terça-feira, 30 de julho de 2013

Mídia sem Máscara: novas pérolas do humor involuntário

Em 22 de agosto de 2012 a Editoria MSM se queixou de um suposto bloqueio praticado pelo Google.
         

    Apesar da preferência por temas mais sérios, constato que uma postagem humorística de um ano atrás sobre o site Mídia sem Máscara (http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/07/a-extrema-direita-ridicula-mais-uma.html) vem recebendo nas últimas semanas um número inesperado de visitas.  Nada acrescento à breve definição que fiz da página em 2012.  Entretanto, sou obrigado a reconhecer em seus redatores um fantástico esforço de superação, que tem resultado na produção de teses cada vez mais divertidas.  Aliás, tudo seria mais engraçado se aquela equipe multidisciplinar (contenham o riso!) não obtivesse eco em diversas comunidades das redes sociais, em regra organizadas por universitários crentes de que a qualquer momento poderão ser presos, assaltados, estuprados, mortos e incinerados por hordas de comunistas raivosos, precursoras de um tal Governo Mundial.
          Sei que não faltará quem me critique por insistir na provocação aos "coxinhas" e que alguns deles, como é de costume, despejarão nos comentários impropérios que lhes custarão centenas de batidas no teclado e a mim somente uma per capita para deletar.  Mas, além das gargalhadas, este tipo de excursão revela o que faz de nós, adversários dos projetos oligárquicos de sociedade, diferentes deles.  A começar pelo nível de sanidade mental.                 
         Iniciemos com Olavo de Carvalho.  O ex-astrólogo ex-esquerdista reapresenta sua fábula do Obama comunista e patrocinador do terrorismo islâmico, agora adicionando o que ignorávamos: o mundo inteiro já sabe!


Paulo Briguet anuncia ao reino das olavetes seus dons de profeta (!) e outras habilidades presumidamente escassas no terreno do humor.


Leonardo Bruno, sempre querendo marcar posição à direita, define as multidões de manifestantes  de junho e julho últimos como "a ralé", como se fosse um Oliveira Lima ou mesmo um Paulo Francis com paralisia cerebral. Depois, obedecendo à natureza, pratica mais um atentado contra o idioma.    



Pires corre o pires: Klauber Cristofen Pires expõe sua carência de verbas, livros, hospedagem no Sul Maravilha e boi picado.


Robson Oliveira "atualiza" parte da argumentação pseudomoralista usada na Revolta da Vacina (http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolta_da_Vacina) e anuncia a campanha contra o vírus HPV como uma medida escusa (talvez libidinosa) que possivelmente estimulará crianças de dez anos a fazerem sexo alucinadamente. 


Felizmente, temos Heitor de Paola para ensinar que os bolcheviques, já no poder em Moscou desde o fim do ano anterior, assinaram o Tratado de Brest-Litovsky com a Alemanha para retirar o Império Russo (!) da Primeira Guerra.


Poucos dias antes, o inspirado articulista já advertia que os seis mil médicos cubanos dispostos a vir para o Brasil eram na verdade guerrilheiros disfarçados.  O que Asclépio, podendo se apresentar aos pobres mortais,  receitaria para ele? 



Milton Simon Pires parece inteiramente convencido de que Dilma Rousseff desconhece de fato o que é um médico residente e explica com mau humor.



Conforme Ricardo Puentes Melo, Alvaro Uribe escolheu o "castrista" Juan Manuel Santos como seu sucessor na presidência da Colômbia a despeito do fato de que o segundo acabará por favorecer o assassinato do primeiro.



Fabio Blanco mostra todo seu desespero ao refletir sobre a "ditadura do pensamento" e dá a entender que somente o fim do mundo conhecido pode resolver o problema.



Segundo Julio Severo, o deputado Carlos Bezerra Júnior, evangélico e líder do PSDB (!) na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, é marxista.  



Compartilhem e comentem sem moderação.  Humoristas, inclusive os involuntários, desanimam quando perdem Ibope.

Obs: Leonardo Bruno gosta de espalhar a fantasia de que é odiado por mim.  Para provar que se engana, ofereço uma informação valiosa: existe na Universidade Federal do Pará um curso de português para estrangeiros:
http://noticias.orm.com.br/noticia.asp?id=323541&|ufpa+oferece+curso+de+portugu%C3%AAs+para+estrangeiros#.UfgN5dI3uVM
Matricule-se, é de SUMA importância!

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O tráfico enobrecido



Nossa realeza foi uma pobre filha do acaso e do medo dum poltrão que fugiu aos franceses e veio rolando... rolando até aqui... Nossa aristocracia nunca existiu e, quanto muito, numa parte, essa suposta nobreza seria oriunda de traficantes negreiros, de reinóis, de lapidadores, de antigos empregados pouco escrupulosos da metrópole, e, noutra parte, feita outro dia à mão pelos dois imperadores...
(Silvio Romero.  Realidades e ilusões no Brasil: Parlamentarismo e presidencialismo e outros ensaios; seleção e coordenação de Hildon Rocha.  Petrópolis: Vozes; Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1979, p. 297-298)

    Pode-se discordar, e muito, das teses de Silvio Romero (1851-1914), um polemista que frequentemente assumiu posições autoritárias e racistas.  O trecho que abre esta postagem, entretanto, deve ser saboroso para quem, como eu, rejeita por inteiro os sistemas baseados na hereditariedade do poder e a noção de que as massas precisam ser dirigidas pela gente bem nascida. Ressalto nele um aspecto em particular: não escapou a Romero, homem formado intelectualmente durante o Segundo Reinado, a evidência de que muitos traficantes de escravos desfrutaram de elevado status e de privilégios estatais e paraestatais no regime monárquico.  A leitura do parágrafo transcrito, cuja existência ignorava há poucas horas, me remeteu de pronto à lista, elaborada por Manolo Florentino, dos "mercadores de almas" em atividade na praça do Rio de Janeiro entre 1811 e 1830.       

