quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Carta ao pós-adolescente coxinha



Jovem criatura,
        Não devo tratá-lo como caro, e penso que nisto concordaremos, e talvez em mais nada.  Tenho o desprazer quase diário de constatar a sua presença próxima desde que me aventurei pela primeira vez na Internet, já estando naquela altura bem acima da sua idade atual.  Gabriel O Pensador, em música de uns dez anos atrás, disse que era mais fácil comprar maconha do que pão.  Esbarrar no seu discurso, entretanto, é mais fácil do que achar maconha OU pão.  
        Às vezes você parece homem, às vezes mulher, o nome também varia muito, o que em regra faz  com que eu simplesmente me esqueça do rótulo vinte minutos depois.  Mas sempre posso localizá-lo, com a cara que assumir na ocasião, naquele fórum em que se fala que é normal chamar pejorativamente de baianos ou paraíbas todos os brasileiros que nasceram ao norte da cidade mineira de Nanuque, visto que a maioria deles têm uma inserção subalterna nas sociedades do Sul e do Sudeste e não se pode reprimir as "atitudes espontâneas" dos indivíduos. Clicando na primeira das páginas afins, verei seu perfil alternativo sustentar com fúria, ao longo de horas, que o idoso gay assassinado ontem pelo garoto de programa que contratou recebeu o que estava procurando, e que a Justiça deve cuidar do caso como assunto trivial, até porque o morto violava as leis da Natureza.  Instalada no tópico logo abaixo, outra parcela de você condenará ao tratamento de cem pilhas de louça a feminista que protestou em frente às câmeras da Globo sacudindo as estatísticas sobre quantas mulheres espancadas pelos maridos foram internadas nos hospitais da sua cidade nos últimos cinco anos.  
        Suas contrapartes blogueiras, em milhares de versões, estarão defendendo o eventual bombardeio da aviação israelense contra algum alvo a quatro mil quilômetros de Tel Aviv onde supostamente existem simpatizantes do Hamas, e condenando a frouxidão do governo Obama nas relações com o Irã;  pregarão quarteladas dirigidas por formandos da Escola das Américas, a favor de latifundiários e banqueiros, em qualquer país centro-americano no qual um partido de esquerda vença as eleições presidenciais e tente aprovar no Congresso tímidas emendas constitucionais a favor dos setores populares; imputarão a negros de todas as partes da América a responsabilidade integral por sua miséria e falta de oportunidades, tentando convencê-los da honra que têm de permanecer na cozinha em uma sociedade gloriosa, quando poderiam viver como selvagens da série Indiana Jones; anunciarão a falência econômica do Brasil (ou a da Argentina, ou a do Uruguai) cada vez que gráficos mostrarem no horário nobre da televisão que a massa salarial cresceu 1% nos últimos doze meses.  
        Sabemos bem que o seu clichê preferido é o de que os "perdedores", ao invés de se esforçar para progredir em condições desfavoráveis (como se a sociedade estivesse de pernas e braços abertos para acolher a todos em seus melhores espaços), se "vitimizam" e depositam as esperanças no socorro do Leviatã malvado. 
