A despeito da alegada popularidade de Salazar, é significativa a constatação de que as forças políticas conservadoras de Portugal, na atualidade, não reivindicam ostensivamente a herança do Estado Novo, vestindo em regra o figurino liberal "modernizante". Aliás, algo semelhante acontece na Espanha, onde o Partido Popular, de direita, também abre mão do culto à figura de Franco, ainda que a genealogia de suas bases revele uma continuidade direta com o franquismo.
Chutarei cachorros mortos? Creio que não. Numa conjuntura em que milhares de jovens brasileiros buscam vínculos com movimentos reacionários, sempre é conveniente expor o perfil tenebroso dos regimes desta tendência. Para além da mitologia anticomunista, o salazarismo combinou o atraso com a repressão, quase levando o país à ruína na tentativa anacrônica e fracassada de preservar um império colonial, praticamente sem concessões aos colonizados, em plena segunda metade do século XX. Não esboçarei um inventário dos crimes de Salazar e de seus colaboradores. Prefiro dar voz aos próprios, no estilo já adotado em outras matérias do blog. Para exorcizá-los por inteiro, ilustro a postagem com imagens relacionadas à auspiciosa queda daquela ditadura.
Logo em 1930, Salazar publica o Acto Colonial, determinando uma política geral para os territórios sob controle português. No artigo 2, ficou impressa uma das justificativas mais cínicas para um imperialismo de quinta categoria:
É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente.
(citado em José Luís Cabaço. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Unesp, 2009, p. 110)
Em entrevista concedida a António Ferro, em 1932, Salazar estabelece sutis diferenças entre o seu regime e o de Mussolini, numa profissão de fé ditatorial:
A nossa ditadura aproxima-se, evidentemente, da ditadura fascista no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu caráter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social. Afasta-se, nos seus processos de renovação. A ditadura fascista tende para um cesarismo pagão, para um Estado Novo que não conhece limitações de ordem jurídica ou moral, que marcha para o seu fim, sem encontrar embaraços ou obstáculos.
(citado em Luís Reis Torgal. O Estado Novo. Salazarismo, fascismo e Europa. In: História de Portugal/José Tengarrinha (org.). Bauru: Edusc; São Paulo: Unesp; Portugal: Instituto Camões, 2001, p. 392)
Vinte e seis anos depois, a edição do jornal Le Figaro de 2-3 de setembro de 1958 traz uma declaração de Salazar que só pode ser enquadrada numa categoria: fascista!
Se a democracia consiste no nivelamento pela base e na recusa de admitir as desigualdades naturais; se a democracia consiste em acreditar que o Poder encontra sua origem na massa e que o governo deve ser obra da massa e não do escol, então efetivamente, eu considero a democracia uma ficção. Não creio no sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta a diferenciação humana. Os homens, na minha opinião, devem ser iguais perante a lei, mas considero perigoso atribuir a todos os mesmos direitos políticos. Se o liberalismo consiste em construir toda a sociedade sobre as liberdades individuais, então eu considero mentira o liberalismo. Não creio na liberdade, mas nas liberdades. A liberdade que não se inclina perante o interesse nacional chama-se anarquia e destruirá a nação.
(citado em Torgal, p. 411)
Vinte e seis anos depois, a edição do jornal Le Figaro de 2-3 de setembro de 1958 traz uma declaração de Salazar que só pode ser enquadrada numa categoria: fascista!
Se a democracia consiste no nivelamento pela base e na recusa de admitir as desigualdades naturais; se a democracia consiste em acreditar que o Poder encontra sua origem na massa e que o governo deve ser obra da massa e não do escol, então efetivamente, eu considero a democracia uma ficção. Não creio no sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta a diferenciação humana. Os homens, na minha opinião, devem ser iguais perante a lei, mas considero perigoso atribuir a todos os mesmos direitos políticos. Se o liberalismo consiste em construir toda a sociedade sobre as liberdades individuais, então eu considero mentira o liberalismo. Não creio na liberdade, mas nas liberdades. A liberdade que não se inclina perante o interesse nacional chama-se anarquia e destruirá a nação.
(citado em Torgal, p. 411)
João Ameal (1902-1982), historiador comprometido com o salazarismo, declara em 1938 seu entusiasmo pelo Führer:
Hitler, pela sua reação vigorosa e triunfal, soube levantar a barreira mais eficaz- barreira intransponível- à marcha para oeste da epidemia marxista. Título de glória suficiente para lhe render a justa gratidão de todos os povos do Ocidente em perigo.
Vicente Ferreira, republicano partidário do colonialismo, expõe no II Congresso da União Nacional, partido único do regime salazarista, sua crítica à visão freyriana da mestiçagem no império português (maio de 1944):
Em Portugal há quem considere [o mestiçamento] uma característica da raça. Gabamo-nos, até, da facilidade com que os portugueses se acasalam com as mulheres de cor, demonstração evidente- segundo os tais- das superiores aptidões colonizadoras portuguesas.
Erro grave, segundo me parece! Porventura erro necessário nos primeiros tempos da colonização do Brasil; mas não deve, nas condições actuais de civilização de Angola e Moçambique merecer aplausos e, ainda menos, incitamentos oficiais ou oficiosos. Pelo contrário!
