quarta-feira, 22 de maio de 2013

Para além da fábula da democracia racial

       

       Meu sogro Moacyr Fernandes Dias (1922-2012), natural de Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais, cursou quatro faculdades. Certo dia, para meu espanto, ele relatou que só conseguiu concluir o extinto Científico aos 22 anos, quando já morava no Rio de Janeiro e trabalhava como servente.  A explicação para o atraso não me surpreendeu tanto: os diretores dos colégios de seu município de origem davam preferência, por ocasião do período das matrículas escolares, às crianças brancas.  Depois, matriculava-se "quem fosse possível".  O sistema em vigor, evidentemente, não tinha amparo no ordenamento jurídico formal do país, mas fez com que o garoto Moacyr, na prática, estudasse ano sim, ano não, ficando exposto ao que hoje classificaríamos como uma grave defasagem idade-série. 
      Juiz de Fora, a antiga Santo Antônio do Paraibuna, estava longe de ser um grotão nos tempos do primeiro governo Vargas.  Em meados do século XIX, o progresso da cafeicultura já permitira a elevação da vila à categoria de cidade.  O quadro descrito diz respeito, portanto, a um centro urbano de proporções médias situado na segunda unidade mais populosa da federação. Talvez algum cínico alegue que me reporto a um caso particular, quem sabe uma anomalia social limitada à Zona da Mata mineira, destoando do restante do Brasil, mas infelizmente estará enganado.  Basta um pouco de determinação na prática investigativa  para descobrir outros destes episódios "anômalos".
      Álvaro Pereira do Nascimento, em artigo publicado no ano de 2007, informa que o jornal A Tarde, de Salvador, trouxe aos leitores em 7 de fevereiro de 1923 matéria originada de uma denúncia de que jovens que satisfaziam "todas as condições exigidas pelas leis" não recebiam admissão na Escola de Aprendizes Marinheiros da Bahia "pelo simples fato de serem pretos".  Emissários do periódico solicitaram esclarecimentos ao comandante da Escola, capitão de corveta Freire de Carvalho, que apontou os critérios empregados para a eliminação de candidatos, como analfabetismo e dentição precária.  Por fim, o oficial definiu a queixa como improcedente, pois havendo mais candidatos do que vagas a escolha cabia ao comando da instituição, para o qual "entre rapazes brancos e outros tantos pretos, é natural que sejam preferidos os primeiros¹". 
      Recupero hoje estas informações devido a uma casualidade.  Procurando no programa de periódicos digitalizados da Biblioteca Nacional dados para viabilizar trabalhos de estudantes que fazem estágio no Museu Nacional, encontrei uma reportagem do jornal carioca A Esquerda datada de 5 de março de 1931, que reproduzo abaixo na íntegra.   


   