      Olhando o quadro de outro ângulo, percebo que  a única vítima imaginária é você mesmo.  Nascido no Brasil que disputava com Honduras, Serra Leoa e Botswana a taça da pior distribuição de renda do planeta, tem nostalgia dos tempos recentes em que pessoas das classes  D e E se sujeitavam às piores condições de trabalho possíveis para lavar os pratos e as privadas da casa dos seus pais em troca de um salário mínimo ainda mais depreciado do que o atual. Sonha ver nos olhos de pobres conformados a mesma admiração desfrutada por seu avô há cinquenta anos por andar limpo, bem vestido e "falar bem". Tem na ponta da língua a ladainha liberaloide de que só no laissez-faire há crescimento (não importando quantos exemplos conheça do contrário), mas está muito mais preocupado com a salvação do seu status meio roto de principezinho de classe média do que com o desempenho macroeconômico do país.  Em resumo, se sente acuado pelas conquistas dos que identifica como inferiores, mesmo que isto não implique em qualquer perda material para você.  
        Sei o quanto me tornarei desagradável pela sentença, mas o fato é que você é um anti cidadão, hostil a qualquer igualdade e, desta forma, constitui mais um tipo de pré-capitalista do que o burguês moderno que busca no espelho enquanto experimenta roupas de grife.  Noto com estarrecimento e certa irritação que seus próprios pais, socializados em contextos  mais adversos a mudanças, nem sempre lhe acompanham no reacionarismo.  O seu melhor dos mundos talvez fosse a vida em um Estado caricato onde todos beijariam a mão de um carrancudo D. Pedro III (legitimando todas as hierarquias de nascimento em efeito cascata) e reviveriam relações sociais da Idade Média sob a batuta de pregadores que proclamariam a excelência moral do projeto, enquanto você  exibiria seu carro novo para os pobres mortais a cada quatro meses.
        É certo que, caso você tenha avançado até este ponto, já estarei associado a todos os espantalhos falecidos que habitualmente são usados pela direita, a cada derrota política sofrida, para anunciar um iminente genocídio.  Porém, bem mais sádico do que o pior deles, não desejo a sua morte ou a sua prisão, tampouco que ganhe uma reles canelada no futebol ou no jiu-jitsu.  Quero apenas ver o seu "programa social" naufragar por completo, que metade dos seus futuros colegas no mestrado ou na direção da empresa sejam ex-cotistas, que ninguém passe a sua roupa  daqui a vinte anos por menos do que a diária praticada em Frankfurt, que seu filho curse uma faculdade de História ao lado do filho do boy que carrega as contas do seu pai para a fila do Bradesco.  Neste cenário talvez você siga o cínico lema de Roberto Campos ("liberalismo, Galeão ou Cumbica") e promova uma boa diversão  para a minha terceira idade, editando de qualquer cidadezinha do Kentucky ou da Nova Escócia uma página lotada de impropérios contra o inferno natal de que "fugiu".
       Para fechar, deixo votos de grande insucesso na campanha que fará em 2014 para os "socialistas fabianos" do PSDB (o "mal menor"), e o meu abraço de urso.                
                                  

