Meu sogro Moacyr Fernandes Dias (1922-2012), natural de Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais, cursou quatro faculdades. Certo dia, para meu espanto, ele relatou que só conseguiu concluir o extinto Científico aos 22 anos, quando já morava no Rio de Janeiro e trabalhava como servente. A explicação para o atraso não me surpreendeu tanto: os diretores dos colégios de seu município de origem davam preferência, por ocasião do período das matrículas escolares, às crianças brancas. Depois, matriculava-se "quem fosse possível". O sistema em vigor, evidentemente, não tinha amparo no ordenamento jurídico formal do país, mas fez com que o garoto Moacyr, na prática, estudasse ano sim, ano não, ficando exposto ao que hoje classificaríamos como uma grave defasagem idade-série.
Juiz de Fora, a antiga Santo Antônio do Paraibuna, estava longe de ser um grotão nos tempos do primeiro governo Vargas. Em meados do século XIX, o progresso da cafeicultura já permitira a elevação da vila à categoria de cidade. O quadro descrito diz respeito, portanto, a um centro urbano de proporções médias situado na segunda unidade mais populosa da federação. Talvez algum cínico alegue que me reporto a um caso particular, quem sabe uma anomalia social limitada à Zona da Mata mineira, destoando do restante do Brasil, mas infelizmente estará enganado. Basta um pouco de determinação na prática investigativa para descobrir outros destes episódios "anômalos".
Álvaro Pereira do Nascimento, em artigo publicado no ano de 2007, informa que o jornal A Tarde, de Salvador, trouxe aos leitores em 7 de fevereiro de 1923 matéria originada de uma denúncia de que jovens que satisfaziam "todas as condições exigidas pelas leis" não recebiam admissão na Escola de Aprendizes Marinheiros da Bahia "pelo simples fato de serem pretos". Emissários do periódico solicitaram esclarecimentos ao comandante da Escola, capitão de corveta Freire de Carvalho, que apontou os critérios empregados para a eliminação de candidatos, como analfabetismo e dentição precária. Por fim, o oficial definiu a queixa como improcedente, pois havendo mais candidatos do que vagas a escolha cabia ao comando da instituição, para o qual "entre rapazes brancos e outros tantos pretos, é natural que sejam preferidos os primeiros¹".
Recupero hoje estas informações devido a uma casualidade. Procurando no programa de periódicos digitalizados da Biblioteca Nacional dados para viabilizar trabalhos de estudantes que fazem estágio no Museu Nacional, encontrei uma reportagem do jornal carioca A Esquerda datada de 5 de março de 1931, que reproduzo abaixo na íntegra.
O ministro Joaquim Barbosa, mineiro nascido em 1954, terminou o segundo grau em Brasília dentro da faixa etária recomendada. Não seria absurdo presumir, contudo, que para a maioria de seus conterrâneos negros da geração imediatamente anterior esta conquista constituiria uma proeza das maiores.
Suponho também que o comandante Freire de Carvalho não desconhecia a existência de intelectuais negros baianos como os engenheiros Domingos Sérgio de Carvalho (1866-1924) e Antônio Joaquim de Souza Carneiro (1881-1942) e o médico Juliano Moreira (1873-1932), todos seus contemporâneos. Entretanto, julgava que adolescentes "pretos", mesmo que comprovassem a condição de alfabetizados e tivessem todos os dentes intactos, não eram os aprendizes de marinheiro ideais.
A futura atriz Ruth de Souza, com dez anos em 1931, morava em Copacabana, na capital federal; por sorte não vivia do outro lado da Baía de Guanabara, mais especificamente no bairro niteroiense do Fonseca, onde sequer conseguiria cursar o primário.
Tendo em mira estas e outras narrativas, só podemos nos indignar quando um universitário de discurso conservador cujo ingresso no ensino superior dependeu da capacidade de seus pais de pagar a alta mensalidade de um curso pré-vestibular de ponta repete a desgastada ladainha: "Os negros não entram na faculdade porque não estudam. Ficam chorando como se ainda estivessem em 1888 ao invés de correr atrás das oportunidades". Pior é vermos certos intelectuais, enclausurados em luxuosos gabinetes e prestigiados nos circuitos editoriais, afirmando repletos de uma convicção calculada que os péssimos indicadores sociais dos negros se devem exclusivamente à má inserção de seus ancestrais na economia nacional após a Abolição e não a mecanismos racistas.
Quarenta ou cinquenta anos depois da Abolição, em algumas regiões possivelmente bem mais tarde, a sociedade brasileira ainda tinha como dado natural a exclusão parcial ou completa dos negros dos bancos escolares. Nisto, eles saíam amplamente desfavorecidos em comparação com os filhos dos imigrantes europeus pobres cujo exemplo de esforço não quiseram, segundo os panfletários elitistas, copiar. O Brasil sempre foi um país estruturalmente racista. Precisa admiti-lo, para começar a deixar de ser.
Referência:
1-Um reduto negro: cor e cidadania na Armada (1870-1910). In:
Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil/
Organizadores: Olívia Maria Gomes da Cunha e Flávio dos Santos Gomes. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 301/302