segunda-feira, 27 de junho de 2016

Havia mais segurança? Considerações sobre o mito preferido dos bolsonaretes



               
        Entre os principais argumentos falaciosos dos saudosistas da ditadura civil-militar de 1964, e de seus netos ideológicos, defensores de uma tal "intervenção militar-constitucional", figura a noção de que "naquele tempo havia segurança".  Repetindo a balela à exaustão, a extrema-direita militante tenta convencer o cidadão médio, apavorado pela violência urbana, de que o retorno a um regime de exceção, ou a eleição de um presidente que viesse a resgatar as bandeiras do antigo golpe, conteria a escalada da criminalidade.  Parte dela atribui culpa pelo conjunto de todas as mortes violentas ocorridas no país desde 2003 a uma única entidade seguidamente demonizada, o Partido dos Trabalhadores (PT).  Outros segmentos, mais ousados, concebem um inimigo maior a ser combatido, a Nova República, responsável pela contínua destruição das presumidas conquistas dos presidentes fardados há mais de trinta anos. 
        Embora a manipulação seja evidente e quiçá ridícula, não é suficiente combatê-la com retórica de sinal trocado.  Precisamos acessar e interpretar as fontes disponíveis sobre o tema, que, diga-se de passagem, não são das mais abundantes ou das mais divulgadas. Recorrendo ao documento intitulado Mortes matadas por armas de fogo (http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf), de autoria de Julio Jacobo Waiselfisz, podemos constatar que somente a partir de 1979 o governo brasileiro passou a ventilar dados globais sobre mortalidade (ver p. 13), nisto incluídos os homicídios em geral.  






            Daquele estudo (ver p. 22) consta um gráfico geral sobre as mortes provocadas pelo uso de armas de fogo contabilizadas no Brasil entre os anos de 1980 e 2012.  Assim, temos como único parâmetro do período ditatorial os anos da presidência de João Baptista de Oliveira Figueiredo, que governou de 15 de março de 1979 a 15 de março de 1985.  Ainda que se considere que a população brasileira, segundo o censo de 1980, era pouco superior a 121 milhões (http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=8&uf=00), os 8.710 óbitos de tal natureza verificados em 1980 sugerem, à primeira vista, uma realidade paradisíaca se comparada à contemporânea.  
        Basta, entretanto, um mínimo de capacidade de observação para perceber que a política de segurança pública rumava para o colapso.  Entre 1980 e 1985, o número de mortes por tiro subiu até atingir o total de 13.488, o que significa um crescimento de 54,85%.  É certo que no último ano também estão computados os acidentes com armas de fogo, suicídios e homicídios dos primeiros nove meses e meio da gestão de José Sarney, mas a sequência não deixa dúvidas de que, apesar de sua brutalidade e das amplas possibilidades de acobertamento dos excessos de seus agentes, a ditadura foi incapaz, na primeira metade da década de 80, de lidar com a escalada da violência letal. 
   
    



        Nota-se, em particular, verdadeiro salto entre 1982 e 1983: o aumento foi de 19,73%.  Para provável irritação dos que teimam em proclamar, contra todas as evidências, que o cometimento de crimes deriva da mera opção individual entre ser bonzinho ou ruinzinho, nada tendo a ver com a economia, exponho uma descrição daquela conjuntura, feita pelo historiador Thomas Skidmore:           

O PIB caiu 5,0 por cento em 1983, o pior desempenho desde a criação da contabilidade da renda nacional.  A indústria foi fortemente atingida caindo 7,9 por cento, enquanto o declínio do comércio foi de 4,4 por cento.  Contrariando esta tendência, a agricultura cresceu 2,1 por cento, devido principalmente ao café e a outros produtos de exportação.  A queda global de 5 por cento do PIB traduziu-se em um declínio de 7,3 por cento da renda per capita.  A indústria de bens de capital foi a principal vítima da desaceleração da economia.  Sua produção caiu 23 por cento em 1983, o quarto ano consecutivo de queda.  Os seus melhores clientes, as empresas estatais, foram obrigados a reduzir seus orçamentos como parte do programa de estabilização imposto pelo FMI¹. 



          A tendência de alta prosseguiu sem alterações na presidência de Sarney (15 de março de 1985 a 15 de março de 1990), que absorveu diretamente o legado da ditadura, além, é claro, de muitos dos quadros políticos e da lógica institucional do regime recém-extinto. Entre 1985 e 1990, as mortes decorrentes do uso de armas de fogo se ampliaram em mais 52,83%. 




            Percebe-se, por outro lado, uma desaceleração na gestão de FHC (1º de janeiro de 1995 a 1º de janeiro de 2003), na qual houve, apesar da orientação privatizante e elitista do governo, certa expansão dos programas sociais.  As 37.979 mortes de 2002 representam um acréscimo de 41,90% sobre a cifra de 26.764 assinalada em 1995.   




           Os 38.892 óbitos por armas de fogo de 2010, no final do governo Lula, somavam 1,11% a menos, contra os 39.325 de 2003, quando teve início a administração petista.  Não havia, claro, nenhuma razão para comemorações, mas é inevitável associar a relativa estagnação do processo às políticas sociais em vigor. A não ser, talvez, que tenhamos à disposição publicistas conservadores prontos a dizer que o lulismo deu impulso a um movimento de transformação moral positiva dos brasileiros. 
  



          Já no governo Dilma, após o primeiro ano "estacionário", com variação muito pequena para baixo, aconteceu em 2012 uma subida de 9,47% cento.  O quadro geral do biênio (aumento de 9,06%), porém, se revela bem menos desastroso caso o comparemos com os panoramas das "eras" Figueiredo e Sarney.    
  