         O ministro Joaquim Barbosa, mineiro nascido em 1954, terminou o segundo grau em Brasília dentro da faixa etária recomendada.  Não seria absurdo presumir, contudo, que para a maioria de seus conterrâneos negros da geração imediatamente anterior esta conquista constituiria uma proeza das maiores.
      Suponho também que o comandante Freire de Carvalho não desconhecia a existência de intelectuais negros baianos como os engenheiros Domingos Sérgio de Carvalho (1866-1924) e Antônio Joaquim de Souza Carneiro (1881-1942) e o médico Juliano Moreira (1873-1932), todos seus contemporâneos.  Entretanto, julgava que adolescentes "pretos", mesmo que comprovassem a condição de alfabetizados e tivessem todos os dentes intactos, não eram os aprendizes de marinheiro ideais. 
        A futura atriz Ruth de Souza, com dez anos em 1931, morava em Copacabana, na capital federal; por sorte não vivia do outro lado da Baía de Guanabara, mais especificamente no bairro niteroiense do Fonseca, onde sequer conseguiria cursar o primário.
        Tendo em mira estas e outras narrativas, só podemos nos indignar quando um universitário de discurso conservador cujo ingresso no ensino superior dependeu da capacidade de seus pais de pagar a alta mensalidade de um curso pré-vestibular de ponta repete a desgastada ladainha: "Os negros não entram na faculdade porque não estudam.  Ficam chorando como se ainda estivessem em 1888 ao invés de correr atrás das oportunidades". Pior é vermos certos intelectuais, enclausurados em luxuosos gabinetes e prestigiados nos circuitos editoriais, afirmando repletos de uma convicção calculada que os péssimos indicadores sociais dos negros se devem exclusivamente à má inserção de seus ancestrais na economia nacional após a Abolição e não a mecanismos racistas. 
         Quarenta ou cinquenta anos depois da Abolição, em algumas regiões possivelmente bem mais tarde, a sociedade brasileira ainda tinha como dado natural a exclusão parcial ou completa dos negros dos bancos escolares.  Nisto, eles saíam amplamente desfavorecidos em comparação com os filhos dos imigrantes europeus pobres cujo exemplo de esforço não quiseram, segundo os panfletários elitistas, copiar.  O Brasil sempre foi um país estruturalmente racista.  Precisa admiti-lo, para começar a deixar de ser.                
Referência:
1-Um reduto negro: cor e cidadania na Armada (1870-1910). In: Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil/ Organizadores: Olívia Maria Gomes da Cunha e Flávio dos Santos Gomes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 301/302         
        

terça-feira, 21 de maio de 2013

Ser de direita é...



Querer encarcerar por cinco anos o filho do porteiro que entrou na mercearia e escondeu uma lata de leite condensado na mochila, perdoando de pronto o filho do engenheiro que foi apanhado furtando gasolina dos carros dos vizinhos.  
 
Proclamar-se cristão conservador, mas flexibilizando bastante o princípio do "Não matarás" quando os mortos fizerem parte das "classes perigosas",  entendidas em sentido bem generoso.

Ser saudosista de épocas em que supostamente cada um sabia o seu lugar, jamais questionando quais eram os índices de analfabetismo, cobertura médico-sanitária e mortalidade infantil dos tempos idealizados.

Detestar o cinema nacional pela tendência de exibir cenas realistas de pobreza, sujeira, criminalidade e consumo de drogas, preferindo produções hollywoodianas em que "mocinhos" tentam consertar o mundo ao arrepio da lei dirigindo por quilômetros na contramão e atirando em dezenas de pessoas. 

Discursar com autoridade sobre as características meritocráticas do mercado de trabalho e dos antigos sistemas de admissão no ensino superior, mesmo conhecendo desde a infância todos os mecanismos de concentração de renda e saber vigentes numa sociedade com Índice de Gini pornográfico.   

Considerar-se um arauto da modernidade por defender o quase tricentenário laissez-faire e julgar conveniente o retorno dos castigos físicos e das aulas de Moral e Cívica nas escolas. 

Pelo menos uma vez por semana anunciar aos incautos os riscos do "comunismo do governo Dilma", sem se dar conta do quanto é ridículo conceber, ainda que por poucos instantes, que conservadores ferrenhos como Michel Temer e Guilherme Afif Domingos fariam parte de um governo comunista. 

Conferir status de liberdade de expressão às mais toscas manifestações de preconceito contra gays, nordestinos e favelados, declarando na mesma conversa que as cenas de adultério e corrupção das novelas noturnas devem ser censuradas.   

Pregar cortes nos programas sociais a título de responsabilidade fiscal e injuriar compulsivamente qualquer um que se mostre contrário a um inchaço do aparato repressivo.

Aplaudir as restrições à imigração impostas por governos europeus, mesmo tendo amigos e conhecidos que ao fazer turismo já foram tratados como bandidos em aeroportos dos países mais falidos daquele continente. 

Desejar a morte do batedor de carteira que lhe roubou trinta reais e admirar o banqueiro que lhe toma a mesma quantia a cada mês apenas pela manutenção de uma conta corrente. 

Proclamar a necessidade de cópia de toda e qualquer medida de governo adotada nos países anglo-saxônicos, desde, é claro, que não resulte na ampliação dos direitos sociais ou trabalhistas. 