                  

                              Ver Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 254 a 256.

         Embora muitos destes nomes sejam bastante familiares, circunstâncias de tempo me impedem de efetuar um levantamento completo sobre as posições que ocuparam na sociedade imperial, tarefa que bem executada tenderia a resultar em excelente (e gigantesco) livro.  Uma breve pesquisa, todavia, é suficiente para ratificar a opinião de Silvio Romero. Mesmo deixando de lado aqueles que, como Elias Antônio Lopes, doador da Quinta da Boa Vista ao regente D. João, morreram antes da Independência do Brasil, percebemos facilmente a ascensão social de notórios traficantes. Entre eles, houve vários barões.  
  
[José] Fernando Carneiro Leão- Barão de Vila Nova de São José em 14 de outubro de 1825.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_Vila_Nova_de_S%C3%A3o_Jos%C3%A9

Amaro Velho da Silva- Barão de Macaé em 12 de outubro de 1826.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_Maca%C3%A9

João Rodrigues Pereira de Almeida- Barão de Ubá em 12 de outubro de 1828.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_Ub%C3%A1 

Antônio Clemente Pinto- Barão de Nova Friburgo em 28 de março de 1854.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_Nova_Friburgo

Ver Lista de baronatos do Império do Brasil:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_baronatos_do_Imp%C3%A9rio_do_Brasil


         D. Pedro I, tal como seu pai, concedeu a comenda da Ordem de Cristo, da dinastia reinante, a muitos negociantes de escravos.  Pelo Diário do Rio de Janeiro de 8 de abril de 1823 vemos José Luiz da Motta e o já citado Fernando Carneiro Leão ostentando este título.



       O traficante Diogo Gomes Barroso foi provedor da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro entre 1826 e 1827.  Identificamos também que seus parentes Antônio e João estiveram na mesma posição durante o período joanino.
http://www.santacasarj.org.br/h_provedores.htm


        Através da consulta a um trabalho de sólida fundamentação bibliográfica, achamos dois integrantes da lista de Florentino, Lourenço Antônio do Rego e Francisco Pereira de Mesquita, recebendo sesmarias na região fluminense de Valença.  O primeiro também detinha a patente de coronel, provavelmente das Milícias.
http://www.institutocidadeviva.org.br/inventarios/sistema/wp-content/uploads/2009/11/5_santa-barbara.pdf


        Mais um traficante, Guilherme Midosi, participou, escolhido pelo governo, da comissão que redigiu o primeiro Código Comercial brasileiro.
http://www.ebah.com.br/content/ABAAAfoE8AI/curso-direito-comercial-volume-i-rubens-requiao?part=2
A Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação desde logo resolvera encarregar Silva Lisboa de organizar o Código de Comércio. A iniciativa recrudesceu em 1832, quando a Regência nomeou uma comissão de comerciantes, como era de bom-tom, composta por Antônio Paulino Limpo de Abreu, José Antonio Lisboa, Inácio Ratton, Guilherme Midosi e Lourenço Westin, este cônsul da Suécia, para elaborar um projeto de Código Comercial. Essa comissão, presidida por Limpo de Abreu e depois por José Clemente Pereira, desincumbiu-se do encargo, tendo sido o projeto enviado à Câmara em 1834.

     Volto ao Diário do Rio de Janeiro, edição de 4 de outubro de 1836.  O traficante Antônio Tavares Guerra é votado por 805 pessoas, tornando-se eleitor de segundo grau da freguesia de Santa Rita, da Corte, apto a escolher deputados e senadores.




          Um "colega de profissão", José Ignácio Vaz Vieira, chegou ao posto de vice-presidente da província do Rio de Janeiro, que administrou de fato no ano de 1837.
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u816/000001.html
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u816/000063.html


         José Bernardino de Sá, feito Barão de Vila Nova do Minho em Portugal, no Rio de Janeiro foi  secretário graduado e irmão definidor da Ordem de São Francisco de Paula, conforme seu registro de falecimento em 1855: 
http://www.cbg.org.br/baixar/cemiterio_catumbi_4.pdf

         Estas informações, que com mais alguns dias de buscas certamente se multiplicariam, ferem mitos caros aos conservadores: o da supremacia moral das elites, o do Império como Idade do Ouro e o da inatacável honestidade dos "antigos".  Temos, portanto, bons motivos para difundi-las.    






segunda-feira, 22 de julho de 2013

Outros motivos para um otimismo à esquerda


        
        Construí na postagem do último dia 17 um quadro ilustrativo dos avanços do princípio da igualdade nos últimos dois séculos.  Utilizei como método a apresentação de posições extremas que as forças reacionárias podiam sustentar em tempos mais ou menos recentes.  Seguindo percurso diferente, mas direcionado ao mesmo ponto de chegada, hoje trago um painel sobre o contorcionismo retórico ao qual se submetem os partidos de direita no intuito de se conservar como opções de governo.
          Longe de recorrer ao argumento da "morte do socialismo real" para sustentar teses de um conservadorismo autoritário e legitimador das hierarquias de classe, gênero e etnia, os direitistas  eleitoralmente viáveis apelam sem cessar aos valores iluministas e à manutenção de direitos sociais para não afugentar os votantes.  A ambiguidade se estende aos próprios nomes destes partidos, que por vezes parecem se diferenciar da esquerda somente pelo destaque conferido à "livre iniciativa". 
          Não direi, é claro, que a direita absorve fragmentos de socialismo para sobreviver.  Sei o quanto  uma declaração de intenções pode ser distorcida ou simplesmente abandonada após a vitória nas urnas.  Porém, não deixa de ser muito significativo que, em uma conjuntura de forças bastante favorável, conservadores e liberais adotem discursos tão defensivos, quiçá evasivos.                     