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Desagravo a Cléo Tibiriçá, com observações sobre um Torquemada liliputiano


      
     Há cerca de um ano e meio, numa das primeiras matérias do blog, alinhei breves comentários a respeito de uma sombria página virtual, Escola sem Partido, que sob o pretexto da proteção à integridade moral dos jovens  promove a  apologia de projetos políticos dos mais retrógrados.
       Devo acatar os direitos ao exercício da crítica e ao confronto de ideias por parte do fundador do movimento mencionado e dos seus colaboradores, apesar da total divergência que manifesto em relação às suas teses.  Todavia, o Sr. Miguel Nagib, em texto do último dia 22, publicado com a promessa de constituir o início de uma série, incorreu em postura abominável, tentando intimidar uma docente do ensino superior.      
 http://www.escolasempartido.org/universidades/424-doutrinacao-ideologica-na-fatec-de-barueri-1-parte
       O advogado (!) Nagib pretende imputar à professora Cleonildi Tibiriçá, da Faculdade de Tecnologia de São Paulo, uma pecha de criminosa, fazendo ainda comunicação das presumidas transgressões ao coordenador do curso em que a mesma leciona (o de Comércio Exterior da FATEC-Barueri), ao diretor daquela faculdade e ao secretário de Educação do Estado de São Paulo.  O maior delito, nesta perspectiva, foi o de "forçar" os alunos à leitura de autores acadêmicos de variada projeção, como Eric Hobsbawn, Fernando Nogueira da Costa e Marcos Bagno, apresentando ainda artigos impressos, documentários e entrevistas produzidos por personalidades associadas à esquerda.  A lista resulta no total de quatorze itens trabalhados com os discentes.           
       É óbvio que, sob o aspecto institucional, a "denúncia" de Nagib será inócua. Colocar em execução um plano de curso cujos referenciais teóricos se situam à esquerda (ou à direita) só pode constituir figura penal sob uma ótica panfletária, demagógica e própria para mobilizar apenas imbecis incuráveis.  Mesmo que algum dos dirigentes notificados pense por um minuto em compactuar com a iniciativa do "nosso" desastrado censor, nada fará contra Cléo Tibiriçá, pelo mero fato de  valorizar sua carreira e não almejar um título vitalício de ditador, com as justas manifestações de desapreço que viriam a reboque.  É divertido, de certa forma, perceber que Nagib acaba por tecer um excelente elogio involuntário à desafeta que alega ignorar quem seja; ao acusá-la de realizar com êxito tantas "atividades subversivas", precisa ao menos admitir que está diante de uma "doutrinadora" extremamente competente e assídua ao trabalho, sob pena de cair no ridículo.  Mas não escapa do vexame, entretanto, quando sugere que Cléo Tibiriçá impõe uma espécie de "pensamento único" e ao mesmo tempo revela que nas aulas foram debatidos, ou no mínimo apresentados, pensadores marxistas e não marxistas, e que tiveram voz representantes de partidos tão diferenciados quanto o PSB e o PSTU.  Desejo com passionalidade que Miguel Nagib fique bastante irritado ao notar que anunciou para milhares de pessoas os talentos de uma até então desconhecida doutoranda de Barueri.          
        Exponho solidariedade integral à docente atingida pelo ataque despropositado e selvagem.  Mas não quero me limitar a isto.  É preciso, mais uma vez, demonstrar que o atacante é muito melhor como vidraça do que como pedra.   Ao mesmo tempo em que se escandaliza, ou simula estar escandalizado com professores esquerdistas para agradar à plateia, Nagib comprova no texto medíocre seu forte ranço ultradireitista.  Ele atribui à vitoriosa Revolução dos Cravos, que se livrou da decrépita herança colonial e se desdobrou no sistema multipartidário que até hoje permanece em Portugal,  o rótulo simplista de "golpe militar", enquanto o "regime salazarista" curiosamente escapa da merecida classificação de ditadura ou tirania.  Produz, na mesma linha, uma generalização distorcida  e desprovida da mais baixa dose de honestidade intelectual na referência ao livro Preconceito Linguístico, de Marcos Bagno.  Nagib afirma que para o autor "a norma culta é instrumento de opressão da classe dominante contra os pobres", quando qualquer leitor ponderado perceberia que a indignação de Bagno se volta contra o preconceito sofrido pelos que não dominam a variante culta da língua, e não contra a existência da mesma.  Joga em estilo desprezível para impressionar um certo tipo de reacionário, ao mesmo tempo pedante e mentalmente preguiçoso, dando-lhe a impressão de que Marcos Bagno deseja obrigar todos os brasileiros a referendarem a conjugação cês foi, nós vai, a gente fumo em nome da libertação das classes populares.    
      Temos, desta maneira, o perfil real do homem que pretende pairar acima das doutrinações e se instituir como juiz de presumidos abusos ideológicos.  Rosnando contra o domínio da esquerda sobre o sistema de ensino, o que não passa de falácia repetida à exaustão,  ele deixa claro que gostaria de substituí-lo por um proselitismo de direita cujas matrizes são evidenciadas nos textos acessórios que publica na página do movimento que comanda.  Estes últimos, diga-se de passagem, sempre mais bem escritos do que os assinados pelo dono do site, o que também não considero grande vantagem. Miguel Nagib sequer se esforça um pouco para manter a máscara em seu lugar, quando propõe, como alternativa para os livros didáticos aprovados pelo MEC, a compra dos panfletos inconsistentes intitulados, em esperta manobra midiática, "guias politicamente incorretos".  Não acredito que o Torquemada frustrado enxergue em Cléo Tibiriçá um décimo do perigo que alardeia.  Estou mais propenso a imaginar que seus patrocínios escasseiam, até pela pobreza dos argumentos e pela falta de alcance das ações, e que só alegando duvidosos serviços de combate pode tentar reverter o quadro.  Miguel Nagib, calado, é um poeta dos melhores.         
       

      

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Um pouco de Gramsci, "meritocracia" brasileira e cotas




