O principal "fundamento" da fábula do general Geisel esquerdista é, sem dúvida, o rápido reconhecimento prestado pela diplomacia brasileira aos governos marxistas instalados nas ex-colônias portuguesas do continente africano na década de 1970. Efetivamente, o chanceler Azeredo da Silveira reconheceu a independência da Guiné-Bissau em 16 de julho de 1974, sem que estivessem concluídas as negociações entre o movimento autonomista e a ex-metrópole. Em março de 1975, o Brasil foi o primeiro Estado a estabelecer relações com Angola, enviando para Luanda uma representação do Itamaraty antes mesmo da autonomia formal do país. O governo local do MPLA foi plenamente reconhecido em 11 de novembro de 1975. Quatro dias mais tarde, era a vez de Moçambique, cujos dirigentes convidariam o líder comunista Luís Carlos Prestes para as cerimônias de independência¹.
Os silviofrotistas tardios, convenientemente, ignoram ou põem de lado os aspectos mais práticos da questão. O regime salazarista, não obstante as fraquezas da economia de Portugal, mobilizou ao longo das guerras de descolonização um milhão e trezentos mil cidadãos portugueses, dos quais 8.290 morreram na África. Ainda assim, os contingentes militares no Ultramar eram insuficientes para manter o controle sobre aqueles territórios, fazendo com que o governo apelasse em escala crescente para milícias compostas por nativos: para ficarmos em um único exemplo, havia na Guiné-Bissau, em 1973, 6.425 soldados portugueses e 25.610 recrutas africanos. O acesso dos movimentos de libertação aos lança-granadas, fuzis kalashnikov e mísseis antiaéreos tornou as tropas de ocupação, em nítida inferioridade tecnológica, incapazes de submeter os revoltosos, apesar da insistência do primeiro-ministro Marcello Caetano em prolongar os conflitos aumentando a quantidade dos engajados². Sintomaticamente, o general António Spínola (1910-1996), considerado leal ao salazarismo e herói das guerras africanas, publicou em 1974, para grande desconforto de Caetano, o livro Portugal e o futuro, no qual defendeu a tese do direito dos povos à autodeterminação e o projeto de conceder a independência às colônias para integrá-las numa "comunidade lusíada" eleita por métodos democráticos³.
O elemento mais embaraçoso para os divulgadores da falácia, entretanto, é interno e se relaciona às raízes da "diplomacia da prosperidade", que se refletiu numa política externa "sem fronteiras ideológicas". Segundo o historiador José Flávio Sombra Saraiva, foi o governo Médici que, além de permitir uma maior autonomia do Itamaraty dentro do Estado, nomeou para o ministério das Relações Exteriores o diplomata Mário Gibson Barboza (1918-2007), antigo secretário-geral da mesma pasta na gestão Costa e Silva. Barboza, classificado pelo autor como um nacionalista, favoreceu a "ruptura do tradicional alinhamento com Portugal" no que dizia respeito às questões coloniais. Muito antes do nome de Ernesto Geisel ser indicado para a presidência da República, precisamente em 23 de outubro de 1970, Mário Gibson Barboza proferiu palestra na Escola Superior de Guerra na qual afirmou que o Brasil, no intuito de ampliar seu espaço nos novos mercados, deveria adotar "iniciativas próprias" quanto à África4.
Barboza viajou para o continente africano em 1972, percorrendo ao todo oito países. Naquela ocasião, sofreu pressões do governo da Nigéria, que reprovava a indefinição brasileira acerca da virtual independência da África Portuguesa. Quando voltou, declarou que 1972 seria o "Ano da África", recebendo diversas manifestações de apoio, inclusive no Congresso Nacional, onde o partido governista, a ARENA, desfrutava de maioria. Houve, é fato, resistências a estas diretrizes, como a do ministro da Fazenda, Delfim Netto, que preferia o entendimento com Portugal e África do Sul, em prejuízo da África Negra. Todavia, antes da deflagração da Revolução dos Cravos, conforme Saraiva, já era nítida a vitória do grupo do Itamaraty, que resultou particularmente na aproximação entre o Brasil e Angola5.
Só me resta, portanto, restituir o Ernesto em questão à direita que nunca quis abandonar, e talvez ver o nome de Médici (!) associado a novas pérolas do revisionismo selvagem.
Notas:
1-Ver José Flávio Sombra Saraiva. Um momento especial nas relações Brasil-Angola: do reconhecimento da independência aos desdobramentos atuais. In: Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 237 a 243.
2- Cf. Lincoln Secco. A Revolução dos Cravos e a crise do império colonial português: economias, espaços e tomadas de consciência. São Paulo: Alameda, 2004, p. 101 a 105.
3- Idem, p. 109-110.
4- Saraiva, p. 231.
5- Idem, p. 232 a 236.