             O partido francês Union pour un Mouvement Populaire, ao qual se vincula o ex-presidente Nicolas Sarkozy, traz em sua carta de princípios uma proposta de cidadania plena para todos, não importando a origem, a posição social ou a trajetória de vida dos indivíduos.  Em passagem que poderia ser subscrita por qualquer social democrata, os herdeiros dos antigos gaullistas clamam por uma globalização com face humana.  

http://www.u-m-p.org/notre-parti/nos-valeurs


           Os partidários de Sarkozy não se atrevem a contestar o direito de todos aos serviços públicos, e pregam que os assalariados devem ter voz ativa nas empresas privadas. 


         
          A UMP se declara ainda disposta a lutar contra a desigualdade de gênero e a preservar a laicidade como um valor essencial da República.



         O Partido Popular espanhol, não obstante as origens franquistas, vai além.  Seu programa para as eleições gerais de 2011 incluía, além da moderação, o reformismo.  A pretendida melhora da situação econômica do país é associada ao objetivo de "garantir educação, saúde e bem-estar para todos, sem exceção".  

http://www.pp.es/actualidad-noticia/programa-electoral-pp_5741.html


        Encontramos no mesmo documento uma firme denúncia da desigualdade de gênero, inclusive no aspecto salarial, e da violência contra a mulher.



        O descumprimento das metas ambientais do Protocolo de Kyoto também era alvo de ataques.  Os "populares" se dispunham decididamente a reduzir as emissões espanholas de carbono.





         Entre os princípios programáticos do Partido Social Democrata de Portugal, que concentra os votos da direita naquele país, foram inscritos a igualdade de oportunidades e o direito à diferença. 

http://www.psd.pt/?idc=27



          Embora tenha a intenção explícita de se distanciar do socialismo, o partido se aferra ao rótulo de social democrata, sendo em tese universalista e refratário à xenofobia.  




        Já o brasileiríssimo Democratas, em sua carta de princípios, parece lançar no lixo da História a herança do coronelismo e da ditadura civil-militar.  São defendidos os direitos das minorias, uma melhor distribuição de renda, a presença do Estado na promoção do desenvolvimento e o fortalecimento do sindicalismo, enquanto é criticada a ingerência política dos países mais ricos nos assuntos internos dos mais pobres.     

http://www.dem.org.br/wp-content/uploads/2011/01/Principios-do-Democratas.pdf




     Desta maneira, não é aceitável que as forças progressistas, no todo ou em parte, assumam uma postura derrotista. A direita faz manobras de recuo quando parcelas vastamente majoritárias dos recursos financeiros, militares e informativos do planeta lhe pertencem. Quanto não retrocederá, se os segmentos populares e a intelectualidade retomarem a contestação direta ao capitalismo em vinte, trinta ou cinquenta países?        


quarta-feira, 17 de julho de 2013

Bons motivos para um otimismo à esquerda

Escola itinerante do MST

   
        O período que se estende do final dos anos 1970 à primeira metade da década de 1990, abrangendo os ministérios chefiados por Margaret Thatcher no Reino Unido (1979-1990), os dois mandatos presidenciais de Ronald Reagan nos EUA (1981-1989) e a dissolução da União Soviética em 1991, frequentemente é comparado a um terremoto político do qual nenhuma fração da esquerda mundial pôde escapar. O triunfalismo neoliberal permitiu a um Francis Fukuyama, por exemplo, vender milhões de livros anunciando o que as classes médias conservadoras do Hemisfério Norte mais gostariam de ouvir: séculos de disputas sociais, econômicas e políticas estavam baixando à sepultura com a vitória definitiva do capitalismo e dos valores burgueses.
       Já me referi em outros textos ao derrotismo que dominou de pronto numerosos comunistas, socialistas e trabalhistas.  Não poucos marxistas reentraram em cena como fervorosos convertidos ao liberalismo, em alguns casos movendo guerra sem trégua contra seus antigos companheiros.  Outros optaram pela tática de trocar a crítica global do sistema pelo investimento em uma agenda mínima que poderíamos traduzir na fórmula "capitalismo com face humana". 
       Não tratarei hoje dos que "mudaram de lado" por conveniências como nomeações para cargos governamentais, nem dos que se resignaram a ver, em definitivo, as sociedades dominadas pelo empresariado como único mundo possível.  Pretendo convidar os "desanimados", assim como os que não possuem recordação direta daqueles processos, a algumas reflexões baseadas na História.           
       O reagano-thatcherismo, sem dúvida, trouxe diversos efeitos danosos aos setores progressistas no mundo inteiro: enfraquecimento do sindicalismo, erosão de direitos sociais e trabalhistas, asfixia dos movimentos de libertação antioligárquicos, retomada do moralismo conservador em suas versões mais intolerantes e hipócritas.  Entretanto, devemos considerar que os avanços sociais nunca seguiram uma lógica linear: o ciclo revolucionário iniciado em 1789 desembocou, após as guerras napoleônicas, na ultrarreacionária política da Santa Aliança; o sufrágio universal conquistado pelos franceses em 1848 logo sofreu limitações em prejuízo dos mais pobres e não deixou de abrir caminho para o caricato império de Napoleão III; a vitória do abolicionismo na Guerra de Secessão (1861-1865) foi sucedida, após o fim da administração militar nortista, de violentas restrições aos direitos dos negros norte-americanos do Sul; a transformação dos socialistas italianos e dos comunistas alemães em alternativas reais de poder forneceu combustível para a ascensão de Mussolini e de Hitler; para cada Lumumba da Era das Descolonizações, houve um Mobutu na fase posterior.   
       As esquerdas, portanto, precisam abandonar a perspectiva imediatista, uma das características mais típicas e ao mesmo tempo mais estúpidas da pós-modernidade.  Nenhum historiador, até os dias atuais, se mostrou bom futurólogo, mas uma breve excursão pelos últimos dois séculos torna evidente que a tendência dominante no cenário mundial tem sido a expansão do igualitarismo, e não a consagração das aristocracias.  Nada nos prova que os retrocessos elitizantes podem ser mantidos.
      Percorramos  um punhado de estações, escolhidas com certa pressa entre um número de possibilidades virtualmente infinito: 