"A questão é complexa.  Decerto, a criança de uma família tradicional de intelectuais supera mais facilmente o processo de adaptação psicofísico; quando entra na sala de aula pela primeira vez, já tem vários pontos de vantagem sobre seus colegas, possui uma orientação já adquirida por hábitos familiares: concentra a atenção com mais facilidade, pois tem o hábito da contenção física, etc.  Do mesmo modo, o filho de um operário urbano sofre menos quando entra na fábrica do que um filho de camponeses ou do que um jovem camponês já desenvolvido para a vida rural.  Também o regime alimentar tem importância, etc., etc.  Eis por que muitas pessoas do povo pensam que, nas dificuldades do estudo, exista um 'truque' contra elas (quando não pensam que são estúpidos por natureza): veem o senhor (e para muitos, no campo, senhor quer dizer intelectual) realizar com desenvoltura e aparente facilidade o trabalho que custa aos seus filhos lágrimas e sangue, e pensam que exista algum 'truque' ".
(Antonio Gramsci.  Cadernos do cárcere, volume 2.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 52)   
       A passagem que transcrevo faz parte do caderno 12 de Gramsci, escrito em 1932, cujo título é Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais.  Somos levados de imediato a traçar linhas paralelas entre a sociedade italiana de oito décadas atrás e o Brasil contemporâneo. Neste, a vitalidade dos mecanismos de concentração de renda e saber, opressivos e onipresentes, nos permite distinguir com exatidão a classe social e o nível de instrução de uma pessoa após breves momentos de observação; em certos casos, sem que o observado tenha sequer a necessidade de abrir a boca.
       Tal como na Itália do Período Entreguerras, a naturalização dos abismos sociais é uma via de mão dupla: por um lado, as parcelas instruídas e endinheiradas da população não esperam que os filhos dos pobres e mal alfabetizados  alcancem mais do que uma alfabetização precária que lhes permita o acesso às mesmas tarefas de baixa qualificação e mal remuneradas exercidas por seus pais; de outro, muitos pobres se resignam à fórmula "filho de peão, peão é".  Veem a escola de seus filhos apenas como um "espaço seguro" onde os deixam durante metade do dia, um local de socialização pouco ou nada vinculado às relações que assumirão posteriormente no mundo da produção.  
       Do alto de uma experiência de quatorze anos na rede estadual e em algumas prefeituras do estado do Rio de Janeiro, eu poderia afirmar, sem dúvida, que conheci um número respeitável de exceções, de crianças, adolescentes e adultos que superando dificuldades estruturais obtiveram uma escolaridade real acima do padrão das comunidades em que vivem.  Entretanto, tais êxitos nem sempre se traduzem em oportunidades econômicas ou na aceitação social por parte de uma classe média com a qual continuam a não compartilhar espaços e de quem raramente  receberão tratamento igualitário.  O projeto de realizar um curso superior que venha a lhes garantir em definitivo a migração do trabalho braçal para o intelectual pode ser abortado de variadas formas, entre elas a mera precariedade do transporte entre as universidades públicas e as favelas e/ou comunidades interioranas.                  
       A leitura de Gramsci, porém, também nos devolve quase obrigatoriamente à discussão sobre cotas no sistema de ensino, em pauta há vários anos no país.  É notório que a maioria dos argumentos dos adversários desta política gira em torno de um determinado conceito de meritocracia. Ouvimos com frequência que cotas "discriminam os mais inteligentes", "estimulam a não estudar" e  "prejudicam quem estudou mais".  Poderíamos, sem grande esforço, encontrar e listar incontáveis variantes do discurso, mas o essencial é que, para os anticotistas, a concessão de qualquer tipo de bônus aos pobres, negros, índios e demais categorias desfavorecidas fere as regras de uma livre competição que deveria prevalecer no ingresso a todas as instituições educacionais de nível médio e superior.  Eventualmente, incorporando o discurso do Estado Mínimo, eles se opõem até mesmo a políticas nada ameaçadoras do status quo como a merenda escolar e o transporte gratuito para estudantes.    
       Mas um olhar superficial é o bastante para tornar risível a mera possibilidade de que exista "competição livre" em qualquer setor da vida brasileira, e em particular no acesso ao ensino médio e superior de qualidade.  Já me referi, na postagem Algumas considerações sobre cotas (http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/04/algumas-consideracoes-sobre-cotas.html), ao desequilíbrio extremo que se verifica na oferta de educação básica no país, com evidente prejuízo dos que não têm acesso às escolas particulares de alto ou médio padrão ou às poucas instituições públicas de ponta, o que me leva a considerar, quanto aos exames de tipo vestibular, que as cotas "sociais" seriam mais justas do que as "raciais". 
        Não podendo negar ou minimizar um dado tão evidente, respondem os anticotistas que, ao invés de estabelecer "discriminações invertidas", o Estado deveria promover a excelência educacional em todos os níveis e em todas as partes do território. Simulam ignorar, como igualmente já apontei, que o aprendizado e o desempenho escolar dependem de diversos fatores que ultrapassam os muros das escolas, e que todo e qualquer governo que venha a colocar o atendimento às necessidades básicas da maioria acima das "grandes obras" e do sustento de uma base parlamentar fisiológica será impiedosamente sabotado com todos os meios "legais" e criminosos ao alcance de seus opositores.  
       A resolução efetiva das questões educacionais, bem como a superação das relações discriminatórias que permeiam a sociedade brasileira em todas as atividades e em múltiplas direções, passa pela supressão do capitalismo e pelo estabelecimento de uma democracia popular.
     