             
        O projeto da extrema-direita, hoje centrado na promoção de uma eventual candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República, ainda que possa ser redefinido em outras direções, não tem em perspectiva a desarticulação do crime organizado, tarefa impossível de se realizar na vigência do capitalismo oligárquico.  Ao invés disto, reforça uma legitimação, muito tradicional em nossa sociedade, da violência exercida "de cima para baixo", que se traduz em licença para o extermínio; para o assassinato em massa de pobres, negros, índios, mendigos, pacientes psiquiátricos, prostitutas, gays, moradores de favelas e bairros periféricos dos grandes centros, integrantes de movimentos sociais em geral e outras minorias e maiorias, por policiais civis ou militares, milicianos, seguranças legalizados ou jagunços.  
       Poucas pessoas são tão ingênuas a ponto de crer que este genocídio traria mais segurança ao "homem de bem" pequeno burguês, ou que sufocaria o crime.  Qualquer um que conheça de perto, ou de dentro, comunidades controladas pelo tráfico de drogas e outras atividades criminosas sabe que ali predomina, do maior ao menor escalão, a política do "rei morto, rei posto".  Cada "soldado" que morre é prontamente substituído pelo irmão mais novo, que em regra pretendia fazer outra coisa da vida, por um primo, ou pelo chamado "fiel", que antes apenas escondia armas e entorpecentes para o "titular" do cargo.  Não sem motivo, muitos policiais já descreveram seu cotidiano profissional como o cumprimento de uma ordem permanente para enxugar gelo. 
         Portanto, a matança, adornada pelo título de "política de tolerância zero" ou algo de sentido equivalente, serviria somente para realimentar ad infinitum a mobilização eleitoral fascista, ao custo de perpetuar índices absurdos de violência e de consolidar, para os observadores externos, a imagem de um país de selvagens.  Por estas e muitas outras boas razões, os bolsonaretes precisam ser desmistificados e derrotados.  Mãos à obra. Continuem compartilhando.                 
                

Nota: 

1- Brasil: de Castelo a Tancredo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 461.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Parabéns à Inglaterra!

                                                         Cartaz contrário à União Europeia
                                                              Fonte: http://reconstructioncommuniste.eklablog.fr/ 


         Tive a satisfação, nesta manhã, de ver a equipe de jornalismo da TV Globo, mais especificamente o grupo do programa Bom Dia Brasil, em estado de luto.  Aparente, é claro, pois não sou o primeiro nem o milésimo a perceber que as emoções demonstradas pelos repórteres da “agência oficiosa”, há muito tempo, funcionam como se obedecessem à coordenação de um excelente diretor de novelas.  O motivo da tristeza, explícito, era a decisão tomada ontem pelos eleitores britânicos, que por boa margem de votos optaram por excluir a Inglaterra da União Europeia.
           O fato foi apresentado como se um terremoto de alta magnitude houvesse vitimado a população da ilha, que a partir de hoje estaria sujeita à paralisia econômica, ao desemprego em massa, ao isolamento diplomático e ao naufrágio da moeda.  O jornal televisivo enfatizou a posição do governo japonês de recomendar a permanência britânica na União, como se o Japão dispusesse de qualquer autoridade legítima para decidir quem se adapta, ou não, ao Tratado de Maastricht! 
            Durante alguns segundos ocuparam a tela, como se fossem mestres de cerimônia de uma espécie de ato fúnebre, o primeiro-ministro inglês (demissionário) David Cameron e o presidente francês François Hollande.  Cameron se mostrava cabisbaixo, e Hollande irritado, no papel de quem cobraria mais comprometimento com o bloco por parte da Alemanha.  Duas cenas bem representativas de um status quo esgotado em todos os aspectos, desmoralizado à direita e à esquerda.  Cameron é o conservador burocrático, do tipo que submete os projetos da direita às conveniências de sua própria carreira e não hesita em eventualmente se comportar como socialdemocrata para evitar a perda de um ou dois pontos percentuais nas pesquisas de opinião ou a derrocada de seu partido em algum condado do interior.  Hollande, ainda mais nocivo, é o “socialista” que não implantaria o socialismo sequer em oitocentos anos, se pudesse viver como um patriarca do livro do Gênesis.  Pelo contrário: não vacila diante da opção de empregar o exército francês contra a autodeterminação dos povos da África e do Oriente Médio, e a polícia contra os trabalhadores de seu próprio país. “Torci” fervorosamente, admito, para que Hollande vencesse a quadrilha de Nicolas Sarkozy em 2012.  Prometo nunca mais cair neste tipo de ilusão. 
       A experiência da União Europeia cristalizou, entre outras mazelas, um modelo de alternância pelo qual o “direitista” sem ideias, ao ter contra si 51% dos votos, é sucedido pelo “esquerdista” que governa conforme a mesma cartilha, diferindo apenas na maior lentidão para executar as “reformas” neoliberais.  Quatro, oito ou doze anos depois, o segundo se torna igualmente detestado e acaba batido nas eleições por um ex-secretário ou afilhado político do primeiro, que também não foge ao círculo vicioso.  Pior do que isto: o estabelecimento de cláusulas pétreas nos campos da macroeconomia e da organização política, segundo os moldes dos membros mais ricos da União e sob a batuta destes, restringe quase por completo as possibilidades de mudança nos mais pobres, cujas sociedades contêm maiores desequilíbrios. 