1-Há 172 anos (maio de 1841), um Alexis de Tocqueville (1805-1859) pregava abertamente, na Argélia ocupada por tropas francesas, a adoção de leis separadas para europeus e árabes:


"A fusão dessas duas populações é uma quimera que pode ser sonhada só por quem não conhece o lugar.  É, portanto, possível e necessário que na África haja duas legislações nitidamente distintas porque estamos diante de duas sociedades claramente separadas.  Quando lidamos com os europeus, absolutamente nada impede tratá-los como se fossem únicos, as regras elaboradas para eles devem ser sempre aplicadas unicamente a eles".
(citado em LOSURDO, Domenico.  Contra-história do liberalismo.  Aparecida: Ideias & Letras, 2006, p. 249)


2- Há 160 anos, traficantes ainda tentavam introduzir africanos escravizados no Brasil, mais precisamente no litoral da província vizinha à Corte, e escapavam das sanções judiciais:

"Também no desembarque de Bracuí, ocorrido em 1853 em Angra dos Reis, é possível descobrir o que ocorreu aos africanos livres apreendidos.  Os réus indiciados neste episódio foram absolvidos e o encarregado do inquérito se afastou do caso, que não teve maiores consequências do ponto de vista legal.  Os africanos apreendidos foram levados para a Casa de Correção da Corte e colocados sob a responsabilidade direta da Coroa".
(Ver RODRIGUES, Jaime.  O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil.  Campinas: Unicamp; Cecult, 2000, p. 190-191. 


3-Há 102 anos, o ministro brasileiro da Marinha, Joaquim Marques Baptista de Leão, em seu relatório publicado em maio de 1911, admitia explicitamente a existência de castigos corporais nas Forças Armadas do país.


4-Há 100 anos, o governo brasileiro ameaçava os imigrantes que atuavam no meio sindical, em regra espanhóis e italianos adeptos do anarquismo, com a expulsão do país.

"A multiplicação das greves, que já havia provocado a reação do governo nos anos subsequentes ao aparecimento da COB, levou as autoridades a constatarem que a presença do imigrante nas lideranças operárias era a razão para tamanha agitação.  Assim, nasceu a Lei Adolfo Gordo, em janeiro de 1913.  Por esta lei, os militantes operários de origem estrangeira seriam expulsos do país".
(Ver PENNA, Lincoln de Abreu.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 128)


 
5-Há 85 anos, as mulheres britânicas ainda precisavam lutar em várias esferas para exercer o direito de voto em sua plenitude.
"Também Lord Robert Cecil, indo em defesa do voto da mulher, culpou então o governo pelo atraso, mas o governo alegava ser cedo para uma modificação tão radical.  E os anos foram passando, os debates recomeçando; os adeptos aumentaram, a diferença de idade não fora mais exigida, a não ser por minoria, havendo como defensor o próprio Lord Chanceler e culminando com o voto favorável e o assentimento real em 2 de julho de 1928.  As mulheres obtiveram o direito de voto aos 21 anos".
(Ver RODRIGUES, João Batista Cascudo.  A mulher brasileira: direitos políticos e civis.  Brasília: Senado Federal, 1993, p. 45)

6-Há 66 anos, sob um regime constitucional que admitia eleições para todos os níveis do Executivo e do Legislativo, o governo Dutra podia banir arbitrariamente os comunistas do cenário político formal.

"A verdadeira cruzada contra o comunismo teve seu início já em 1946, quando em abril o governo, com o apoio dos pelegos, suspendeu as eleições sindicais, numa clara demonstração de que não toleraria o avanço dos comunistas do movimento sindical.  Além disso, impugnou o registro do MUT, intensificando a repressão nas ruas, com extrema violência policial, contra os trabalhadores.  Em 1947, cresce a pressão governamental contra o PCB, e em maio deste ano o partido foi declarado ilegal, tendo seus principais militantes passado a atuar na clandestinidade".
(Ver PENNA, Lincoln de Abreu.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 128)

7- Há 63 anos a dominação colonial direta ainda tinha defensores no campo diplomático e se estendia a enormes parcelas do planeta.  Neste mapa da África de 1950, notamos que só havia quatro países formalmente independentes: Marrocos, Libéria, Etiópia e África do Sul.

8- Há cinquenta anos foi possível que capitalistas em atuação na região amazônica brasileira promovessem o extermínio quase completo de uma população indígena e desfrutassem de impunidade total.
9- Há 44 anos, era inaceitável que um ator negro protagonizasse uma telenovela no Brasil.  A produção A cabana do Pai Tomás, exibida pela Rede Globo entre julho de 1969 e março de 1970, teve o personagem principal, um escravo norte-americano, vivido por um ator branco, Sérgio Cardoso (1925-1972), cuja pele foi toscamente pintada para as gravações.



10- Há 34 anos, Raul Fernando (Doca) do Amaral Street, depois de ter matado a tiros em dezembro de 1976 a socialite Ângela Diniz, com quem vivia há meses, era absolvido no primeiro julgamento apelando para a estapafúrdia tese da legítima defesa da honra.  Somente no segundo julgamento, em novembro de 1981, ele seria condenado a 15 anos de detenção. 