          

       

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Sobre a nova direita e o velho fascismo



"O fascismo apresentou-se como o antipartido, abriu as portas para todos os candidatos; e, prometendo a impunidade, permitiu que uma multidão informe cobrisse com um verniz de idealismo político vago e nebuloso o transbordamento selvagem das paixões, dos ódios, dos desejos.  O fascismo tornou-se assim uma expressão de nossos costumes, identificando-se com a psicologia bárbara e antissocial de alguns estratos do povo italiano, ainda não modificados por uma nova tradição, pela escola, pela convivência em um Estado bem organizado e bem administrado.  Para compreender todo o significado destas afirmações, basta recordar que a Itália tinha o primado em homicídios e linchamentos; que a Itália é o país onde as mães educam os filhos com golpes de tamanco na cabeça, o país onde as jovens gerações são menos respeitadas e protegidas; que, em algumas regiões italianas, parecia natural, até poucos anos atrás, por uma focinheira nos vindimeiros para que não comessem as uvas; que em algumas regiões, os proprietários trancavam a chave os seus trabalhadores nos estábulos, quando estes voltavam do trabalho, a fim de impedi-los de reunir-se e de frequentar as escolas noturnas".

       O fragmento de texto que apresento aos leitores foi escrito por Antonio Gramsci (1891-1937) em 26 de abril de 1921, ou seja, cerca de um ano antes da tomada do poder pelos fascistas. Saltam aos olhos mais desatentos as semelhanças entre um país cujas relações sociais eram consideradas bárbaras, brutais, na Europa de quase um século atrás, e o Brasil contemporâneo.  Não temos obrigatoriamente o "primado dos homicídios" no ranking mundial, mas nossos índices apavoram; às mortes resultantes das disputas territoriais entre facções do crime organizado, entre estas e as polícias, aos latrocínios, somam-se milhares de delitos passionais sequer vistos como transgressões por seus autores, que por vezes entendem como justiça o "exercício arbitrário das próprias razões". Os castigos físicos, longe de ficarem limitados a uma esfera doméstica da qual por vezes ocorre a migração  para os jornais televisivos, quando crianças perecem em consequência das pancadas desfechadas por pais, mães, avós ou padrastos, são corriqueiramente empregados por agentes do próprio Estado como instrumento de submissão das classes julgadas perigosas.  Não nos surpreendem, tampouco, as notícias sobre o trabalho em condições análogas à escravidão, com a retenção de agricultores em alojamentos insalubres de fazendas nem sempre distantes dos grandes centros, sob a mira de seguranças armados.  O ensino de adultos, pouco valorizado, não atinge o extremo de motivar episódios de cárcere privado, mas a autorização para frequentá-lo é considerada uma grande concessão por certos empregadores, que veem com maus olhos a possibilidade de dispensar parte da mão de obra enquanto ainda se percebe um pouco de luz solar.
            Os intérpretes destes fenômenos sempre divergiram, segundo suas concepções doutrinárias e filiações partidárias, acerca das origens das mazelas e dos remédios que devem saná-las.  Porém, mesmo os políticos de direita de tipo tradicional, não obstante suas práticas (ou as de seus patronos) no mundo da produção, habitualmente condenam no plano retórico as variadas formas de violência que se exercem "de cima para baixo" em nossa sociedade.  É certo que podemos apanhá-los, no calor de certas discussões, em flagrante contradição, como nos casos em que a tentativa, ou mera sugestão, de desapropriar terras onde foi comprovado o cativeiro de trabalhadores ou o cultivo de maconha se faz acompanhar por furiosa resistência parlamentar.  Contudo, salvo raras exceções, em regra produzidas nos momentos de confrontação ideológica mais exacerbada, havia um certo consenso, até poucos anos atrás, quanto ao espantoso grau de injustiça vigente na sociedade brasileira e à necessidade de  modificar este panorama.  Isto se refletiu, por exemplo, na ampliação de diversos direitos sociais e trabalhistas, com numerosos votos de constituintes conservadores, na Carta de 1988.