         Não desconheço que milhões de reacionários que vivem no continente europeu, ansiosos em liquidar o pacto meio esfacelado para facilitar o avanço de programas fascistas, ficaram felizes após o referendo inglês.  Todavia, vejo o fiasco de ontem do gabinete Cameron como um bom passo contra o imobilismo.  Cabe à autêntica esquerda europeia se mobilizar para o enfrentamento de todos os seus adversários: conservadores “responsáveis” e "ordeiros", fascistas parlamentares e "terroristas", “socialistas” burgueses.  Por fim, já que também falei de ilusão, cheguei a pensar por instantes o quanto seria belo se, ainda durante a minha vida, a nefasta OTAN virasse pó.  Espero o tempo que for preciso, mesmo sabendo que os brasileiros têm para hoje a agenda internacional entreguista do Zé Serra.    
                                               

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Talhado para perder

Imagem: fichacorrida.wordpress.com


            Certo ditado, despretensioso e irônico, mas repetido milhares de vezes nos últimos anos, parece ter o poder de enfurecer um bom número de conservadores em nosso país.  Uma de suas versões é a de que "a direita governa o Brasil desde 1.500, portanto são precisos outros quinhentos anos para desfazer os estragos".  Cada vez que alguém pronuncia estas palavras, ou coisa semelhante, mesmo a título de piada, costuma ser atacado por publicistas coxinhas indignados, que vociferam, como se estivessem a combater uma tese acadêmica, contra a burrice de "se estender o conceito de direita ao período cabralino".
          Sob o ponto de vista teórico, nos campos da História, da Sociologia ou da Ciência Política, é claro que o ditado, tomado ao pé da letra, não tem qualquer valor.  Mas o que irrita de fato aqueles conservadores não é a presumida ignorância de quem o profere, e sim as verdades inconvenientes para as quais ele chama a atenção.  Afinal, a estupidez do adversário seria motivo mais para riso do que para raiva.    
           A direita não inventou as Capitanias Hereditárias, a Lei das Sesmarias, as Ordenações Filipinas, as Visitações dos inquisidores, as regras da limpeza de sangue, as bandeiras de apresamento do índio ou o tráfico negreiro.  Quando estas instituições e processos surgiram, não existia formalmente uma direita, sequer na França! Todavia, a direita brasileira é depositária, sem a menor dúvida, de memórias estatais e privadas dos grupos dominantes que remontam aos tempos do Império e da Colônia.  Disto sabia bem Fernando I, o das Alagoas, que posava para as câmeras em seu gabinete com um enorme retrato de Pedro I ao fundo.   
       Quando os primeiros colonizadores montaram engenhos de cana, submeteram populações indígenas do litoral e impuseram a autoridade da Coroa portuguesa sobre parcelas cada vez mais extensas da América do Sul, adaptaram as hierarquias de classe, gênero e etnia da metrópole ao mundo colonial. A tudo isto, vinha associado o preconceito religioso contra os não católicos e recém-convertidos ao Catolicismo, contribuindo para fortalecer as discriminações étnicas. Tais relações sofreram novas adaptações ao longo dos séculos, sem o que teriam entrado em colapso. Todavia, o caráter conservador da nossa Independência e dos regimes políticos que a sucederam permitiu que esta verdadeira herança maldita (aqui não há como escapar do clichê) se perpetuasse nos aspectos fundamentais.
         Os treze anos das presidências de Lula e Dilma foram muito significativos para a esquerda em termos de experiência e aprendizado, inclusive para os esquerdistas que optaram por se manter na oposição. Entretanto, este período conta como o volume de um balde de lavar roupa contra o de uma piscina olímpica, se comparado ao patrimônio da direita na mesma área. A campanha presidencial de 2014 constitui exemplo perfeito desta desproporção. Enquanto o governo Dilma colecionava deserções, as forças oligárquicas descartavam Serra e Alckmin, figuras marcadas pelas derrotas anteriores e por diversas acusações relacionadas ao domínio do PSDB sobre o estado de São Paulo, para endossar a candidatura de Aécio Neves. Preparava-se, quase ao mesmo tempo, terreno para a chapa Eduardo Campos-Marina Silva, que além de atrair milhões de eleitores das regiões Norte e Nordeste, onde o Executivo petista dispunha de maior popularidade, poderia assumir uma posição de protagonismo caso houvesse um naufrágio do presidenciável tucano.     
        O esquema era muito bem organizado e racional, exceto neste ponto: Aécio é um senador sem projetos, político profissional na pior acepção do termo. Não conseguiu fabricar uma imagem de realizador, pois tinha cristalizada a fama do playboy que se entretinha nas baladas noturnas do Rio de Janeiro, enquanto delegava a responsabilidade de administrar Minas Gerais à irmã e ao atual senador Anastasia.  Não empolgou o eleitorado conservador, cujas bandeiras dificilmente empunharia sem ser tachado de hipócrita. Não se beneficiou de todo do inevitável desgaste da legenda do PT após três mandatos presidenciais, pela abundância em seu entorno de episódios escandalosos que deliciavam a imprensa sensacionalista, talvez mais do que a seus próprios inimigos. Compreensivelmente, acabou por perder, embora dispusesse de sustentação financeira e midiática superior à da coalizão no poder, que já exibia fraturas.                    Mesmo contando com quinhentos anos de memória política, e daquilo que os antigos chamavam de beira de calçada, "eles" também erram.  Cabe a "nós" a tarefa de capitalizar seus erros e identificar suas contradições e divisões, abrindo caminho para outro meio milênio (sim, sejamos ambiciosos), em tudo diferente.   
             
             
                                   

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Bancando o próprio algoz?




         A afirmativa de que Fábio Luís Lula da Silva é proprietário ou sócio majoritário da Friboi foi uma das mais bem-sucedidas falácias midiáticas dos últimos anos. Difundida por incontáveis blogs, canais do Youtube e tabloides impressos, a "notícia" levou o grupo JBS (Friboi é um "nome fantasia") a contratar a agência 4Buzz para tentar desmenti-la (ver, por exemplo, https://br.noticias.yahoo.com/dona-da-friboi-contrata-empresa-para-limpar-sua-imagem-na-web-203922229.html), ao que parece sem resultados.  Cotidianamente ouvimos, inclusive das bocas de pessoas cultas e com amplo acesso a todo tipo de informação, que "Lulinha é o dono da Friboi".  Pesquisa recente, feita entre os participantes de uma manifestação anti-Dilma ocorrida em abril, demonstra o quanto uma mentira bem plantada pode prosperar:            
               

"A conclusão foi que 71% concordam com a afirmação que 'Fabio Luis Lula da Silva, o Lulinha, é sócio da Friboi', o que levantaria a suspeita de uma ligação não muito clara do ex-presidente Lula com a empresa."