     Os ideólogos e publicistas de direita, sobretudo os mais cultos, não se iludem com o predomínio do capitalismo em quase todos os países ou com a força militar incontrastável da OTAN.  Eles sabem que a memória das vitórias dos operários e dos povos colonizados, em particular as ocorridas no século XX, está viva e à disposição de quem desejar buscá-la nas bibliotecas de concreto ou virtuais. Mais do que isto, têm plena consciência de que é praticamente impossível convencer as classes trabalhadoras que direitos obtidos nos parlamentos ou no calor das lutas de rua, à custa de seu sangue, são excessivos.  Sabem que seria mais fácil reconstruir a União Soviética do que fazer mulheres e negros retrocederem às posições sociais às quais estavam relegados há quarenta ou cinquenta anos. Em suma, são portadores de um pessimismo que por vezes assume uma feição histérica, mas na verdade é refletido e bem fundamentado.  Oponhamos a eles um otimismo também fundamentado, não só pelos ventos históricos, que mudam constantemente, mas também pela busca da igualdade e da justiça.               


sexta-feira, 12 de julho de 2013

Ser de direita é (segunda parte)



Compartilhar nas redes sociais todas as reportagens que façam alusão a falhas de caráter e deslizes na vida pessoal de líderes populares, sobretudo os que enfrentaram seus opressores pegando em armas.  Afinal, é extremamente perigoso que os pobres se inspirem em pessoas semelhantes a eles mesmos. 

Escandalizar-se com a proliferação de médicos cubanos nos demais países da América Latina e aplaudir a presença de bases navais e assessores militares dos Estados Unidos. 

Solidarizar-se com os movimentos xenófobos que anunciam com pesar a transformação da Europa em "Eurábia", mesmo sabendo que sem os imigrantes inúmeras categorias profissionais tenderiam ao desaparecimento naquele continente.

Afetar desprezo pela cultura acadêmica e protestar contra a influência de militantes e sindicalistas "sem estudo" na política nacional.

Ter fascínio por insígnias, comendas, brasões, bandeiras monárquicas e hinos repletos de palavras já fora de uso, mesmo estando longe de se enquadrar em qualquer modelo de aristocrata.  

Defender a exploração do trabalho e os mecanismos de concentração de renda e conhecimento como fatos "naturais" e imutáveis, ainda que saiba que estas relações são historicamente construídas e remodeladas praticamente a cada segundo.    

Tentar depreciar os pobres que se queixam das injustiças diárias que suportam como "vítimas profissionais" que não querem se esforçar para subir na vida.

Tentar depreciar as pessoas de classe média que não se calam diante das injustiças sofridas pelos pobres como uma esquerda festiva incapaz de abrir mão dos confortos proporcionados pela desigualdade social.  

Caso não seja possível negar o compromisso do esquerdista de classe média com os setores populares, xingá-lo de inimigo da civilização, da pátria ou da religião. 
 
Emocionar-se com as reportagens que enaltecem as organizações carcerárias privadas dos Estados Unidos, inclusive no que diz respeito à implantação de trabalhos forçados, e sonhar com o transplante do sistema para o Brasil, embora esteja longe de ignorar que a seleção do público-alvo obedecerá aos critérios discriminatórios de sempre e que os empresários do ramo criarão inúmeros artifícios para se apoderar de dinheiro público. 

Denunciar as propostas de criminalização da homofobia como tentativa de criar vantagens inaceitáveis, como se houvesse privilégio no fato de alguém sofrer ataques físicos ou morais só para depois ter o prazer de ver seu agressor castigado.

Lamentar o crescimento das colônias hispânicas e do uso do idioma espanhol nos Estados Unidos como se isto representasse uma "contaminação" da sua própria cultura.

Invocar chavões ancestrais sobre a "ignorância do povo" para justificar sua exclusão dos processos decisórios e simultaneamente classificar como desperdício o aumento dos investimentos nas escolas públicas.

Assistir pela quinta vez Indiana Jones e o templo da perdição torcendo com ardor para que o aventureiro mate uns cinco mil indianos.

Confundir democracia com capitalismo a ponto de apontar Médici e Pinochet como salvadores da ordem democrática, enquanto um governo socialista será sempre ditatorial, quando não "totalitário", pouco importando se contar com o apoio de 70% da população.

Especular, somente com os íntimos, como o Brasil seria melhor se aqui tivessem vigorado as leis norte-americanas Jim Crow ou mesmo o apartheid sul-africano. 

Chamar de comunistas todos os políticos que incluem questões sociais em seus discursos, mesmo que com atitude conciliatória e sem contestar os fundamentos básicos do capitalismo,  e tentar resguardar as inúmeras vidraças humanas da direita, restringindo este campo ideológico a um punhado de intelectuais austeros que já morreram.  

Aplaudir as reformas elitizantes que reduziram a capacidade do estádio do Maracanã para menos de 80 mil espectadores, constrangidos ao pagamento de ingressos que inviabilizam a entrada de pobres no local. 

Fazer eco ao patético argumento de que "A Comissão da Verdade deve investigar também os terroristas", ainda que esteja cansado de saber que todos os integrantes de alguma importância da luta armada contra a falecida ditadura já foram processados nas décadas de 60 e 70, muitos deles sendo presos, torturados, exilados ou simplesmente eliminados, enquanto os agentes da repressão no máximo enfrentaram o asco da opinião pública. 