Acreditar em todos os enredos sobre self-made men que começaram a vida vendendo fichas de orelhão e picolés e se tornaram donos de companhias aéreas e seguradoras, fazendo questão de ignorar os relatos sobre suborno de autoridades, grilagem, tráfico e lavagem de dinheiro que com boa frequência estão associados às "fortunas repentinas". 

Negar com convicção a existência do racismo, mas tendo sempre na ponta da língua o argumento de que "O maior racista de todos é o próprio negro".

Presumir que todos os moradores de bairros periféricos são suburbanos ignorantes e cafonas, ainda que seus pais e avós tenham nascido e sido criados nos subúrbios.

Dizer-se democrata e idolatrar sem disfarce os políticos do tipo viúva da ditadura, bem como os demagogos que vez por outra gritam que é preciso fechar o Congresso. 

Escandalizar-se ao ouvir que mil índios são donos de vinte mil hectares de terra em um estado amazônico de baixa densidade demográfica e achar normal que um só fazendeiro possua cinquenta mil hectares em outra região bem mais povoada, derrubando toda a vegetação nativa para plantar soja e mantendo na propriedade mais tratores do que homens. 

Ler a revista Veja como se fosse uma Bíblia e considerar todas as obras acadêmicas da área de Humanas um amontoado de mentiras subversivas inventadas por doutrinadores perversos.

Defender o endurecimento das leis penais em geral, porém rejeitando o fim do estatuto da prisão especial para os portadores de diploma de nível superior, que em tese têm mais oportunidades de ganhar dinheiro sem delinquir.

Tirar férias nos Estados Unidos e ficar com medo dos cubanos pobres em Miami, desprezar os porto-riquenhos em Nova York e achar que Los Angeles está infestada de mexicanos, mesmo sendo bem mais parecido com estas pessoas, na aparência física e na conta bancária, do que com os americanos WASPs.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Mais um Petruso obtuso


     
       A estudante de Direito Mayara Petruso, adepta de José Serra na eleição presidencial que acabara de ocorrer, postou em seu Twitter em fins de 2010 uma mensagem agressiva contra os nordestinos, a quem atribuía a vitória de Dilma Rousseff naquele pleito. O fato lhe valeu um processo criminal, ao fim do qual a jovem paulista chegou a ser condenada a pouco menos de um ano e meio de prisão, pena depois convertida em multa e prestação de serviços comunitários.
     O episódio alcançou uma repercussão midiática poucas vezes vista em situações desta natureza, que não raro são ignoradas por completo.  Qualquer brasileiro que viva no país real é capaz, sem muito esforço, de identificar em seu cotidiano diversas manifestações, com variados graus de gravidade, de discriminação contra pessoas originárias de determinadas regiões.  Não podemos, entretanto, admitir a naturalização deste tipo de conduta, cujos efeitos são prejudiciais para toda a sociedade. 
     Percorrendo as redes sociais, encontrei há dois ou três dias um bizarro site produzido pelo indivíduo que se esconde por trás do fake Kruegger contra esquerdopatas.  Bem nos moldes de uma certa direita contemporânea, ele mistura em confusas postagens discursos conservadores de colunistas famosos e observações próprias, generosamente recheadas de impropérios, erros gramaticais e ortográficos e sentenças absurdas como a referência a um "Sudão comunista".
      Não lhe nego os direitos de ser reacionário, de brigar com a língua pátria e de surtar.  Porém, Kruegger vai além disto e pratica delitos cibernéticos, difundindo mensagens políticas que ferem a Constituição em pelo menos dois pontos: ele estimula as populações de cinco estados ao separatismo e sugere um levante armado como recurso para alcançar tal objetivo.  Em seu delírio, divide o Brasil em três futuros países independentes, desenha bandeiras alternativas para os Estados Unidos do Sul que pretende fundar e não economiza em alusões grosseiras e insultos dirigidos aos naturais dos estados "vermelhos", em particular contra os nordestinos.  O estilo direto e na verdade simplório de Kruegger dispensa maiores explicações.  Apresento um conjunto de amostras a partir deste único link:                  
      