        Percebemos na contemporaneidade a consolidação de um novo tipo de direita cujos ídolos, conforme o grau de instrução e as preocupações imediatas de seus componentes, podem ser Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, Luiz Carlos Prates, Rachel Scheherazade, Leandro Narloch, o falecido Luiz Carlos Alborghetti ou um pequeno punhado de genéricos mais ou menos anônimos, do gênero celebridades de Internet.  Salvo o próprio Bolsonaro, ainda não contam com uma representação formal no Congresso ou nos governos estaduais e municipais, mas é previsível que em futuro próximo construam o seu Front National*, e as "pérolas do reacionarismo" que por vezes aqui exibo como caricaturas ou celebrações particulares da imbecilidade humana se transformarão em elemento corriqueiro da vida política brasileira.
       Eles não se limitam, como muitos de seus antecessores, a defender a manutenção do capitalismo em sua plenitude e a presumida necessidade da hegemonia político-militar do Estados Unidos no cenário global.  Desenvolvem uma campanha vigorosa contra qualquer alteração do status quo no sentido do avanço das forças populares e da supressão ou amenização das barreiras de classe, gênero e etnia.  Costumeiramente são demagógicos e mergulham na histeria: a regulamentação rotineira de um artigo da legislação trabalhista, ou uma explosão de fúria de três ou quatro militantes durante uma passeata, de súbito são anunciadas em milhares de páginas virtuais como indícios inegáveis da vinda próxima do Leviatã comunista. 
        Os mentores desta nova direita estão cientes, é claro, de que as correlações de força existentes no mundo real passam por linhas bastante diversas daquilo que apregoam: as possibilidades concretas de que as forças de esquerda venham a derrubar o capitalismo, na maioria esmagadora dos países, são quase nulas; apesar dos progressos alcançados pelos movimentos sociais nas últimas décadas, as chances de exercício da cidadania plena e as oportunidades econômicas oferecidas a mulheres, pobres, negros, gays e "dissidentes" da sociedade capitalista permanecem notavelmente inferiores às que se colocam para o "burguês branco heterossexual conservador"; até mesmo a recente ascensão ao poder de partidos formalmente esquerdistas em alguns países da América Latina se faz acompanhar por um elevado grau de compromisso com segmentos do empresariado e políticos de tipo oligárquico "antigo".  
        A apreensão do mundo real, entretanto, pouco importa para as lideranças da nova direita.  Basta que suas distorções do noticiário da grande mídia (comicamente denunciada como esquerdista ou liberal esquerdizante), suas patéticas teorias da conspiração, sirvam para continuar a arregimentar seguidores aterrorizados com a iminência de uma nova ordem dominada por comunistas, terroristas muçulmanos e minorias organizadas que supostamente matarão cem, trezentos ou quinhentos milhões de terráqueos por puro instinto de perversidade. 
        Talvez seja irrelevante debatermos se cabe à nova direita, cujo reduto mais confortável, sem dúvida, ainda é a Internet, o rótulo de fascista.  Inclusive creio que, caso recorramos às definições de fascismo dos melhores especialistas, o diagnóstico será negativo.  Entretanto, seu parentesco com os mussolinianos da década de 1920 torna-se patente na intenção declarada (e permeada pela nostalgia das eras alheias ao sufrágio universal) de salvar uma ordem idealizada como benéfica, apesar das suas anomalias evidentes, da sua irracionalidade gritante.  Seu programa informal, que incentiva ou no mínimo admite as intervenções militares "preventivas" ou punitivas  contra os governos rebeldes à hegemonia ocidental, a prisão arbitrária e a tortura dos indivíduos tidos como social ou politicamente ameaçadores pelos setores dominantes, a conversão ideológica das desigualdades historicamente construídas em elementos "naturais" intrínsecos às sociedades e o exercício da violência verbal e física contra seus contestadores, poderia ser subscrito com tranquilidade pelo falecido Duce.
          Mussolini se apoderou do governo italiano em 1922 chefiando um partido-movimento que dispunha de menos de um décimo dos integrantes do Parlamento.  Não devemos, portanto, subestimar o poder de fogo da nova direita, apesar de sua fachada indiscutivelmente ridícula.  Precisamos multiplicar os espaços de denúncia das suas falácias e mobilizar o maior número possível de pessoas contra os seus propósitos.  
           
        
*Alusão ao partido direitista francês dirigido durante muitos anos por Jean-Marie Le Pen.