Acreditar nos velhos lugares comuns do tipo "O índio é preguiçoso", "O judeu é um explorador sem pátria", "O árabe é um fanático sanguinário", "Todo cigano é ladrão" e repeti-los raivosamente a cada ocasião em que pessoas destas etnias cometam atos reprováveis.

sábado, 6 de julho de 2013

Resistência escrava: quilombos cariocas e fluminenses

Fuga de escravos, óleo sobre tela por François Auguste Biard (1859)

       Há pouco mais de um ano, precisamente em 8 de maio de 2012, quando ainda procurava a formatação básica ideal para o blog, publiquei algumas considerações sobre a resistência escrava representada pelo quilombos maranhenses do século XIX.  Ilustrei o texto com recortes da documentação oficial produzida por diversos presidentes daquela província.  

http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/05/quilombos-do-maranhao-uma-longa.html

       Volto hoje ao tema com motivações idênticas.  Posso dizer sem receio de engano que a população carioca, com poucas exceções, ignora por completo que algumas das áreas da cidade mais valorizadas pelo mercado imobiliário contemporâneo abrigaram quilombos em ambos os reinados.  Mesmo que o mito do "negro escravo submisso" tenha desaparecido dos livros escolares há no mínimo três décadas, sobrevive como lugar comum nas mentes e nas falas de pessoas de todas as idades, ultrapassando as fronteiras ideológicas dos segmentos que podemos classificar como "a direita".
     Decidi, assim, trazer aos leitores mais uma pequena leva de informações do gênero, modificando a "base geográfica" na direção da antiga Corte do Império e da província que a envolvia territorialmente, a do Rio de Janeiro.  Conheço perfeitamente, ou quase, as limitações de um blog editado sob método artesanal por um só indivíduo.  Uma composição como esta será bem sucedida se superar a marca de quinhentas visualizações.  Um punhado de revistas de circulação mediana e talvez algumas centenas de páginas pessoais são tudo que a esquerda tem a contrapor aos lugares comuns e à grande mídia com seus Villas, Magnolis e Narlochs. Mas lutemos, apesar da inferioridade de meios, e vamos às "novas" fontes.                 
              

Em meados do reinado de Pedro I, o Diário do Rio de Janeiro de 1º de março de 1826 não deixava dúvida de que quilombolas capturados em várias partes da província fluminense eram tipos comuns nas prisões da capital imperial.



A Aurora Fluminense de 18 de fevereiro de 1828 informou sobre um quilombo instalado em Laranjeiras, nos dias atuais um elegante bairro da Zona Sul do Rio.  A existência de armas de fogo nas mãos de seus moradores preocupava o redator do periódico.  



O Diário do Rio de Janeiro de 5 de julho de 1830 fez referência ao "Quilombo da Tijuca".  Na verdade, os estudos da historiadora Mary Karasch demonstram que a topografia tijucana, com seus morros cobertos de matas, favoreceu a formação de diversas comunidades de fugitivos na primeira metade do século XIX. 



No dia 23 de janeiro de 1833 A Aurora Fluminense trouxe um breve relato a respeito das povoações quilombolas instaladas na Baixada Fluminense, no Recôncavo da Guanabara e mais adiante, em terras hoje situadas no município de Cachoeiras de Macacu.   



O Diário do Rio de Janeiro de 26 de novembro de 1838 narrou acontecimentos ligados à importante rebelião de Manuel Congo na região de Vassouras, quase inteiramente desconhecida do "homem comum", apesar de já ter merecido a atenção de vários especialistas. 




Paulino José Soares de Souza, depois visconde do Uruguai (1807-1866), em seu relatório da presidência da província do Rio de Janeiro de 1839, também se reportou ao movimento chefiado por Manuel Congo, com visível preocupação de garantir que a situação estava sob controle das forças da ordem.

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/770/000003.html



O Globo de 11 de janeiro de 1876 fez eco a um pequeno jornal do município de Macaé, segundo o qual uma fuga em massa de escravos dera origem a um novo quilombo.



O jornal A Reforma, órgão ligado ao Partido Liberal, acusou em 8 de fevereiro de 1876 a permanência do Quilombo do Bomba, na Baixada Fluminense, cuja implantação já era antiga.   



Outro presidente da província, João Marcelino de Souza Gonzaga, deu notícia em 1880 da tomada pela polícia de mais um quilombo, conhecido como Loanda,  cuja localização exata não estabeleceu.

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/812/000005.html



O periódico O País,  em 24 de outubro de 1884, mencionou a ação de quilombolas em Resende, importante município cafeeiro situado na divisa com as províncias de São Paulo e Minas Gerais.


O mesmo jornal, quase dois meses mais tarde (19 de dezembro de 1884), deu testemunho da desenvoltura de escravos fugidos que ignoravam os limites provinciais, desafiando as autoridades fluminenses e paulistas.  



      As notícias que recupero não são entulho factual ou meras curiosidades.  Elas comprovam a resistência ativa de centenas de homens e mulheres contra uma ordem social das mais perversas.  Em certas passagens, fica claro que a atividade quilombola não constituía privilégio de escravos, sequer da população negra.  Outros elementos da sociedade, verificando que seus interesses não coincidiam com os dos senhores de terras e escravos e do Estado escravista, negociavam com os cativos fugidos, por vezes protegendo-os e até vivendo entre eles.
         Reconhecer a busca por justiça nas lutas sociais do passado é uma atitude que fortalece e legitima a luta por justiça no presente.  Somos todos quilombolas quando produzimos e compartilhamos as informações que não interessam à burguesia e aos conservadores.
          
  


quarta-feira, 3 de julho de 2013

Nove coisas que todo brasileiro deveria e pode saber sobre a monarquia



A instrução é quase nula, à medida que também é quase nulo o gosto de instruir-se; e temos em casa o exemplo.  Acabais de ouvir que o dispêndio feito com as escolas desta cidade é muito inferior ao que se faz com a polícia: sinal evidente de atraso intelectual.  Segundo a opinião dos competentes, a proporção regular entre o número de habitantes de um lugar e o das pessoas que devem frequentar a escola é de 12 a 15 por cento, se esse lugar quer ter o título de adiantado.  Ora, dos três mil espíritos, que dissemos haver aqui dentro, 4 por cento e alguns quebrados é que se encontra realmente de frequência em cinco casas de instrução que existem, sendo somente 7 por cento o número de matriculados! ... Vê-se, pois, que ainda entre nós há uma certa má suspeita contra a arte diabólica de ler e escrever.



