, Conservador ou Monarquista.  Que registrem todos esses, isoladamente ou em coalizão.  Mas sobretudo que se expressem nos palanques como os homens que fazem as suas cabeças e recebam do eleitorado brasileiro a resposta mais espontânea possível.