   Para denunciar estes crimes, basta acessar o link da Polícia Federal    http://denuncia.pf.gov.br/, colar o endereço da matéria http://averdadequeamidianaomostra.blogspot.com.br/2011/02/movimento-separatista-dos-estados-do.html e preencher no campo "Comentário" os motivos da comunicação.  Eu deixarei a seguinte mensagem: 
   A página contém incitação ao separatismo dos estados do Sul do Brasil, inclusive admitindo a possibilidade de um movimento armado, e difunde ódio e desprezo contra nordestinos, nortistas e mineiros.  

    Talvez alguém diga, e eu não duvidaria, que se trata de um analfabeto funcional com evidentes problemas psicológicos.  Mas o que é o Mein Kampf de Hitler senão a coletânea de milhares de baboseiras de um desequilibrado que atingiu milhões de adesões? O fake Kruegger já conseguiu  centenas.       
Impeçamos de pronto o surgimento de um novo Silvio Koerich! Precisa-se de poucos cliques.

     

quinta-feira, 9 de maio de 2013

A culpa é do português?



     A Companhia Holandesa das Índias Orientais enviou, em 1652, três navios para a região do Cabo da Boa Esperança, que trouxeram pouco mais de cem homens e quatro mulheres.  Eles deveriam construir uma estação de repouso, destinada a abastecer os navios batavos de frutas, legumes, verduras e carne.  Logo despontou o problema da mão de obra.  Os colonos não tinham estímulo para cavar o solo com as próprias mãos em benefício de uma empresa interessada em pagar o preço mais baixo possível.  Os hotentotes, nativos daquela parte da África, aceitavam prestar certos serviços, mas eram pastores seminômades e rejeitavam a enxada.  Como a Companhia proibia sua escravização, os primeiros administradores do Cabo, Jan van Riebeeck e Zacharias Wagenaar, providenciaram a vinda de cativos da África Ocidental e de Angola, além de indianos e indonésios.  
      Por volta de 1700, havia 800 escravos, considerados propriedade da Companhia das Índias Orientais ou dos burgueses livres (denominação atribuída aos colonos livres de contrato com a empresa).  As primeiras fugas ocorreram imediatamente após os primeiros desembarques.  Os holandeses acusavam os hotentotes de dar abrigo aos fugitivos e passaram a tomar alguns deles como reféns para forçar possíveis devoluções.  Os nativos, então, se viram forçados a perseguir os escravos que escapavam, dos quais se tornaram adversários. 
       Aprendendo com os hotentotes a criar o gado solto, ao contrário do que acontecia na Holanda, alguns colonos se livravam do rígido controle econômico exercido pela Companhia, que impunha os preços dos gêneros produzidos.  Entretanto, corriam graves riscos.  Os que fossem apanhados descumprindo as regras estavam sujeitos ao açoite, aos trabalhos forçados e a torturas, como ter as mãos presas a uma árvore com pregos.  Havia pena de morte na forca, fuzilamentos e afogamentos na praia.  A opressão levou 42 pessoas a retornarem à Holanda em 1660, ingressando como clandestinos num navio de passageiros.  A população europeia também crescia lentamente: os brancos do Cabo não chegavam a seiscentos em 1672, entre os quais apenas 64 colonos livres, 39 deles casados.
       Enquanto isso, os hotentotes que lutaram contra os holandeses de 1658 a 1660 tinham perdido todo o seu gado, ou quase.  Parte deles retornou à condição de caçadores/coletores.  Alguns aceitaram se transformar em pastores nas terras dos colonos, que empregavam suas mulheres como domésticas.  Outros ainda migraram nos sentidos norte, nordeste e leste, entrando em choque com os bosquímanos. A embriaguez e a vadiagem se enraizaram entre os nativos².     
                  
                                                                         (...)