          Sendo verdade, estaríamos diante de um caso ímpar de insanidade política.  Dados disponíveis no site oficial do TSE comprovam que a JBS S/A, sob o CNPJ 02.916.265/001/60 ¹ , destinou em julho de 2014 R$ 200.000,00 à campanha do deputado federal Jair Bolsonaro, na época filiado ao PP (Partido Progressista).  Teríamos assim, para efeitos práticos, o ex-presidente Lula investindo na reeleição de um de seus maiores inimigos.  Aquela contribuição, aliás, foi a única receita provinda de empresas admitida nas contas de Bolsonaro (http://inter01.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2014/abrirTelaReceitasCandidato.action ²).
        




        Aproveitemos, enquanto é possível, o pouco de transparência que ainda resta nas instituições governamentais.  Escrevi nesta página, há quase três anos, notas sobre trabalho escravo no Brasil baseadas em dados oficiais do Ministério do Trabalho (http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2013/08/parem-o-moinho-prendam-os-moleiros.html).   Pelas regras vigentes, eu não conseguiria reprisar este modesto feito.  Diversos artifícios jurídicos têm impedido que as atualizações da chamada "Lista Suja do Trabalho Escravo" sejam publicadas.  Ficaremos, eventualmente até a morte da maioria dos envolvidos, impossibilitados de saber que parlamentares da legislatura 2015-2018 representam os interesses escravagistas do século XXI.  
         Enfrentamos uma guerra das mais assimétricas. Enquanto a gestão Temer anuncia a suspensão das verbas de patrocínio de Luís Nassif e Paulo Henrique Amorim, entre outros, como medida moralizante, utiliza, no melhor estilo dos antigos governos ditatoriais, as Organizações Globo como "agência oficiosa".  Mantém, além disto, fora da agenda política nacional qualquer discussão a respeito dos privilégios das seis famílias que, em conjunto, controlam a maior parte de tudo que se produz no país no campo da informação.  Mas sigamos lutando: nossa rendição significaria o triunfo integral do projeto "deles".  


Notas:

1- O CNPJ  da JBS S/A, companhia aberta de capital autorizado, pode ser conferido em http://jbss.infoinvest.com.br/ptb/239/Esclarecimento_Noticias_UniaoEuropeia_17122007.pdf .

2- Para acessar os dados, basta clicar na opção "Selecionar Candidato", introduzir o cargo (deputado federal), a unidade da federação (Rio de Janeiro) e buscar na listagem alfabética o nome Jair Messias Bolsonaro, cujo número de campanha foi 1120.  

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Quem banca quem? Algumas linhas sobre financiamentos de campanha

       
                                                           Imagem: blog de Wadson Ribeiro

        Pouco antes das eleições nacionais de 2010, tive uma longa e agradável conversa com o antropólogo e babalorixá José Flávio Pessoa de Barros (1943-2011), em seu gabinete de trabalho na Universidade Cândido Mendes (UCAM).  José Flávio, que fora meu professor de Antropologia Brasileira II nos tempos da graduação em História na UERJ, veio a me orientar, quase vinte anos depois, na elaboração de um trabalho de conclusão de disciplina do Doutorado, em que realizei breve estudo comparativo entre certos aspectos das sociedades brasileira e haitiana no século XIX.  O antigo mestre, que concorria então ao cargo de deputado federal pelo PSB do Rio de Janeiro, a certa altura expôs dados sobre financiamentos eleitorais. Ele me disse que uma campanha vitoriosa para a Câmara estava custando, em média, cerca de R$ 4,5 milhões, com muito pouca variação de estado para estado. Sem contar sequer com uma pequena fração deste valor, José Flávio se empenhava na construção de métodos alternativos para a divulgação de suas propostas, que não funcionaram.  Ele teve pouco mais de mil votos.
           Não disponho de uma atualização daquela cifra, mas pouco me surpreenderia descobrir que, por efeito combinado da inflação, da radicalização de interesses e da concentração das chances reais nos indivíduos com maior "poder de fogo", tenhamos atingido o dobro.  Desta maneira, basta recorrer à aritmética simples para saber que o capital indispensável para a eleição de um deputado federal, com as possíveis exceções de algumas figuras notáveis do esporte ou do entretenimento, excede em muito os valores que os vencedores perceberão em salários e vantagens durante quatro anos.
           Serei muito pouco original, mesmo que não venha a sofrer contestação, ao afirmar que o sistema representativo brasileiro está podre, é fundado sobre níveis intoleráveis de corrupção e se apresenta em condições de completa falência no que diz respeito à representatividade efetiva do eleitorado.  Também não tenho um projeto viável para expulsar do mundo da política o dinheiro das empreiteiras, dos bancos, das empresas de ônibus ou da indústria de armamentos, sem falar em criminosos comuns do tipo mais abastado.  Posso, entretanto, apontar para providências simples, ao alcance de qualquer eleitor com um mínimo conhecimento da Internet, no sentido de verificar se os seus interesses são compatíveis com os dos patrocinadores a quem seu candidato deverá, infalivelmente, prestar satisfações.         
        Indico no site do TSE o link pelo qual até uma criança, sem precisar criar perfil de usuário ou mesmo fornecer dados de identificação, obtém acesso ao resumo das contas de todos os candidatos a cargos eletivos nas eleições mais recentes para presidente da República, governador, deputado federal, distrital e estadual.  O material, sem dúvida, contém limitações: não fornece pistas sobre caixa dois ou remessas ilegais.  Mesmo assim, na maioria dos casos é bastante esclarecedor, e na maioria dos demais a escassez de informações também quer dizer muita coisa.   

http://www.tse.jus.br/eleicoes/contas-eleitorais/candidatos-e-comites

          Após a entrada na página inicial, selecionamos a eleição que desejamos consultar.  