(citado em Cabaço, 2009, p. 196)
Marcelo Caetano (1906-1980), que chegaria à presidência do Conselho de Ministros após o afastamento de Salazar em 1968, apresenta no Rádio Clube de Moçambique, em 7 de setembro de 1945, sua opinião pessoal sobre as uniões "mistas":
Num só ponto deveremos ser rigorosos quanto à separação racial: no respeitante aos cruzamentos familiares ou ocasionais entre pretos e brancos, fonte de perturbações graves na vida social de europeus e indígenas, e origem do grave problema do mestiçamento, grave, digo, senão sob o aspecto biológico, tão controvertido e sobre o qual não me cabe tomar posição, ao menos sob o aspecto sociológico. Mas se convém evitar ou reprimir esses cruzamentos raciais, o que não se justifica é a hostilidade contra os mestiços, só por o serem, pois não lhes cabe culpa de terem nascido, e se erro paterno houve não é justo que o paguem como vítimas inocentes.
(Cabaço, p. 152-153)
O mesmo Caetano, em obra de 1951, constrói uma justificativa dos sistemas de trabalhos forçados impostos às populações colonizadas na Idade Moderna:
Na época heroica dos descobrimentos e da descolonização [sic] Portugal contava à roda de um milhão de habitantes e foi com essa escassa população que percorreu todo o globo, ocupando e conquistando grande parte dele! Não é de estranhar que esses homens, a quem se pedia um esforço sobre-humano, que passavam enormes dificuldades e perigos e morriam em todas as latitudes, julgassem inadmissível o aparente "far niente" das populações africanas e americanas. Por isso, como de resto aconteceu com os restantes povos colonizadores, forçaram-nos a trabalhar com eles. Mas nesta colaboração forçada não houve ódio, antes sempre as relações dos portugueses com os povos nativos se caracterizaram por acentuada cordialidade.
(Apud Cabaço, p. 114)
O cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), patriarca de Lisboa, revela em 1960 a educação ideal para os colonizados:
Tentamos atingir a população nativa em extensão e profundidade para os ensinar a ler, escrever e contar, não para os fazer "doutores". [...] As escolas são necessárias sim, mas escolas onde ensinemos os nativos o caminho da dignidade humana e a grandeza da nação que os protege.
(Apud Cabaço, 210)
Custódio Alvim Pereira, bispo auxiliar de Lourenço Marques (hoje Maputo) em 1964, escreve em circular condenatória dos movimentos de libertação do continente africano:
O slogan "África para os africanos" é uma monstruosidade filosófica e um desafio à civilização cristã, porque os acontecimentos actuais mostram-nos que é o comunismo e o islamismo que querem impor a sua civilização aos africanos.
(Apud Cabaço, p. 210)
Muitos anos após a queda do regime, o historiador salazarista José Hermano Saraiva (1919-2012) tenta convencer seus leitores de que o exército colonial derrotou as guerrilhas de Angola e Moçambique, tal como os revisionistas caricatos que insistem na tese da "vitória americana no Vietnam":
Com excepção da Guiné, as guerrilhas não tiveram qualquer êxito militar e não conseguiram afectar o desenvolvimento económico dos territórios, que então entrou numa cadência acelerada. Foi já depois da guerra que se iniciou e concluiu a barragem de Cabora Bassa, no Norte de Moçambique, a maior barragem hidroeléctrica ao sul do equador. Mas Portugal foi obrigado a manter em África grandes contingentes militares e a consagrar, durante doze anos, uma percentagem muito avultada da receita nacional às despesas militares.
(José Hermano Saraiva. Breve História de Portugal Ilustrada. Généve: Éditions Minerva, 1989, p. 119)
O cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), patriarca de Lisboa, revela em 1960 a educação ideal para os colonizados:
Tentamos atingir a população nativa em extensão e profundidade para os ensinar a ler, escrever e contar, não para os fazer "doutores". [...] As escolas são necessárias sim, mas escolas onde ensinemos os nativos o caminho da dignidade humana e a grandeza da nação que os protege.
(Apud Cabaço, 210)
Custódio Alvim Pereira, bispo auxiliar de Lourenço Marques (hoje Maputo) em 1964, escreve em circular condenatória dos movimentos de libertação do continente africano:
O slogan "África para os africanos" é uma monstruosidade filosófica e um desafio à civilização cristã, porque os acontecimentos actuais mostram-nos que é o comunismo e o islamismo que querem impor a sua civilização aos africanos.
(Apud Cabaço, p. 210)
Muitos anos após a queda do regime, o historiador salazarista José Hermano Saraiva (1919-2012) tenta convencer seus leitores de que o exército colonial derrotou as guerrilhas de Angola e Moçambique, tal como os revisionistas caricatos que insistem na tese da "vitória americana no Vietnam":
Com excepção da Guiné, as guerrilhas não tiveram qualquer êxito militar e não conseguiram afectar o desenvolvimento económico dos territórios, que então entrou numa cadência acelerada. Foi já depois da guerra que se iniciou e concluiu a barragem de Cabora Bassa, no Norte de Moçambique, a maior barragem hidroeléctrica ao sul do equador. Mas Portugal foi obrigado a manter em África grandes contingentes militares e a consagrar, durante doze anos, uma percentagem muito avultada da receita nacional às despesas militares.
(José Hermano Saraiva. Breve História de Portugal Ilustrada. Généve: Éditions Minerva, 1989, p. 119)
José Luís Cabaço, doutor em Antropologia e participante da luta pela independência de Moçambique