      O início do povoamento da Austrália por europeus, em 1787, esteve relacionado à intenção, por parte das autoridades britânicas, de se livrar de parcelas da população inglesa que consideravam indesejáveis.  Somente em Londres, no reinado de Jorge III, o número de criminosos girava em torno de 115 mil.  Com a intensificação das campanhas humanitárias, as execuções, que antes poderiam atingir qualquer delinquente que atentasse contra a propriedade privada, escasseavam.  As prisões ficavam abarrotadas com os ladrões capturados aos milhares pelo Exército e pela Marinha.  Como não era mais viável transferir este contingente para a América do Norte, surgiu a ideia de mandá-lo para a terra dos cangurus e coalas, no fim do mundo. Entre os primeiros 733 prisioneiros embarcados, existiam 431 condenados por pequenos roubos e 44 ladrões de carneiros.  Quarenta e oito pessoas morreram na viagem de 252 dias, na qual o escorbuto fez enormes estragos.  Na metrópole, outros 25 mil homens e mulheres aguardavam na lista de espera.  
      O governador Philips chegou ao continente em 1797.  Calcula-se que a população aborígine, nesta época, estava na faixa de 300 a 400 mil.  Um século depois, restavam cerca de 10% deste total, e os remanescentes tinham sido expulsos para os territórios do Norte e do Oeste.  Como o trabalho na colônia, em tese, cabia aos condenados, os nativos eram considerados inúteis, não havendo interesse em "domesticá-los".  Os prisioneiros, por sua vez, viviam sujeitos à disciplina do açoite.  Seus filhos e netos, já misturados aos colonos vindos por vontade própria, continuaram a receber o tratamento destinado aos criminosos, sendo obrigados a recorrer às autoridades judiciárias para se emancipar.  Isto fez com que advogados e juízes figurassem com destaque entre os primeiros políticos da Austrália¹.

                                                                         (...)