          Em seguida, o site abre fichas, que permitem investigar quanto cada político recebeu, de quais doadores, e como gastou.  Caso o pesquisador queira saber em quem determinada firma (ou um particular) "investiu", é suficiente levantar seu CPF ou CNPJ.  






                
           Seria inviável reproduzir neste espaço, ou em um volume com menos de mil páginas, as contas de todos os 513 deputados federais e 81 senadores eleitos.  Todavia, posso publicar uma pequena quantidade de amostras, que talvez estimulem os leitores a empreender suas próprias buscas.  Recorro aos números de alguns federais eleitos pelo estado do Rio, que de longe, e por razões óbvias, estão entre os mais capazes de me irritar.
           Percebo de imediato que a campanha do peemedebista Eduardo Cosentino da Cunha, mais tarde elevado pelo baixo clero, pelo novo Centrão e pela Frente Parlamentar Evangélica à condição de presidente da Câmara, dispôs das contribuições de várias instituições financeiras. Em um único trecho, nota-se que em poucos dias ocorreram entradas que totalizaram R$ 600.000,00,  vindas de empresas dos grupos Safra, Santander e Bradesco.    




           Neste segundo bloco, logo acima dos registros de doação do Banco Pactual e (mais uma vez) do Bradesco, vemos que Cunha recebeu R$ 700.000,00 de uma mineradora sediada ... no estado de Mato Grosso do Sul!!!  





           Diante deste quadro, fica evidente a ingenuidade de quem venha a acreditar que tal tipo de parlamentar representará em Brasília fiéis pobres da Assembleia de Deus que pagam dízimos sobre o salário mínimo.  A favor de Cunha, eu alegaria somente que ele teve a coragem despudorada de admitir gastos superiores a R$ 6,8 milhões, ao contrário de "colegas" que, embora tivessem os rostos photoshopados expostos em todos os cantos do estado, e em todas as mídias, declararam ao tribunal apenas verbas de fundo partidário e contribuições irrisórias de parentes e amigos.    
               



          Passo agora às contas de Cristiane Brasil, do PTB.  Ela contou com um generoso apoio do grupo JBS/Friboi, que nos meses de julho e agosto de 2014 injetou quase R$ 2 milhões em sua campanha.   




          Entre os demais colaboradores da filha e sucessora "com méritos" do conhecido paladino da moral pequeno burguesa Roberto Jefferson, sobressai uma empresa de ônibus da Zona Oeste da cidade do Rio, que fez quatro doações oficiais no começo de outubro daquele ano.  As receitas de Cristiane ultrapassaram a barreira dos cinco milhões, o que me faz duvidar da fidelidade do clã à pequena burguesia, sobretudo nos campos em que os interesses desta se chocam com os da alta.      





         
       Rodrigo Maia, uma das figuras de proa do anêmico DEM fluminense, ganhou R$ 180.000,00 de Antônio José de Almeida Carneiro, por alcunha o Bode, conselheiro da empresa João Fortes Engenharia e ex-sócio do banqueiro Ronaldo Cezar Coelho.  Uma parte das peripécias de Almeida Carneiro é descrita nesta página:





       Entre as demais verbas de campanha do filho de César Maia, estiveram os donativos de duas imobiliárias.  Além da firma Austrália, que forneceu R$ 75.000,00, a Ribeira "investiu" R$ 138.000,00.  Pouco acima, consta também um "discreto incentivo" do banco Itaú. 



           
      O angelical "defensor da família" Arolde de Oliveira, por sua vez, parece ser um dos queridinhos das empreiteiras.  As empresas Carvalho Hosken e Christiani Nielsen favoreceram sua reeleição com quase meio milhão de reais.   




          Arolde, porém, foi superado no mesmo quesito por Índio da Costa, o deputado que, nos seus próprios termos, "não tem rabo preso com ninguém".  Os gestores da Queiroz Galvão, da Carvalho Hosken e da Christiani Nielsen acreditaram tanto em seu discurso que robusteceram o caixa eleitoral, em julho e agosto de 2014, com um total de R$ 694.000,00.  




Í



           Talvez algum leitor mais assíduo se espante por eu ter chegado até aqui sem falar de direitas ou de reacionarismo.  A razão é simples: muitos dos eleitos pelas legendas classificadas como de esquerda ostentam o mesmo padrão de financiamento de tucanos, peemedebistas, demos e pepistas.  São os "socialistas" e "trabalhistas", se é que ainda pretendem se enquadrar em tais categorias, das linhas de François Hollande, Felipe González ou Tony/Tory Blair; sem, é óbvio, a projeção dos originais.  Progressistas meramente retóricos que, por força dos compromissos com o empresariado, jamais assumirão posturas que possam arranhar de leve a ordem macroeconômica. 
          Isto não deve ser motivo para desânimo.  Os processos de cooptação, sejam quais forem os nomes que receberam ao longo da História, já eram velhos na época em que três aliados do chefe lusitano Viriato entregaram sua cabeça aos oficiais do exército romano.  Precisamos, ao contrário, reconstituir a representação parlamentar da esquerda em outras bases, concentrando votos, apoios e recursos nos militantes mais comprometidos e varrendo para a vala comum do fisiologismo, onde se entenderão às mil maravilhas com os donos das legendas de aluguel, os que já tomaram gosto pelas mordomias e pelos jabaculês.  Aliás, eles nem precisam ser varridos: ao impulso dos primeiros reveses completam espontaneamente suas "conversões" ao deus Mercado e ao conservadorismo.              
                        