                                                                      Tobias Barreto
       
        As palavras que abrem esta postagem são de Tobias Barreto (1839-1889), transcritas do livro O Império do Brasil, de Lúcia Neves e Humberto Machado. O filósofo e jurista sergipano se referia às mazelas do município pernambucano de Escada no ano de 1879, mas sua intenção era criticar o quadro educacional do Brasil como um todo.  Alguns leitores talvez já tenham se perguntado por que motivo um blog cujas características são mais de trincheira política do que de fonte para pesquisa escolar reúne tantas informações sobre a monarquia sem que haja um partido monarquista consistente a combater ou qualquer perspectiva de "restauração" no horizonte institucional ou nos gritos das ruas. 
        A primeira parte da resposta é muito simples: o Brasil do século XIX constitui o foco principal das investigações do autor do blog há mais de uma década, e inúmeras vezes as correlações entre o que foi estudado e a atual conjuntura social, econômica e política do país se impõem de maneira irresistível.  A segunda envolve um pouco mais de subjetividade; se é certo que a maioria esmagadora dos dirigentes brasileiros detestaria ver seus projetos de classe (e/ou suas ambições pessoais) sujeitos aos caprichos de um Poder Moderador exercido por qualquer aristocrata esnobe provido pela sorte dos genes de D. Maria I, a Louca, não é menos verdadeiro que a grande mídia expõe uma visão antes ufanista do que negativa do regime caído em 1889. 
        O fenômeno nada tem de gratuito: ainda que uma ou outra minissérie noturna exiba a velha caricatura do D. João VI alienado e devorador de coxinhas e que um ou outro documentário histórico recupere a  óbvia conexão entre monarquia e escravismo, prevalecem as versões que apresentam o Império, em particular o reinado do segundo imperador, como uma época de austeridade onde quase todos ostentavam honestidade e decoro, inclusive os políticos de carreira!  Nada mais conveniente para a direita: o cidadão comum se vê induzido a crer que havia moralidade exemplar nos tempos em que as mulheres cuidavam de casa em jornada integral e que as condições de nascimento, salvo rara exceção, determinavam quem devia mandar e quem devia obedecer resignadamente.
       Já tratei em outras matérias das patifarias de barões, viscondes e marqueses, mas isto tem efeito limitado sobre quem se apega ao mito.  Mesmo que eu dispusesse de horas vagas em quantidade suficiente para demonstrar a participação de mil membros da falecida classe senhorial em crimes comuns e situações de abuso de poder, tanto os conservadores fanatizados quanto os puramente cínicos diriam que trabalho com exceções.  Decido então trazê-los à realidade por meio da lembrança de aspectos da organização político-administrativa e da vida socioeconômica do Império que não poderão contestar sem entrar no terreno do delírio.                                 


1-Nunca existiu, no Império do Brasil, eleição para a chefia do Poder Executivo no âmbito regional.  Cabia ao imperador nomear os presidentes das províncias, podendo em tese também removê-los a qualquer momento baseando-se apenas em seus critérios pessoais.  Estas autoridades, quase invariavelmente, estavam ligadas ao partido que detinha o governo central, o que gerava graves distorções: durante um período de domínio conservador, o eleitorado da província do Rio Grande do Sul, que tendia maciçamente para os liberais, seria obrigado a suportar contra sua vontade uma administração conservadora; o inverso ocorreria com a nomeação de um presidente liberal para a província do Rio de Janeiro, onde predominavam os conservadores por  ampla margem. 

2-A despeito da propaganda tendenciosa dos historiadores monarquistas que enaltecem a presumida participação generalizada da população brasileira nas eleições do Império, breve consulta à legislação eleitoral nos prova que somente uma diminuta minoria exercia direitos políticos em sua plenitude.  Pelo decreto de 26 de março de 1824 ficou convencionado que "Toda a paróquia dará tantos eleitores, quantas vezes contiver o número de cem fogos em sua população" (o termo "fogo" significava uma habitação independente).  Cerca de meio século mais tarde, o decreto nº 2675 de outubro de 1875 estipulou o tamanho do eleitorado "na razão de um eleitor para cada 400 habitantes de qualquer sexo ou condição, com a exceção dos súditos de outros Estados".  Na prática, apenas estes 0,25% dos brasileiros, ditos eleitores secundários, votavam nos candidatos a deputado provincial, deputado geral e senador. Ressalto que as condições postas para alguém ter o direito de ser votado eram ainda mais restritivas.
(Ver Francisco Belisário Soares de Souza.  O sistema eleitoral no Império.  Brasília: Senado Federal, 1979, p. 188 e 257) 

3-O Estado imperial impunha a discriminação religiosa sob diversas formas.  A Constituição de 1824, que vigorou durante os dois reinados, determinava em seu artigo 5º que às religiões diferentes da Igreja Católica Apostólica Romana seria permitido unicamente o culto doméstico, "sem forma alguma exterior do Templo".  O já mencionado decreto de 26 de março de 1824 excluía do rol dos habilitados ao cargo de deputado "os que não professassem a religião do Estado". 
(Ver novamente Soares de Souza, p. 196).