       A tese de que a colonização do Brasil pelos portugueses arruinou qualquer possibilidade de futuro promissor para o país alcança há várias gerações enorme popularidade entre uma determinada categoria de sociólogos, antropólogos e historiadores de botequim.  O discurso comporta variantes, mas pode ser resumido em versão básica num punhado de frases: "Portugal sempre foi um dos países mais atrasados da Europa, com um povo que nunca teve iniciativa. Para piorar, só mandaram para cá bandidos, dominaram gente ainda mais atrasada, de mentalidade tribal, e implantaram a escravidão.  Começando com uma mistura destas, nada pode dar certo".
       É óbvio que tal visão resulta de diversos preconceitos e bastante ignorância.  Seria fácil comprovar que todas as demais nações europeias colonizadoras, ao menos em seus domínios tropicais, fizeram uso de diversos sistemas de trabalho compulsório.  Também abundam exemplos de que vários reinos tidos como civilizadíssimos despejaram parte de sua massa carcerária no Novo Mundo.  Uma crônica deste tipo talvez começasse com o célebre Villegaignon incorporando centenas de detentos tirados dos calabouços franceses à expedição fundadora da França Antártica.  Invertendo o sentido da investigação, organizaríamos igualmente uma base de dados para demonstrar em definitivo que, além dos numerosos degredados que de fato foram trazidos para a América Portuguesa, todos os demais segmentos da população lusitana estiveram representados na sociedade colonial.  Poderíamos alegar ainda que nada permite julgar que os  milhares de cristãos novos desterrados na costa brasileira apenas por suas práticas judaizantes, supostas ou comprovadas, seriam colonos necessariamente piores do que os peregrinos do Mayflower, a não ser que se parta do mais descarado racismo.
       Todavia, não estamos diante de um debate acadêmico, e sim da desconstrução de uma mitologia, tarefa que tende a ser espinhosa.  Independente de quem o criou e dos propósitos a que serve, um  mito histórico persistente é um elemento em que muitos querem acreditar.  Fornece explicações rápidas para realidades complexas, cuja compreensão demandaria esforços intelectuais consideráveis.  Sua força se baseia na repetição exaustiva e na adesão emocional dos que repetem, muito mais do que em algum trabalho escrito visando a comprovação factual.  Contra o adepto fervoroso da máxima "o português foi o pior colonizador", pouco valeria uma exposição sobre a natureza invariavelmente exploratória de todas as colonizações e as mazelas impostas a dezenas de países por seus antigos dominadores espanhóis, franceses, holandeses ou ingleses, nisto incluídos os episódios que ilustram o início desta postagem.  Ele se sente confortável crendo que pertence a uma espécie de Terceiro Mundo compulsório e taxará de estúpido quem discordar, mesmo que lhe falte qualquer argumento consistente para sustentar o que afirma. 
       Preciso deixar claro, sobretudo para o leitor de primeira viagem, que esta matéria não é um panfleto ufanista de linha freyriana elaborado para noticiar à humanidade as  antigas maravilhas da América Portuguesa.  Muito menos uma banalização das perseguições religiosas e das relações escravistas promovidas pelos portugueses a partir da constatação de que estas práticas foram a regra geral na Idade Moderna.  O que me inquieta, no essencial, são os desdobramentos políticos do discurso.
       Os propagandistas do que já foi chamado de "racismo contra", quando passam recibo do que entendem como a inferioridade crônica e permanente dos brasileiros, derivada da colonização retrógrada e das matrizes étnicas desfavoráveis (em regra se auto-excluindo dela por razões nebulosas), aderem de maneira explícita ou velada a uma proposta de tutela.  Sendo o próprio conceito de "inferior" um dado subjetivo que implica obrigatoriamente em comparações, eles se voltam de maneira infalível para os modelos que elegem como superiores.  O Brasil atrasado e seu povo incorrigível precisam, desta forma, funcionar sob a batuta do bloco que nossos jornais do século XIX qualificavam como "os países adiantados", que na verdade seriam os mesmos, talvez com poucos acréscimos. 
       A naturalização da inferioridade não se atrela a um projeto político exclusivo: ela pode alimentar tanto um neofascismo quanto um liberalismo de retórica sofisticada ou um conservadorismo clerical.  Todavia, sempre conduz a duas orientações: a rejeição a uma política externa independente e, no âmbito interno, a aceitação passiva de um status quo no qual uma pequena minoria com pretensões de superioridade nos mais variados campos exerce a direção sobre um povo tido alternadamente como infantilizado ou perigoso.  
       Cabe à esquerda brasileira, sobretudo, a destruição do mito, profundamente irracional e sem fundamentação, mas extraordinariamente vivo e operacional.             
        

Referências:
1- Marc Ferro.  História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX.  São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 177 a 181.  
2- Alberto da Costa e Silva.  A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002, p. 765 a 770.                                                                    
       

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Os esquerdistas arrependidos e o espírito de Thiers

                            Caricatura de Louis Adolphe Thiers publicada em Le Charivari, edição de 2 de junho de 1833 