quinta-feira, 9 de junho de 2016

Dom Mouro e outras histórias


                                         Centro de Estudos Luso-Árabes, em Silves, no Algarve


   Viajo durante alguns minutos por um de meus endereços virtuais favoritos, http://geneall.net/pt/home/antes conhecido como Genea Portugal, site para o qual contribuo com informações cartoriais e paroquiais desde o ano 2000.  Meu fascínio pela Genealogia é inato.  Desde a infância criei o hábito de perturbar meus avós com perguntas sobre quem tinham sido os pais e avós deles, onde moraram, o que faziam, etc.
        Esta curiosidade foi se aguçando ao longo do tempo, com outras questões e comentários que estranhos me dirigiam. Para meu espanto, certa vez um professor do primeiro ano do Segundo Grau achou que eu era judeu.  A veterana funcionária do extinto Banerj que me treinou para trabalhar como caixa, em 1991, dizia que se me conhecesse só de vista julgaria estar diante de um sírio ou libanês. Ciganos calons do município de Maricá, que participavam de uma festa no bairro de Itaipuaçu há cerca de dez anos, indagaram quando lá entrei se eu me admitia na vida social como "primo" deles. Em outra ocasião, quando dava aulas na cidade de Duque de Caxias (RJ) e dormia pesadamente na sala dos professores em horário vago, virei objeto de uma espécie de aposta.  Todos os funcionários da equipe de apoio da escola eram negros, e um deles comentou algo como "Gustavo tem toda pinta de português", dando início a uma curiosa polêmica.  Uma colega mais velha, de seus sessenta anos, retrucou afirmando que "sim, ele parece muito com essa gente, mas naqueles traços também vejo gente nossa". Quando acordei, todos estavam ansiosos para ouvir uma resposta definitiva.    
         Voltemos, por enquanto, ao Geneall.  A esplêndida base de dados lusitana conta hoje com os registros (ou registos, como se escreve em Lisboa) de 2.516.715 pessoas. Meu perfil recebe o número 27.755 (http://geneall.net/pt/nome/27755/gustavo-alves-cardoso-moreira/), denunciando uma condição de "quase fundador", digamos assim. Infelizmente, os leitores que decidirem prosseguir não conseguirão navegar pelo site, a não ser que nele se inscrevam pela quantia de 20 euros semestrais, 35 anuais ou 60 bianuais.  Tentarei, contudo, remediar a situação fazendo um punhado de prints explicativos.
       Entre as informações reproduzidas dos livros de linhagem da Idade Média, consta que Fortun Garcés (http://geneall.net/pt/nome/8429/fortun-garces-rei-de-pamplona/), que viveu entre o século IX e começos do X, superando a marca de oitenta anos, era rei de Pamplona, no norte da Península Ibérica. Ele se casou com uma mulher mestiça, Auria Ibn Lope Ibn Musa (http://geneall.net/pt/nome/10934/auria-ibn-lope-ibn-musa/), que tinha inscritas no nome raízes hispanas e muçulmanas (Musa, ou Mussa, é a versão árabe para Moisés).  O pai dela, Lope Ibn Musa, era filho do muçulmano Musa Ibn Musa al Qasaw (http://geneall.net/pt/nome/14687/musa-ibn-musa-al-qasaw/), casado com uma mulher de provável estirpe basca, Assona Iñiguez (http://geneall.net/pt/nome/10861/assona-iniguez/).  Sobre a mãe, temos no geneall apenas o nome Ayab al-Bilatiyya (http://geneall.net/pt/nome/43401/ayab-al-bilatiyya/).
         Uma das filhas de Fortun e Auria, Onega Fortunes (http://geneall.net/pt/nome/42203/onega-fortunes/), teve primeiro um marido muçulmano, Abd Allah Ibn Muhammad, sétimo emir de Córdoba (http://geneall.net/pt/nome/42190/abd-allah-ibn-muhammad-7-emir-de-cordoba/), e depois desposou o cristão Aznar Sanchez, senhor de Larraun (http://geneall.net/pt/nome/1399244/aznar-sanchez-senhor-de-larraun/). 





      Neto de Abd Allah Ibn Muhammad e Onega Fortunes através do filho destes Zayd Ibn Abdallah (http://geneall.net/pt/nome/42189/zayd-ibn-abdallah/), Zaydan Ibn Zayd (http://geneall.net/pt/nome/42188/zaydan-ibn-zayd/) recebeu como esposa, ao que tudo indica, uma cristã, Aragunte Fromariques (http://geneall.net/pt/nome/569122/aragunte-fromariques/) .  Deste casal nasceu Zayra Ibn Zaida (http://geneall.net/pt/nome/42187/zayra-ibn-zayda/), que casaria, a seu turno, com Lovesendo Ramires (http://geneall.net/pt/nome/42186/lovesendo-ramires/) , filho do rei Ramiro II de Leão (http://geneall.net/pt/nome/8191/ramiro-ii-rei-de-leao/). 


    


     
   Filho de Lovesendo e Zayra, Aboazar Lovesendes (http://geneall.net/pt/nome/42185/aboazar-lovesendes/), fundador do Mosteiro de Santo Tirso (ver, por exemplo, http://genealogiafb.blogspot.com.br/2014/11/prazos-do-mosteiro-de-s-bento-em-santo.html), trazia indícios da ascendência muçulmana no prenome, corruptela do árabe Abu Nazr.  Entre seus trinetos esteve Dom Soeiro Pais, dito o Mouro (http://geneall.net/pt/nome/35245/d-soeiro-pais-mouro/), figura legendária da Idade Média portuguesa.








     
       Benquisto por D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, Soeiro Pais enriqueceu ao se tornar usufrutuário das rendas de diversos moinhos (ver, por exemplo, http://www.marcodecanaveses.pt/rosem/index.php?op=conteudo&lang=pt&id=152). Tornou-se mais célebre, entretanto, pelo relacionamento que manteve com uma mulher casada, Urraca Mendes de Bragança (http://geneall.net/pt/nome/35243/d-urraca-mendes-de-braganca/), bem assinalado pela literatura da época. O marido de Dona Urraca, Diogo Gonçalves de Urrô (http://geneall.net/pt/nome/35244/diogo-goncalves-de-urro/), se meteria na batalha de Ourique, no Alentejo, empreitada levada a cabo por D. Afonso com a finalidade de prear escravos, ouro e gado. Talvez tivesse em mente exterminar todos os homens de turbante do mundo, ou pelo menos os que lembrassem as feições de seu rival, mas acabou por morrer naquele lugar, bem além das fronteiras do então diminuto reino português.  O Dom Mouro, desta forma, teve caminho livre para se casar com a amante, fazendo legítima sua prole. Nascido de Soeiro Pais Mouro e Urraca Mendes de Bragança, João Soares de Paiva (http://geneall.net/pt/nome/232247/d-joao-soares-de-paiva/), conhecido igualmente como João Soares, o Trovador, terminou por ampliar a fama de seus pais.