4-O governo regencial fez aprovar em 7 de novembro de 1831 uma lei que declarava livres, a partir daquela data, os escravos que fossem trazidos do exterior, estabelecendo que os introdutores,  além de incorrer nas penas já previstas pelo Código Criminal para os escravizadores de pessoas livres, deveriam financiar a "reexportação" de sua carga humana para a África.  Todavia, a legislação foi sistematicamente desrespeitada pelas autoridades administrativas e judiciárias de todos os níveis, e o tráfico negreiro, depois de experimentar algum recuo, cresceu sensivelmente a partir de 1837, quando conservadores ditos "regressistas" passaram a controlar o governo central.  Jamais saberemos com exatidão a quantidade dos africanos trazidos para o Brasil  numa violação das próprias regras formais do Estado escravista, mas o pesquisador David Eltis estimou seu total em 718.000 entre 1831 e 1855, dos quais a maioria foi embarcada na região Congo-Angola.  Contrariando o estúpido argumento dos que tentam isentar os brasileiros destes crimes atribuindo uma culpa exclusiva aos portugueses, o historiador Roquinaldo do Amaral informa que 59% dos navios  negreiros identificados que foram apreendidos na costa de Angola entre 1845 e 1850 eram brasileiros. 
(Ver Roquinaldo do Amaral.  Brasil e Angola no tráfico ilegal de escravos, 1830-1860.  In: Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul/Selma Pantoja e José Flávio Sombra Saraiva (orgs.).  Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999, p. 143-144)

5-O Senado imperial era vitalício.  Levando-se em conta a baixa expectativa de vida da época, notamos que um cidadão eleito para aquela Casa poderia continuar no parlamento mesmo depois de terem morrido na maior parte seus poucos eleitores.  João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu foi senador por Alagoas de 1857 a 1889; José Inácio Silveira da Mota representou Goiás de 1855 a 1889; Pedro de Araújo Lima ocupou uma vaga por Pernambuco entre 1837 e 1870.  Além disto, os senadores eram escolhidos pelo imperador a partir de uma lista tríplice dos mais votados. Para ficarmos em um único exemplo de arbítrio, quando o romancista José de Alencar, então ministro da Justiça, concorreu ao Senado por sua província natal, o Ceará, vencendo a eleição, D. Pedro II, que desaprovara sua candidatura, nomeou senador o segundo colocado, Domingos José Nogueira Jaguaribe, em 27 de abril de 1870. 
(Ver Vicente Tapajós.  Organização política e administrativa do Império.  Brasília: FUNCEP, 1984, p. 154)             


6-Serviços públicos básicos, como o abastecimento de água encanada e a rede de esgotos, eram inteiramente negligenciados na monarquia e virtualmente inexistiam na metade do século XIX em pleno Rio de Janeiro.  O sistema de esgotos da capital do Império só foi inaugurado em 1862 e, embora mais tarde este "privilégio" tenha sido estendido a outras cidades, como São Paulo, Recife, Manaus e Salvador, a água encanada permaneceu como um luxo acessível a pouquíssimas pessoas.
(Cf. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado. O Império do Brasil.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 291 a 295)     

7-Os impostos estabelecidos sobre o comércio de exportação e importação representavam uma fonte vital de receita para o Estado Imperial.  Isto não impediu que o setor portuário fosse dominado pela precariedade e pelo improviso, conforme percebemos nestas linhas de Cezar Honorato:
"O porto no correr do Império, é bom que se diga, não passava de um conjunto desarticulado e mal construído de trapiches de madeira, onde encostavam as lanchas que eram carregadas para levar os produtos até o navio que ficava fundeado no largo.  Cada um destes trapiches tinha seu dono, que, normalmente, tinha um grupo de escravos que transportava o produto desde o armazém até o pontal ou trapiche.  Os chamados armazéns eram, normalmente, galpões de madeira com piso de chão, sem segurança e insalubres.  No caso do Rio de Janeiro, que após 1850 detinha a hegemonia quase absoluta das exportações brasileiras, surgiram dificuldades no embarque e desembarque de mercadorias, mas a própria geografia da cidade facilitava o surgimento de novos trapiches e armazéns, mascarando o colapso do setor".
(Ver Cezar Teixeira Honorato. O Estado imperial e a modernização portuária.  In: História Econômica da Independência e do Império/orgs. Tamás Szmrecsányi e José Roberto do Amaral Lapa.  São Paulo: Hucitec; ABPHE; EdUSP; Imprensa Oficial, 2002, p. 167)  

8-As políticas públicas de Educação no Império foram catastróficas.  O historiador monarquista José Murilo de Carvalho admite, com base nos dados do Censo Nacional de 1872, que dos jovens entre seis e quinze anos apenas 16,85% frequentavam a escola naquele ano.  Menos de doze mil estavam matriculados em cursos secundários, quando o total da população livre se aproximava de 8,5 milhões. O ensino superior ficou limitado a um punhado de instituições, como as escolas de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, as faculdades de Direito de Olinda-Recife e São Paulo, as de Farmácia e de Engenharia de Minas e a Escola Militar do Rio Grande do Sul.
(Ver José Murilo de Carvalho.  A construção da ordem: a elite política imperial.  Teatro de sombras: a política imperial.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 80 a 82)        

9-Autoridades de todos os níveis lançavam mão do recrutamento como castigo aplicado aos pobres que contrariavam seus interesses.  Claudete Dias descreve que no Piauí a arraia-miúda que formava a massa de votantes dos opositores do barão da Parnaíba, no fim do Período Regencial, estava sujeita à captura e remessa  em navios mercantes para o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, em condições tais que um escritor local definiu estes destinos como "os matadouros do Sul".  Durante a Guerra do Paraguai, quando escassearam os voluntários, o governo central empreendeu uma verdadeira caçada humana, levando muitos indivíduos a se declararem adeptos do Partido Liberal, então no poder, para escapar do envio aos campos de batalha.  Francisco Doratioto descobriu que em São Paulo, somente em 1865, 168 homens pagaram a elevada quantia de 600$000 (seiscentos mil-réis) por uma dispensa do serviço militar. 
(Ver Claudete Maria Miranda Dias.  Balaios e bem-te-vis: a guerrilha sertaneja.  Teresina: Instituto Dom Barreto, 2002, p. 124 a 127 e Francisco Doratioto.  Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 265-265)


       Estejam, como sempre, inteiramente à vontade para divulgar e compartilhar.  Toda desmistificação do conservadorismo é válida e necessária.