      Louis Adolphe Thiers (1797-1877), primeiro-ministro da França durante o reinado de Luís Felipe e mais tarde presidente da República Francesa, é citado com propriedade como um dos principais nomes do liberalismo europeu no século XIX.  Entre seus serviços à ordem burguesa, sobressai o comando da repressão à Comuna de Paris, proclamada em março de 1871.
     O historiador Maurice Agulhon nos revela, entretanto, que Thiers começou sua carreira política na esquerda.  Ele foi um dos fundadores, às vésperas da Revolução de 1830, do jornal Le National, dirigido por Armand Carrel e depois por Armand Marrast, cuja linha era decididamente republicana.  Apesar das posições moderadas que o deixavam mais próximo de um liberalismo avançado do que do socialismo, o periódico pregava a liberdade de associação para os operários como meio de reduzir as injustiças sociais e unia forças aos monarquistas de centro-esquerda na defesa de reformas no sistema eleitoral¹.
       Todavia, diante dos conflitos sociais ocorridos em seu país no ano de 1848, Thiers mudou drasticamente de atitude, derivando para a direita.  A natureza desta conversão ficou explícita na sentença "Atiremo-nos nos braços dos bispos, só eles podem nos salvar".  Thiers assumia a ultrarreacionária perspectiva da instrumentalização do sentimento religioso como mecanismo de contenção das "classes perigosas" e da difusão dos princípios socialistas.  Em seguida,  ingressava no governo conservador encabeçado por Failloux, de tendências monarquistas e clericais.  Seria um dos formuladores da lei de Parieu, promulgada em 1850, que colocava os professores sob a fiscalização de autoridades administrativas que poderiam demiti-los caso considerassem suas ideias nocivas². 
         Cada vez que me deparo com o nome de Thiers, o que ocorre com significativa regularidade em minhas pesquisas sobre o século XIX, sou levado a pensar nos numerosos políticos e acadêmicos brasileiros que, originários das fileiras comunistas, socialistas ou trabalhistas, migraram para o neoliberalismo ou aderiram a alguma das diversas "seitas" conservadoras da contemporaneidade.  Muitos deles, certamente, descreverão o deslocamento ideológico como fruto de um amadurecimento intelectual.  Outros talvez façam referência às desilusões experimentadas por ocasião do desmoronamento do extinto bloco soviético.  Um terceiro grupo, no qual poderíamos incluir bem mais de um elemento notável, suavizou as ideias em troca de volumosos patrocínios às suas carreiras no Poder Executivo, de participações especiais em programas de privatização de empresas estatais ou ainda do ingresso privilegiado em circuitos editoriais.
          Apesar das nuances apresentadas, não desdenharei da sinceridade de nenhum destes convertidos.  Tenho visto muitos deles persistindo em profissões de fé impopulares, sendo fiéis a partidos e candidatos continuamente derrotados e dando mostras de verdadeiro pânico ao menor sinal de avanço dos movimentos sociais.  Mas este quadro também me recorda um antigo diálogo que li a respeito do falecido jornalista Paulo Francis.  Um dos interlocutores se referiu à transformação do célebre opositor da ditadura em histérico direitista.  Recebeu resposta desconcertante: não teria havido qualquer transformação, pois Francis sempre fora elitista, racista e deslumbrado com a "Corte" (os Estados Unidos).
             Minha opinião sobre a maioria dos esquerdistas arrependidos do Brasil não é muito diferente.  São indivíduos que com sua capacidade intelectual, não raro invejável, distinguiram na juventude o caráter perverso da sociedade em que viviam e alimentaram desejos de mudança.  Contudo, jamais efetuaram um autêntico rompimento emocional com as hierarquias tradicionais que um dia pretenderam combater.  O socialismo que idealizaram se concretizaria com a adesão do operariado, do campesinato e dos trabalhadores informais aos valores, opiniões e gostos de seu radicalismo romântico de classe média.                  
             Vendo esgotados determinados projetos de poder à esquerda e sob o fogo de um reagano-thatcherismo aparentemente irresistível nos anos 80 e 90, buscaram o conforto possível no seio de uma burguesia que nunca quiseram de fato destituir.  Hoje, vemo-los com frequência alinhados com teses de inegável teor fascista e postulando medidas de controle social das mais truculentas, embora às vezes sequer se definam como direitistas.  Têm horror à mera suposição de que o povo do qual se arvoravam em porta-vozes possa vir a ocupar mais espaços decisórios, afirmar  com orgulho seus costumes e sua estética, votar com autonomia em defesa de seus interesses imediatos ou, o que seria pior, definir interesses de médio e longo prazo. 
              Esquerdistas arrependidos têm o dom de me irritar, bem além do que conseguiria um fascista sem disfarce ou um conservador rançoso.  Meu juízo sobre eles se assemelha ao de Maurice Agulhon sobre o velho estadista francês:

"Mas Thiers não era um espírito forte, e o ano de 1848 realmente o assustara".         
                                                 

Notas:
1- Ver 1848: o aprendizado da República.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 26/27.
2- Idem, p. 146-147.