        O mouro "aposto", se concedermos crédito total aos livros antigos, foi meu antepassado na vigésima geração, não por meio do Trovador, mas de outro filho, Paio Soares "Romeu" (http://geneall.net/pt/nome/256259/d-paio-soares-romeu/). Minha árvore, por outros caminhos, também inclui as duas irmãs de Soeiro Pais, como se o sangue Abu-Nazr pudesse se buscar e reconhecer no correr dos séculos.  A linhagem receberia mais tarde novos mouriscos, ou moçárabes, descendentes da filha que o rei Dom Afonso III (http://geneall.net/pt/nome/221/d-afonso-iii-rei-de-portugal/) gerou em meados do século XIII com Mourana Gil ou Madragana (http://geneall.net/pt/nome/65678/madragana-depois-mor-afonso/), filha de Aloandro Ben Bekar (http://geneall.net/pt/nome/334363/aloandro-ben-bekar-alcaide-de-faro/), alcaide de Faro, no Algarve, e último governante muçulmano em território português.  No século XVI, ingressaram na trama os judeus sefarditas da família de Abraham Seneor, último rabino-mor de Castela, obrigado a simular conversão, após a qual adotou o nome de Fernão Pérez Coronel (http://geneall.net/pt/nome/199493/fernao-perez-coronel/).  Já no Brasil setecentista, os afidalgados Carneiros da Fontoura, netos distantes de todos estes cristãos, mouros e judeus, se juntaram em matrimônio a ciganos calons vindos do Ribatejo que tentavam enriquecer nas Minas Gerais; nos Oitocentos, negros do Rio de Janeiro tiveram descendência comum com os Cardosos da vila de Itaguaí, netos dos Carneiros da Fontoura. Todos meus antigos interlocutores, então, tinham sua dose de razão. 
          Interrompo por aqui estas anotações, antes que se tornem uma introdução à autobiografia que nunca pretendo escrever.  Penso que toda biografia deve ser obra de terceiros, e de preferência distantes do biografado.  Também não pretendo "provar" a intensa troca de elementos entre as três "nações" da Península Ibérica, processo que a historiografia há muito já constatou, e autores clássicos como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre comentaram em páginas inspiradas.  
       Utilizo esta sequência de exemplos para demonstrar na prática o quanto eram porosas as fronteiras étnico-religiosas, inclusive entre os nobres e a realeza.  Califas, emires e reis das taifas se casaram seguidamente com mulheres cristãs, bascas, navarras, francesas, do que ocasionalmente resultavam filhos louros que se vestiam à moda oriental.  Reis cristãos também escolheram esposas de origem muçulmana, permitindo que membros da corte afonsina, a exemplo de Soeiro Mouro, pudessem ser confundidos com norte-africanos.  Imaginemos então, por um minuto, o que deveria acontecer entre a plebe das regiões de fronteira, alheia aos escrúpulos aristocráticos e muitas vezes obrigada a conviver, alternadamente, com mandatários dos dois grupos, ora beligerantes, ora amigos ao ponto de fundir os sangues.
          Feito este breve exercício, não tenho como deixar de me irritar com certos demagogos que, copiando  discursos da extrema direita europeia, começam a difundir no Brasil a ideia de que cristãos e muçulmanos são inimigos eternos, desde a época de Maomé, sendo a aniquilação ou a subjugação de uns pelos outros a única proposta realista de "convivência".  A genealogia e a pesquisa genética, quando não a simples observação do entorno, já nos dão pleno direito de chamá-los de idiotas.  Um olheiro atento que passasse uma tarde percorrendo a pé os subúrbios da Zona Norte do Rio de Janeiro encontraria, com rapidez, bons sósias de Saddam Hussein, Anwar Sadat e Muammar Kadhafi.  Os islamitas do Oriente Médio são sem dúvida primos dos brasileiros, não apenas através dos mestiços portugueses e espanhóis da Idade Média, e da numerosa colônia árabe existente em nosso país, como também de outros parentes comuns, os negros da África Subsaariana que entraram em Portugal e suas dependências a partir da década de 1440.  
        Pior do que isto é sabermos que os "lepenistas" brasileiros, orgulhosos de integrar uma presumida vanguarda do Ocidente, ignoram em sua maioria o fato de não passarem de uma massa de manobra bastante obtusa.  Mostram enorme e justificável indignação a cada bomba ou rajada de metralhadora ouvida em Paris, mas se esquecem de que o presidente "socialista" François Hollande, em seu sétimo mês de mandato, empregou os mais modernos armamentos da OTAN para decidir a guerra civil da República do Mali em favor de quem mais convinha ao empresariado francês.  Fazem eco à propaganda racista sobre a imaginária "invasão" afro-asiática que escurece e islamiza a Europa, mas pouco se importam com o o fato muito mais palpável de que as invasões propriamente ditas das potências ocidentais contra o Afeganistão, o Iraque e a Líbia destruíram as economias e as infraestruturas urbanas destes países, provocando centenas de milhares de mortes e criando milhões de refugiados.
            Expliquem a estas bestas, de uma vez por todas, que se a burguesia europeia quisesse de fato ver pelas costas árabes, turcos, paquistaneses e africanos poderia ter aceitado como residentes definitivos, desde as primeiras fases da integração econômica pós-Segunda Guerra, massas gigantescas de brasileiros, argentinos, uruguaios, colombianos, mexicanos e outros que, tendo pais ou avós naturais da Espanha, Itália ou Alemanha, preencheriam os pré-requisitos para uma rápida naturalização.  Bem antes disto, o Estado francês, para fortalecer seu domínio colonial sobre a Argélia, já havia incorporado colonos italianos e espanhóis que jamais pisaram na França como cidadãos franceses; chegou mesmo ao extremo de atribuir plenos direitos aos judeus argelinos de língua árabe para isolar os muçulmanos.                    
           O problema, na verdade, é que o argentino filho de pai italiano, o uruguaio neto de espanhol e o brasileiro das áreas de povoamento alemão de Santa Catarina, uma vez admitidos na Comunidade Europeia, não aceitariam, na maior parte dos casos, trabalhar por salários de perfil latino-americano, muito menos africano, nem morar em conjuntos habitacionais e vilas de lata.  Exigiriam, e seus filhos mais ainda, condições de vida similares às da classe média do continente, e se não atendidos engrossariam as fileiras de partidos anticapitalistas.
          A burguesia europeia precisa, e muito, dos imigrantes "inassimiláveis" que usam outras roupas, frequentam outros templos, têm outras cores de pele e realizam quase sozinhos, há décadas e sendo mal pagos, trabalhos "sujos e perigosos".  Ela precisa também mantê-los na subalternidade, e, neste propósito, o racismo fomentado pela extrema direita, já em processo de institucionalização em alguns países, tem sido um instrumento formidável, servindo de quebra para esvaziar o que sobrou da esquerda continental.  Neste jogo de águias, porém, de nada servem os papagaios brasileiros loucos para aderir. Valem tanto quando o partido nazista recentemente fundado na Mongólia. Que se calem.        
                              
                  


segunda-feira, 6 de junho de 2016

Mais Rousseau, menos Rachel



          Eu folheava um livro no sofá, há duas ou três semanas, quando na TV à minha frente teve início o horário obrigatório de um dos principais partidos de direita do país.  O programa me distraiu por alguns minutos, e a princípio ri ao ver veteranos políticos profissionais, inteiramente desacreditados entre a população em geral e acusados nos tribunais de violar metade do Código Penal, entoando cantilenas moralistas.
           Parei de achar graça, e experimentei até um certo choque, no momento em que surgiu na tela um tipo do terceiro ou quarto escalão na hierarquia partidária, ignorado por completo fora do estado do Rio de Janeiro, de cujas façanhas já sabia desde a década de 90 por gente que o conhece de perto.  Não é, se considerarmos o cenário nacional, uma figurinha avulsa.  Médico do gênero açougueiro, dono de clínica de aborto em bairro miserável, mas populoso, da região metropolitana do Rio, por diversas vezes correu longas distâncias a notícia de que tinha esquecido gazes e instrumentos cirúrgicos dentro dos corpos de suas "pacientes".  
           Muitas mulheres saíam de lá com hemorragias graves para baixar nos hospitais vizinhos, em regra sucateados. Ele mantinha no local um substituto, com a atribuição estratégica de impedir que suas barbeiragens se transformassem em processos de homicídio culposo.  Apesar de tudo, o carniceiro diplomado encontrou lugar na política fluminense, sempre ingressando em legendas que se achavam em ascensão para depois largá-las no primeiro revés, investindo em práticas assistencialistas, assumindo posturas semelhantes às de um antigo "coronel" em suas bases. Chegou a perder eleições, mas conseguiu, mais de uma vez, ser vereador e deputado.
           O médico-monstro, com a hipocrisia que nele parece congênita, estava à vontade na TV, no papel do moralista burguês.  Não destoava em nada de seus correligionários famosos, dos quais só se distingue de fato em um detalhe: a posição inferior na hierarquia convida à prática de crimes mais brutais, mais "porcos", sem a assepsia e o silêncio necessários a quem se credencia a voos mais altos. 
        O médico-monstro jamais exerceria um cargo eletivo se vivesse entre cidadãos cultos, politizados e atendidos em suas necessidades materiais básicas.  Estaria, ao invés disto, cumprindo pena equivalente à prisão perpétua por centenas de episódios de lesão corporal, sem falar nos delitos políticos. Seria candidato, no máximo, à prisão domiciliar, tendo em vista uma idade já avançada.  
       Diante de casos como este, me recordo de antigos ensaios que falavam sobre a incompletude da tarefa do Iluminismo.  Não deixa de ser verdade que, de tempos em tempos, "a razão engendra monstros", mas, por outro lado, o abandono da razão e a cultura que se baseia no lugar comum e na repetição irrefletida geram pogroms, Carandirus, Massacres da Candelária e estupros coletivos diariamente, só variando o endereço; permitem também que criaturas do baixo clero parlamentar, no pior sentido que se pode dar à expressão, atinjam posições de proa no Poder Legislativo, se aproveitando da segurança que transmitem a centenas de colegas de que seus crimes terão menos entraves e menores possibilidades de punição.        
           Pessoas que se dedicam à aquisição de saberes humanísticos e científicos, e que se guiam preferencialmente pela razão, mesmo que seus resultados sejam sofríveis, não elegem aborteiros compradores de voto; não se julgam mais próximas de um paraíso material ou imaterial por lotarem o Congresso Nacional de Cunhas e Crivellas; não tomam parte em estupros coletivos; não xingam refugiados cristãos sírios de terroristas muçulmanos, nem imigrantes haitianos de africanos vagabundos; não incentivam o espancamento e a tortura de presos "comuns" ou políticos; não brigam por espaço na mídia para dizer que o Estado nada deve fazer pela Cultura; não criam fantasias de superioridade em consequência de seu sexo, cor de pele ou origem de classe; não invocam golpes militares para proteger as mesmas fantasias; Pessoas assim precisam se multiplicar em escala nunca antes vista. Mais Jean-Jacques Rousseau, menos Rachel Sheherazade.